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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/02/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #130: os 30 melhores álbuns internacionais de 2023

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/02/2024

Ano intenso, o de 2023, que, em boa verdade, ainda se prolongou — pelo menos no que a audições diz respeito — por boa parte das primeiras semanas de 2024. E daí a publicação agora da lista dos melhores registos internacionais de 2023 para o universo das Notas Azuis, com 3 dezenas de entradas ordenadas alfabeticamente — lista esta que, aliás, conta com banda sonora tripartida: aqui, aqui e também aqui.


[Ambrose Akinmusire] Owl Song (Nonesuch Records)

Da crítica publicada no Expresso:

“Owl Song é nocturno como a ave que lhe inspira o título e parece fazer uso daquela profunda sapiência que tal criatura simboliza na cultura popular. Nas oito peças que compõem o alinhamento, todas da autoria de Akinmusire, o trompetista soa sempre expansivo, mas nunca de forma indulgente, expondo com cada sopro um discurso de sombreados líricos e de um melodismo tocante, qualidades que casam com a classe absoluta de Frisell, sempre interessado em proporcionar ao líder uma base harmónica de beleza absoluta, e com o pragmatismo elegante de Riley, que nas escovas ou com baquetas desenha tempos que parecem existir em suspensão. Faz sentido que Ambrose Akinmusire dedique uma nova composição a cada um dos companheiros, com ‘Mr. Frisell’ e ‘Mr. Riley’ a soarem como ternas e profundas conversas de fim de noite entre amigos que se conhecem desde sempre.”


[André 3000] New Blue Sun (Epic Records)

Da coluna Notas Azuis:

“Com títulos tão longos como as peças que compõem o alinhamento de New Blue Sun – ‘I Swear, I Really Wanted to Make a ‘Rap’ Album but This Is Literally the Way the Wind Blew Me This Time’, a faixa de abertura cujo título é também uma espécie de manifesto ou pelo menos clarificação de intenções, estende-se por 12 minutos e 20 segundos e é até a mais longa de sempre a ter entrado na tabela Billboard 100 tendo retirado tal distinção a ‘Fear Inocolum’, peça dos Tool que é cerca de 2 minutos menos extensa – este é um álbum que se desenrola como uma longa peça de música ambiental. Vale a pena recordar a famosa definição de Brian Eno para essa música, expressa nas notas de capa de Music for Airports: ‘A música ambiental tem como objetivo induzir a calma e um espaço para pensar. A música ambiental deve ser capaz de acomodar vários níveis de atenção auditiva sem impor um em particular; deve ser tão ignorável quanto interessante’. Todas estas ideias são claramente aplicáveis a New Blue Sun.

Melodias simples em etérea suspensão, névoa electrónica, percussão que parece traduzir os elementos da natureza, da chuva à ressonância das cavernas, alguma aproximação aos fantasiosos domínios do quarto mundo de Jon Hassell (ouça-se, por exemplo, a quarta faixa do alinhamento) e um honesto e, sim, algo pueril (elogio) sentido exploratório expresso no plano melódico dominam esta música. Partir para a audição com algum tipo de preconceito (no sentido literal de já ter tomado decisões mesmo antes de feita a experiência, como tão bem ilustrado na famosa piada que circula sobre Jorge Lima Barreto, dos Telectu que, instado a pronunciar-se sobre um determinado disco terá um dia respondido algo como “não ouvi e não gostei”…) é escusado precisamente porque nos dissocia imediatamente do ponto de partida do próprio artista que concebeu New Blue Sun sem qualquer expectativa ou desejo mais fundo que não fosse o de encontrar-se num lugar novo. Afinal de contas, como nos garante no título escolhido para a última das faixas, “Sonhos outrora enterrados sob o chão da masmorra brotam lentamente em jardins imortais.”


[Angel Bat Dawid] Requiem for Jazz (International Anthem)

Introdução a entrevista realizada para o Rimas e Batidas:

“Quando questionei Angel Bat Dawid sobre a notação da experiência negra – e essa foi basicamente a segunda ou terceira pergunta da entrevista que aqui se publica – deixei de lado uma série de outras perguntas que queria colocar-lhe – nomeadamente como o seu trabalho de pós-produção em cima das gravações originais das diferentes peças do seu Requiem for Jazz poderiam, ou não, ser entendidas como uma forma radical de reinterpretar a ideia do presente – porque percebi que a artista tinha uma agenda bem definida de confrontação ideológica com quem se encontrava do lado de cá da chamada Zoom. Quando mencionei a impossibilidade de notar a experiência negra, tentei, na verdade, sublinhar como essa condição marca de forma profunda a música que gera e que mesmo com pautas com instruções detalhadas talvez um músico branco não seja nunca capaz de reproduzir o sentimento singular, por ser algo culturalmente definido ao longo de gerações, com que o compositor de tal peça a imbuiu. Mas a artista americana não hesita e faz do seu justificado anti-racismo uma arma de arremesso capaz de ferir até mesmo os ouvidos mais preparados e que se entendem como aliados dessas necessárias lutas.

Não compete a quem assina estas linhas a análise do carácter justo ou injusto de tais palavras, tão somente o seu registo. E ainda que fossem injustas, seria sempre possível concordar que este combate é necessário, urgente até. E Requiem For Jazz, o novo álbum que a compositora e clarinetista lança através da International Anthem seguindo inspiração do filme de 1959 The Cry of Jazz, pretende ser essa arma de destruição. Deste lado acredita-se que a destruição de que fala Bat Dawid é em tudo semelhante à que há algum tempo Mamadou Ba por cá mencionou e que tanta celeuma gerou: ‘Nós temos é que matar o homem branco como sugeria o [Frantz] Fanon. O homem branco que nos trouxe até aqui tem de ser morto. Para evitarmos – como dizia Orlando Patterson – a morte social do sujeito político negro é preciso matar o homem branco, assassino, colonial e racista’. A declaração, proferida no âmbito de um aceso debate transmitido no Youtube, foi alvo de análise no Polígrafo, plataforma de fact checking a que o próprio dirigente do SOS Racismo depois teve oportunidade de explicar: ‘O que quis dizer foi que, para combater o racismo, é necessário combater a ideologia da supremacia branca, o subconsciente coletivo das sociedades marcadas pelo processo colonial e a ideia de superioridade da raça. A ideia de que o homem branco é superior a outras raças e outras culturas’. Palavras claras e que parecem ir de encontro ao discurso de Angel Bat Dawid.”


[Arooj Aftab, Vijay Iyer & Shahzad Ismaily] Love In Exile (Verve)

Da coluna Notas Azuis:

“O álbum tem apenas 6 faixas que se desenrolam calmamente numa teia de intrincados fios harmónicos – a mais curta, ‘Sajni’, espraia-se por generosos 8 minutos, e a mais longa, ‘Shadow Forces’, ultrapassa os 14. Mas o tempo aqui existe suspenso e não se rende à universal velocidade dos relógios. O facto de Aftab se expressar em urdu sublinha uma certa qualidade arcana que esta música parece conter no seu âmago, como se nos chegasse directamente de uma outra era, remota ou até, quem sabe, futura.

O aspecto meditativo do álbum faz pensar na música vocal de Alice Coltrane, partilhando da mesma seriedade devocional, mas como tão bem se pressente na já mencionada ‘Shadow Forces’, o poético fraseado no piano de Vijay Iyer não esconde um profundo entendimento do mais arrebatado Keith Jarrett, referência incontornável neste tipo de entrega mais espiritual. Num ano tão dramaticamente ferido como o que acabámos de viver, Love in Exile impõe-se como precioso bálsamo, uma obra com reais poderes curativos para os males de que padecem as almas globais.”


[Asher Gamedze] Turbulence and Pulse (International Anthem / Mushroom Hour Half Hour)

Da coluna Notas Azuis:

“Neste álbum, gravado na Cidade do Cabo em Maio de 2021, Gamedze volta a ser acompanhado por Robin Fassie (trompete), Buddy Wells (saxofone tenor), Thembinkosi Mavimbela (contrabaixo) – uma equipa coesa e tecnicamente avançada que já tinha contribuindo para a excelência de Dialectic Soul – e ainda Julian ‘Deacon’ Otis (voz). Na peça de abertura, Deacon recita ‘turbulent times call for extreme measures’, com a sua voz a emergir do silêncio recortado por uma simples frase de piano, uma metáfora para a própria acção humana requerida nestes tempos agitados: precisamos de nos erguer do silêncio e fazer ouvir a nossa voz.

O facto de a cada nova peça se acercar do futuro não impede Gamedze de reconhecer as ligações ao passado e o seu papel nestes projectos ecoa o que em tempos foi assumido por Louis Moholo nos Blue Notes, quando se assumiu que a exaltação da cultura funda da África do Sul, à época sob o duro regime do apartheid, era uma forma de resistência, mas que a sua projecção no futuro era imperiosa necessidade para garantir sobrevivência. Nas 9 composições que Asher Gamedze assina e na versão do tradicional ‘Alibama’, o ensemble move-se como um só, alternando solos de um tremendo vigor com momentos de maior reflexão, uma tensão entre a acção e o pensamento que marca todo o disco, que o eleva e que tem a capacidade de nos arrebatar por completo. Em ‘Wynter Time’, por exemplo, o tema inicial é exposto nos uníssonos dos sopros, carregado pelo pulso certo do baixo e agitado pelas percussões, abrindo espaço para o saxofone de Wells discursar com sofrido tom a que depois se sucede o trompete de Fassie em igualmente elegante e melancólico fraseado, num encontro de toada emocional que vai muito para lá da técnica. É o som da vida em movimento.”


[Atlantis Jazz Ensemble] Celestial Suite (Marlow Records)

Jazz espiritual banhado em cristal de Fender Rhodes com assertivos “sermões” para a alma em trompete e saxofone. Trata-se do segundo álbum do grupo canadiano de Ed Lister (trompete), 
Zakari Frantz (sax alto), Pierre Chrétien (piano eléctrico), Chris Pond (baixo) e  Mike Essoudry (bateria). 

De entrevista a publicar em breve aqui no Rimas e Batidas: 

“Escolhemos o nome Atlantis Jazz Ensemble porque este continente perdido, segundo Platão, estaria supostamente situado no meio do Oceano Atlântico (a oeste dos ‘Pilares de Hércules’, ou os dois picos de cada lado do estreito de Gibraltar — o nome ‘Atlântico’ veio de ‘Atlântida’), entre a América do Norte, a Europa e África, tal como a música que nos interessava: Artistas norte-americanos como Pharoah Sanders, John Coltrane, Freddie Hubbard; artistas europeus como Michael Garrick, Dusko Goykovich, Don Rendell; artistas africanos como Mulatu Astatke, Abdullah Ibrahim, Tony Allen. O Quinteto de Miles Davis do final da década de 1960 foi também um modelo importante, os primeiros discos Fender Rhodes — ‘Miles in the Sky’, ‘Filles de Kilimanjaro’, ‘In a Silent Way’.”


[Cecile McLorin Salvant] Mélusine (Nonesuch Records)

De crítica publicada no Expresso:

“Quando o Expresso aponta a Cécile McLorin Salvant uma espécie de sintonia existente entre a forma como parece acercar-se dessa tradição do jazz e outros gestos recentes de criativa revisitação dessa mesma história conduzidos por artistas como o pianista Jason Moran ou a clarinetista Angel Bat Dawid, a cantora confessa que não tinha ainda dado por tal tendência, mas admite que o facto de vários artistas contemporâneos estarem igualmente interessados na exploração das mais fundas raízes desta cultura é algo de ‘muito interessante’.

Talvez em missão de busca e salvamento das mais remotas raízes do jazz, no novíssimo Mélusine Salvant recria à sua maneira não apenas um air de cour do século XVII, ‘D’un feu secret’, mas também interpreta uma tradução para criolo haitiano de um poema do século XII originalmente escrito em língua occitana, ‘Dame Iseut’, da autoria da trovadora Amucs de Castelneau. A isto juntam-se ainda versões para peças dos cancioneiros de Léo Ferré, ‘Est-ce Ainsi que les Hommes Vvent?’, Charles Trenet, ‘Le Route Enchantée’, ou Veronique Sanson, ‘Le Temps est Assassin’, além de cinco originais da própria Cécile McLorin Salvant. A decisão de cantar em inglês, criolo do Haiti, francês e língua occitana, explica-nos, funciona como uma ‘espécie de mapa’ para sua complexa identidade cultural.

Não disfarçando a ironia, Cécile diz-nos ainda que o título do seu novo álbum referencia uma lenda folclórica ‘acerca de uma mulher que tem um segredo e se transforma em metade-cobra aos sábados’. A capa do álbum, um grande plano do seu rosto perfilado com língua esticada, remete directamente para a mesma lenda: ‘Em francês, tal como em inglês, aliás, usa-se a mesma palavra para língua e linguagem. Com essa imagem quis remeter para a língua da cobra que traz o caos ao mundo. A mulher que é meio-cobra.’

Em Mélusine, Cécile exibe qualidades interpretativas que tanto justificam o arrebatamento de experimentados frequentadores de templos como o Village Vanguard quanto o aplauso de plateias das mais conceituadas salas de concertos, como aconteceu recentemente na sua passagem pelo nosso país para três concertos em Lisboa, Porto e Castelo Branco. E na combinação da sua distinta voz com o djembé de Weedie Braimah em ‘Dites Moi Que Je Suis belle’, na sua brilhante versão de Ferré acompanhada pelo trio acústico de Aaron Diehl no piano, Paul Sikirie no baixo e Kyle Poole na bateria, ou ainda na inventiva reimaginação do air de cour em que substitui o tradicional alaúde por um arrojado sintetizador, Cécile deixa claro que o passado só importa como ferramenta de projecção de novos futuros e que a tradição, que se quer na ponta da língua, já não é coisa de se guardar dentro de uma redoma.”


[Darcy James Argue’s Secret Society] Dynamic Maximum Tension (Nonesuch Records)

Um tremendo álbum, este o que a Secret Society do pianista Darcy James Argue assinou o ano passado. As notas de capa do álbum proclamam que os Secret Society produzem uma música que é contemporânea e audaciosamente política. Tal como Jason Moran, outro pianista, também Argue usa o seu olhar sobre o passado como uma espécie de comentário sobre o presente.

Sustentada pela venerável tradição das grandes orquestras, esta música vibra no entanto com o pulsar urgente do presente, vivendo de uma notável execução de um colectivo feito de grandes músicos em estado de graça.


[Darius Jones] fLuXkit Vancouver (its suite but sacred) (Northern Spy / We Jazz)

Da coluna Notas Azuis:

“Na autêntica tapeçaria avant-garde que é fLuXkit Vancouver, o saxofonista Darius Jones e o seu colaborador habitual e baterista Gerald Cleaver orquestram uma composição de quatro movimentos ao lado de um quarteto de músicos de Vancouver: os irmãos Jesse e Josh Zubot, ambos em violinos, e ainda Peggy Lee em violoncelo e James Merger no contrabaixo. Este manifesto de vanguarda, encomendado pela organização canadiana dirigida por artistas Western Front, transcende categorizações superficiais e funde som e imagem numa obra que é dada à estampa numa inédita colaboração entre a Northern Spy de Brookyn e a We Jazz Records de Helsínquia.

Em fLuXkit Vancouver, o som torna-se assim no ponto de partida para uma viagem visceral, um convite para transcender as fronteiras artísticas. E isso resulta numa clara obra de vanguarda, simultaneamente audaciosa e elusiva, que desafia quem a escuta a embarcar numa exploração imersiva, em que a música e as artes plásticas convergem num intrigante, mas sedutor enigma.”


[Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra] Family (We Jazz)

De crítica publicada na revista We Jazz e republicada na coluna Notas Azuis:

“A Supersonic Orchestra congrega 7 saxofones, 2 trombones, 2 trompetes, 3 contrabaixos e outras tantas baterias — 17 criativos músicos que representam o melhor do jazz escandinavo do presente — e mais além! — e que aqui tocam peças arranjadas pelo próprio Gard Nilssen e também por André Roligheten, saxofonista tenor que ainda se faz ouvir em saxofone barítono e clarinete baixo. Curiosamente, ou talvez não, as notas indicam que todos os músicos tocaram igualmente percussões — James Brown costumava dizer que todos os músicos nos seus dilatados ensembles tocavam bateria, facto completamente independente do instrumento que cada um pudesse carregar para cima do palco.

Em Family esse ímpeto poli-rítmico é constante e dominante. Esta é música de vibração plena que se move para a frente, em permanente e intensa demanda pelo que ainda não se conhece. E percebe-se que isso é algo que inspira os músicos desta ‘família’, tão capazes de afirmarem vozes individuais quanto de desaparecerem no magma colectivo, fundindo-se num maravilhoso e enérgico caos organizado. ‘Boogie Stop Tøffel’ é disso ilustrativo exemplo, um celebratório tema comunal que tem tanta liberdade quanto funk dentro e que acomoda nos seus gloriosos 7 minutos e 14 segundos um longo solo de contrabaixo com tanta força que parece capaz de, sem mais nenhuma ajuda adicional, fazer tremer a terra.”


[Irreversible Entanglements] Protect Your Light (Impulse! Records)

Ainda a aguardar crítica na coluna Notas Azuis (em breve…), este álbum extraordinário do ensemble em que militam Camae Ayewa (aka Moor Mother), o baterista Tcheser Holmes, o trompetista Aquiles Navarro, o saxofonista Keir Neuringer e o baixista Luke Stewart mereceu, no entanto, amplo espaço nas emissões de Notas Azuis na Antena 3.

Das notas de lançamento no Bandcamp:

Irreversible Entanglements é um coletivo de free jazz orientado para a libertação, formado no início de 2015 pelo saxofonista Keir Neuringer, a poetisa Camae Ayewa (também conhecida como Moor Mother) e o baixista Luke Stewart, que se juntaram para atuar num evento Musicians Against Police Brutality organizado após o assassinato de Akai Gurley pela polícia de Nova Iorque. Meses mais tarde, o grupo juntou-se ao trompetista Aquiles Navarro e ao baterista Tcheser Holmes (um duo que também actuou no evento MAPB) para um único dia de gravação no Seizure’s Palace, em Brooklyn, e a primeira vez que o quinteto completo tocou em conjunto foi captada para esta estreia. Em quatro incansáveis ataques de música de fogo inspirada, os instrumentistas exploram e elaboram ideias de composição retiradas dos seus profundos estudos individuais de improvisação de jazz livre, mas o tom de cada peça é conduzido de forma decisiva pelas narrações poéticas abrasadoras de Ayewa sobre o trauma, a sobrevivência e o poder dos negros. A mensagem é a essência inegável da música. Embora o free jazz com voz seja uma abordagem pouco comum na paisagem moderna do género, o espírito e o tema que a banda canaliza e explora representam um regresso a um princípio central do som tal como foi fundado – ser um veículo para a libertação negra. Tão criativo e aventureiro como qualquer gravação de jazz de vanguarda contemporâneo, mas sem oferecer aos ouvintes abstracções para se esconderem atrás, esta é uma música que tanto honra como desafia a tradição, falando ao presente enquanto insiste no futuro”.


[Isaiah Collier] Parallel Universe (Night Dreamer)

O saxofonista Isaiah Collier liderou aqui um incrível ensemble com a vocalista Jimetta Rose, o teclista Julian Reid, o baixista Micah Collier, o trompetista Corey Wilkes, o baterista James Russell Sims e o guitarrista Michael Damani com contribuições adicionais de Ra em Kalimba e de Sonny Daze em vozes. Outro álbum que rodou nas emissões de Notas Azuis, na Antena 3.

Das notas de lançamento, no Bandcamp:

“Tendo já actuado com um leque diversificado de músicos como Chance The Rapper, Waddada Leo Smith, a realeza do jazz de Chicago Angel Bat Dawid e a sua própria banda The Chosen Few, o mais recente trabalho de Collier como líder de banda explora a herança musical partilhada da diáspora africana com um sentido de graça e segurança que desmente a sua idade.

Abraçando o risco e a vulnerabilidade que advêm do processo ao vivo, Collier e a sua banda aproveitaram as frequências de improvisação que animaram tantas das mais intemporais gravações de jazz. ‘Gravar diretamente para o disco deu-me a oportunidade de experimentar aquilo com que os nossos antecessores musicais de há quase cem anos atrás estavam a lidar’, explica.

Mencionando Sun Ra, Ras G, J Dilla, Fela Kuti, Miles Davis, Gil Scott-Heron, Whitney Huston, Aaliyah e Frankie Knuckles, a faixa de abertura de Parallel Universe imagina uma linhagem musical sem género que ressoa com a polifonia de histórias que a sua banda traz para a mesa, de Chicago e não só.”


[Jaimie Branch] Fly or Die Fly or Die Fly or Die ((world war)) (International Anthem)

De crítica publicada no Expresso:

“A punk que sempre existiu dentro de Jaimie volta a mostrar as garras no seu derradeiro álbum de originais: ‘The Mountain’ é uma tocante leitura de ‘Comin’ Down’ dos Meat Puppets em que o violoncelo de St. Louis estabelece o tom solene e em que Branch harmoniza com Ajemian retendo a toada bluegrass do original. Há mais desse espírito no alinhamento de Fly or Die Fly or Die Fly or Die ((world war)): ‘Take Over The World’ é um momento de cadência hardcore em que Jaimie garante que vai ‘tomar conta do mundo’, salvando-o da queda no abismo que ela mesmo não conseguiu no final evitar. Sobre essa urgência rock em derrapagem rítmica, a trompetista sola como se não houvesse amanhã, tomando os mais abrasivos momentos de Miles Davis como combustível para a sua própria descolagem e alcançando com facilidade um estado de absoluta leveza.

Mas é em ‘Baba Louie’ que a distinta visão de Jaimie se concretiza: a peça de 9 minutos é inteligentemente posicionada a meio do alinhamento e mostra a banda em modo celebratório, executando uma energética fanfarra em que o seu trompetismo soa límpido alongando-se num discurso musical que chega a ser comovente sobre uma base servida por um colectivo expandido com convidados como Nick Broste no trombone e Daniel Villareal em percussões. Nas notas de capa, Jason – que era o amigo mais próximo de Jaimie – assegura que a trompetista ‘sempre pensou em grande e este álbum é grande’. É, de facto. Jaimie partiu cedo demais, não conheceu o futuro que poderia ter tido dentro de si, e ainda assim legou-nos uma curta, mas brilhante discografia em que o seu espírito se manifesta de forma plena. Teremos sempre isso.”


[James Brandon Lewis Red Lily Quintet] For Mahalia, With Love (TAO Forms)

“James Brandon Lewis reuniu para esta sentida vénia ao espírito da activista do Movimento dos Direitos Civis e cantora de gospel Mahalia Jackson o mesmo Red Lily Quintet de que já se tinha socorrido para a homenagem a outra importante figura histórica da América negra, George Washington Carver, inspiração de Jesup Wagon, álbum de 21021: ou seja, o trompetista Kirk Knuffke, o contrabaixista William Parker, o baterista Chad Taylor e ainda o violoncelista Chris Hoffman.

Ao contrário de Jesup Wagon, no entanto, trabalho que apresentava composições do próprio tenorista, neste For Mahalia With Love Lewis socorre-se de um cancioneiro centenário e tradicional que Mahalia Jackson ajudou a popularizar: peças como ‘Swing Low’, ‘Go Down Moses’, ‘Wade in the Water’ ou ‘Precious Lord’ retêm nestas leituras o mesmo arrebatamento espiritual, mas servem igualmente para inspirar longas derivas em que o quinteto não retrai a sua declarada vontade de navegar por diferentes períodos da história do jazz, do bebop ao mais libertário free jazz, alargando até o pulso e os arranjos a outros terrenos, como o funk, por vezes até dentro da mesma peça. James Brandon Lewis reafirma desta forma o seu lugar num longo devir histórico, reconhecendo a importância pioneira de figuras que marcaram a mais nobre história da América negra, mas assume o presente como um observatório de onde é possível vislumbrar tudo o que veio antes, tomando esse assinalável lastro histórico não como âncora que o prenda a uma abordagem revisionista, mas como combustível para o impulsionar para o futuro. Albert Ayler, ele mesmo um estudante dessa história, dos espirituais às marchas militares, aprovaria, certamente.”


[Jason Moran] From the Dancehall to the Battlefield (Yes Records)

Introdução da entrevista publicada originalmente na revista We Jazz e republicada no Rimas e Batidas:

“Pensar que, com 2023 quase a chegar ao fim, ainda podemos estar a descobrir importantes pioneiros da música negra americana e a conhecer o alcance do seu trabalho é algo absurdo. Alguém nos vendeu a ideia de que na era da informação já não há segredos bem guardados, mas eis que o pianista Jason Moran nos ofereceu From the Dancehall to the Battlefield, uma profunda homenagem a um pioneiro que teve uma vida tão extraordinária que poderia ter inspirado uma dúzia de filmes. Só que nunca o vimos ser celebrado nos grandes ecrãs ou sequer na Netflix. Ou melhor, ainda não — e isso pode mudar mais cedo do que pensamos.

James Reese Europe foi um corajoso pioneiro da música afro-americana que, no início do século XX, não só fundou uma organização que valorizava os músicos negros — o Clef Club, uma espécie de sindicato — como os levou a uma atuação triunfante no Carnegie Hall, em 1912, anunciada como um Concerto de Música Negra, um momento que a história registou para o futuro. Pouco tempo depois, James Reese Europe embarcou para França para combater na Primeira Guerra Mundial com o 369º de Infantaria, um regimento conhecido como os Harlem Hellfighters. Quando regressaram como heróis, estes soldados até foram autorizados a desfilar na nova-iorquina Quinta Avenida. A tragédia viria alguns meses após o regresso triunfante da Europa, na noite de 9 de Maio de 1919, quando, durante o intervalo de uma atuação em Boston, uma discussão com um dos seus músicos, o baterista Herbert Wright, resultou numa facada no pescoço que inicialmente se pensou ser superficial, mas que acabaria por causar a sua morte.

Mais de 100 anos depois, Jason Moran quer voltar a contar a história de James Reese Europe, depois de a ter recebido das mãos de um amigo e mentor.”


[Joe Chambers] Dance Kobina (Blue Note Records)

Das notas de lançamento: 

“O aclamado compositor e multi-instrumentista Joe Chambers reúne um elenco global de talentos em Dance Kobina, um gesto alegre e ruminativo do mestre da bateria e do vibrafone. O seu terceiro lançamento para a Blue Note Records — e complemento sonoro do Samba de Maracatu de 2021 — Dance Kobina destaca as composições originais de Chambers, explora novas músicas e oferece um tratamento fresco e íntimo de músicas duradouras – cada seleção fortemente informada ou subtilmente influenciada pelo guaguancó afro-cubano. ‘Para mim, todas essas peças estão conectadas’, diz Chambers, ‘de muitas maneiras’.”


[Johnathan Blake] Passage (Blue Note Records)

Das notas de lançamento:

“O baterista, compositor e líder de banda Johnathan Blake segue a sua aclamada estreia na Blue Note em 2021, Homeward Bound, com Passage, uma sequela edificante que mais uma vez apresenta a sua banda Pentad com Immanuel Wilkins no saxofone alto, Joel Ross no vibrafone, David Virelles no piano e Dezron Douglas no baixo. Dedicado à memória do seu pai John Blake Jr., um violinista de jazz cuja composição emocionante ‘Passage’ dá o título ao álbum, o conjunto de 10 faixas também apresenta cinco novos originais de Blake, bem como peças de Douglas, Virelles e do professor de bateria e mentor de Blake, Ralph Peterson Jr.”


[Kassa Overall] ANIMALS (Warp Records)

Da coluna Notas Azuis:

“Essa capacidade de tomar cada uma dessas colaborações como matéria para a sua própria expressão deve ser entendida da mesma maneira que se encara o panorâmico ouvido de Teo Macero na hora de organizar as fluídas e livres sessões do Miles eléctrico em coerentes peças que só se cristalizavam na mesa de mistura e não num momento concreto do tempo, como sempre aconteceu com o jazz clássico. A breve mas intensa ‘Still Ain’t Find Me’ junta o fogo que se desprende dos pulmões de Tomoki Sanders a uma densa tapeçaria rítmica, mas percebe-se bem o tracejado do corte e da costura operada por Overall.

‘Clock Ticking’, a peça em que se escuta o flow cartoonesco de Danny Brown em toda a sua oblíqua glória (retribuição, certamente, do trabalho de Kassa em Quaranta, álbum que Brown lançou igualmente em 2023 e em que o baterista e produtor a acumula créditos em quatro faixas) e uma mais redonda prestação rimática de Wiki, é um fantástico pedaço de hip hop desalinhado das tendências dominantes, mas comprometido com as mais exigentes normas exploratórias, um pedaço de afro-futurismo com brilho intenso que até tem estofo para servir de molde a um mais amplo projecto que possa seguir esta linha. Kassa Overall acrescenta assim mais um válido argumento a favor de mais cruzamentos entre praticantes destas duas áreas realmente comunicantes (para juntar aos entusiasmantes encontros de Moor Mother com Billy Woods ou, por exemplo, de Pink Siifu com os Butcher Brown).

Com Frank Ocean como inspiração clara para a sua cada vez mais proeminente presença em frente ao microfone (escute-se a belíssima ‘The Lava is Calm’), Kassa Overall apresenta-se também como um vocalista capaz de olhar para o seu tempo, capaz de pensar poeticamente sobre a condição negra na América moderna que ilude com as armadilhas do capitalismo (‘Don’t you go fallin’ / In love with the shiny thingts’) e que invariavelmente acaba por fazer vítimas. Ainda assim, Overall expõe-se, mas não se queixa: ‘At a loss for words, I can’t complain / I sowed the seeds and prayed for rain / I filled prescriptions to block out visions / Still feel the tremble of a victim / Swallow my arrogance / Do the math of a missed marriage / Plus a couple miscarriages / Dreams never came true / Family that I never knew (Who are you?) / Plus a couple niggas hatin’ too / Now the music is my therapist / We talk it out every night in the booth / Tryna repair this shit / We all tryna break free like a bird in the wind / ‘Cause we all goin home in the end’. 

Se é para ir, mais vale ir até ao fundo.


[Knoel Scott] Celestial (Night Dreamer)

Mais um álbum direct to disc com selo Nigh Dreamer. Com Knoel Scott (Sax alto, flauta e voz), Marshall Allen (sax alto & EWI), Charlie Stacey (piano), Chris Henderson (bateria) e Mikele Montolli (baixo). Claro que qualquer álbum contemporâneo que inclua os préstimos do gigante Marshall Allen merece destaque neste tipo de listas.

Das notas no Bandcamp:

“O saxofonista da Sun Ra Arkestra, Knoel Scott, chega ao céu para lançar o seu primeiro álbum de estúdio, Celestial, com o colaborador de longa data Marshall Allen.

Mais conhecido pelo seu papel de longa data na Sun Ra Arkestra, o saxofonista, compositor, vocalista e intérprete Knoel Scott é uma lenda do jazz por direito próprio. Uma celebração da sua estreita relação com o líder da Arkestra, Marshall Allen, Celestial marca o primeiro grande lançamento de estúdio de Scott após mais de 40 anos na vanguarda do jazz moderno.

Com base numa carreira em que Scott gravou e actuou ao lado de grandes nomes do jazz, como Sun Ra, Charles Earland, Lou Donaldson e Leon Thomas, o álbum de 5 faixas está mergulhado nos estilos de composição e interpretação da tradição do jazz afro-americano, desde os blues e o be-bop até à vanguarda cósmica.”


[Kofi Flexxx] Flowers in the Dark (Native Rebel)

Da coluna Notas Azuis:

“Na breve peça que o Guardian dedicou a Flowers in the Dark, tendo certamente tido acesso a mais informação, revela-se que os músicos Alex Hawkins (pianista com longa carreira, colaborador regular de Evan Parker, por exemplo, e que também tem um crédito no álbum da dupla CoN+KwAkE lançado igualmente na Native Rebel Recordings), Ross Harris (flautista e membro do Speakers Corner Quartet com quem Confucius MC e Shabaka também já colaboraram), Jas Kayser (baterista que já falou ao Rimas e Batidas e que toca igualmente com Raquel Martins) e Daisy George (baixista londrina que o ano passado se estreou a solo com See Me Now) formam o núcleo duro das sessões em que foi registado o material deste trabalho de Kofi Flexxx. E por cima de tudo isto sobrevoam os drones de Shabaka Hutchings em clarinete baixo e sentem-se as reflexivas brisas ou mais intempestivas rajadas das suas recentemente adoptadas flautas africanas e orientais, novas ferramentas com que pretende substituir o saxofone tenor em que se notabilizou à frente dos já mencionados Ancestors, mas também dos Sons of Kemet e The Comet is Coming.

O primeiro tema, em que se escutam as apocalípticas rimas de billy woods, que soa como se estivesse a ler em tom muito sério um qualquer documento arcano, é uma névoa densa feita de camadas de instrumentos de sopro sobre quinquilharia rítmica cadenciada, uma espécie de hip hop de tendência cinemática e soturna. Em ‘It Was All a Dream’, a bateria frenética e o baixo pulsante acomodam o piano de Hawkins e os sopros espraiados em multi-pistas do rei Shabaka, com solo em flauta a deixar claro que não vai abdicar da visceralidade com que se sempre se entregou ao saxofone. É no contrabaixo que nasce depois ‘By Now’, a peça em que se escuta o ‘sermão’ de palavra falada e cadenciada de Anthony Joseph a expressar o desapontamento com o rumo da sociedade moderna: ‘by now we should be reconstituted’, diz ele com pragmática e lacónica voz.

O tema que dá título ao álbum e em que Confucius MC larga sábias barras que falam da fé, da raiva, da perda e das escolhas com que cada um navega esta coisa a que chamamos vida é apoiado em ritmo quebrado que bem poderia ter sido subtraído a uma sobra de sessões dos já referidos SAULT. E em cima disso, as flautas de Shabaka soam reflexivas, como se o músico estivesse a traduzir o pensamento que sustenta as palavras debitadas. A peça com E L U C I D, por outro lado, é mais claramente hip hop, com beat programado e toada ambiental a envolverem o flow sombrio do rapper americano. Essa vertente cinemática e evocativa parece aliás atravessar todo o álbum, mas talvez não se sinta tanto quanto em ‘Babylon Dun Topple’, peça em que não há vozes e em que o grupo se envolve num intenso mergulho em improviso meditativo que vai ganhando nervo crescente na flauta que traça o caminho enquanto o comping abstracto de Hawkins atira a composição para os domínios da música contemporânea. Há mais uma peça instrumental, ‘Fire’, remate deste belíssimo álbum, de toada bem mais melancólica que nos mostra, com a flauta em primeiro plano, a que poderá soar o futuro de Shabaka Hutchings, que neste trabalho prova ser capaz de derivar entre tradições – do jazz à clássica, da música contemporânea ao hip hop — e geografias — de África à Ásia e daí até às profundezas do cosmos.

Os restantes temas vocais — ‘Increase Awareness’ com Ganavya e ‘Aim’ com Siyabonga Mthembu — são lamentos que parecem arrancados às profundezas da alma, com a peça em que se escuta o cantor sul-africano a destacar-se pela sua tocante espiritualidade e pelo belíssimo solo de piano que se desprende da teia de percussões e de sopros para afirmar uma poética vincada, inspirada certamente na prestação de Mthembu. Material impressionante que mereceria desenvolvimento em mais registos em que estas mesmas pessoas se pudessem voltar a cruzar. E palco, claro. Que esta música soa viva e capaz de crescer.”


[Lakecia Benjamin] Phoenix (Whirlwind Recordings)

De crítica publicada no Expresso:

“Com produção a cargo da notável baterista Terri Lynn Carrington, Phoenix lista os contributos do pianista Victor Gould, do contrabaixista Ivan Taylor, do baterista EJ Strickland e do trompetista Josh Evans, que surgem na maior parte das faixas, e ainda, pontualmente, da percussionista brasileira Nêgah Santos, do trompetista Wallace Roney, Jr., da pianista e organista Anastassiya Petrova, do teclista Orange Rodriguez, do baixista Jamal Nichols, e, nas vozes, além da tutelar figura de Angela Davis, surgem ainda destacadas convidadas como a veterana cantora Dianne Reeves, a poeta e declamadora Sonia Sanchez e a cantora e produtora de hip hop Georgia Anne Muldrow. Há ainda que ressalvar as participações de duas verdadeiras lendas em papéis diferentes daqueles que lhes valeram os seus respectivos estatutos: a cantora Patrice Rushen que tanto brilhou nas décadas de 70 e 80 relembra-nos aqui que é também uma belíssima pianista de jazz; e o veteraníssimo saxofonista Wayne Shorter, membro do segundo grande quinteto de Miles Davis e fundador dos Weather Report, empresta a sua voz ao breve interlúdio “Supernova”. Questiona o decano prestes a festejar os seus 90 anos de idade: ‘Como é que um homem sabe sobre o que uma mulher está a pensar, a sentir? A vida quer criar…’

É, de facto, indiscutível que este novo álbum de Lakecia Benjamin celebra o poder criativo das mulheres e todas estas artistas surgem no alinhamento porque foi nelas que a saxofonista pensou ao escrever cada um dos temas: ‘Eu não conhecia nenhuma delas e tive que ser criativa quando as abordei: descobri onde elas vivem, arranjei os seus emails, combinei encontros no Zoom e em cada um dos casos tive que apresentar a minha ideia, defender a minha visão, explicar as minhas intenções, a história por trás do álbum, por trás da minha vontade de as incluir… E foi importante para mim que cada uma delas percebesse que não encarei isto como uma coisa pontual – tenho toda a intenção de manter estas relações, de as alimentar, porque eu tenho a sorte de estar viva ao mesmo tempo que elas’.

É, precisamente, acerca de viver neste tempo que este álbum trata. O som que se escuta no arranque de Phoenix logo após o das sirenes é o de tiros. E é sobre esse cenário aural que Angela Davis nos relembra que ‘a esperança revolucionária permanece nas mulheres que foram abandonadas pela história. Não é assim que as coisas devem ser’, exclama a antiga prisioneira política. ‘Esta é a era das mulheres’. E esse é o mote seguido pelo alto de Lakecia Benjamin que em ‘Amerikkan Skin’ parece insuflar ecos de oriente no seu discurso melódico enquanto sobrevoa uma vigorosa secção rítmica, combinando a sua visão de um jazz espiritual com uma pertinente dose de modernidade. Na conversa que manteve com o Expresso, Benjamin deu a entender que o que em Pursuance era visceralmente espiritual, em Phoenix é mais reflectidamente cerebral: ‘A Terri (Lynn Carrington) exigiu muito de mim. Normalmente gosto de arrumar as coisas em um ou dois takes, mas ela obrigou-me a dar o meu melhor, a ir para lá do momento, a regressar a cada peça e a ouvir o que tinha gravado antes, coisa que nunca fiz no passado por acreditar que a verdade vem do momento. Mas a verdade pode também vir da exploração’.

E se ‘Trane’ não nos deixa esquecer o ‘lugar’ de onde Lakecia emerge neste novo trabalho, transformando o som do seu alto em verdadeiro discurso que tem tanto de meditativo quanto de inquisitivo, já ‘Basquiat’ coloca-nos bem no centro da ‘downtown’ nova-iorquina, deixando que o clamor do trânsito inspire os sopros que se esgueiram entre a pulsante secção rítmica para nos acenderem na imaginação as luzes de uma vibrante cidade que Lakecia, definitivamente, habita no presente, nunca fingindo que a sua música nasce de outro tempo que não este, um lugar de onde o seu olhar tanto alcança as grandes lições (musicais e não só) do passado, como as infinitas promessas do futuro. Este é, sem a menor sombra de dúvida, o tempo desta mulher.”


[Matthew Halsall] An Ever Changing View (Gondwana Records)

Da reportagem do concerto de Matthew Halsall no Misty Fest, em Novembro de 2023:

“Halsall tem falado detalhadamente — incluindo ao Rimas e Batidas — sobre o processo de composição do material que reuniu no seu mais recente álbum, de como o isolamento, contacto com a natureza e as vistas desafogadas o inspiraram a criar uma obra de intensa espiritualidade e carregada de etéreas ambiências. Ao vivo, isso traduz-se numa música profundamente visual, de delicada filigrana tímbrica, com generosas camadas de purpurina aural resultante de muitas pequenas percussões metálicas e não só — no set-up de Halsall há sinos, chocalhos variados e um conjunto de ressoantes peças triangulares que o trompetista nos indica terem sido construídas por ‘um hippy dude de Bristol’ —, mas também, e é importante referi-lo, de subtis bases pré-gravadas usadas que contribuem para a densidade cromática de que esta música também se faz — uma forma de traduzir a tal natureza em constante mudança evocada no título do mais recente álbum de Halsall.

O som de trompete de Halsall é pleno de brilho e definição, claro e absolutamente fluído, mas nunca dominante e muito menos omnipresente. Ele é, na verdade, um líder generoso que cede amplo espaço aos seus companheiros de banda, permitindo que cada um se espraie em solos de enorme elegância. Mas Halsall é também um subtil “maestro” que conduz o colectivo com discretos gestos ou acenos de cabeça, guiando os seus companheiros através dos arranjos, promovendo inflexões de sentido que, no entanto, nunca são dramáticas, antes progressivas e operadas através de longos arcos. A música, bastante modal, é claramente devedora do lado mais ‘espiritual’ do jazz, carregada de claras citações, umas mais óbvias — Alice Roberts a fazer clara vénia à sua homónima antecessora num dos seus mais exuberantes solos —, outras mais rebuscadas — como quando Matthew fez ao trompete aquele mesmo wailing que o vocalista Leon Thomas eternizou na belíssima ‘The Creator Has a Master Plan‘ de Pharoah Sanders. Peças como ‘Tracing Nature’, ‘An Ever Changing View’, ‘Triangles in The Sky’ ou ‘Calder Shapes’ ditaram o domínio do mais recente trabalho de Halsall neste concerto, mas houve igualmente tempo e espaço para se abordar uma peça como ‘Patterns’, do álbum que o trompetista assinou com a sua Gondwana Orchestra em 2014, When The World Was One. Belíssimo concerto a justificar a generosa ovação que recebeu.”


[Matana Roberts] Coin Coin Chapter 5: In The Garden (Constellation)

Da coluna Notas Azuis:

“Com In The Garden, Matana Roberts chega ao quinto capítulo da série conceptual de obras discográficas Coin Coin (que deverá estender-se por 12 volumes), um dos mais sólidos corpos artísticos que o jazz gerou na última década (o primeiro tomo, Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres data já de 2011). Nesta última viagem aos domínios da memória, da luta e da identidade, a saxofonista, clarinetista, compositora e pensadora dirige um dilatado ensemble em que militam Mike Pride e Ryan Sawyer (baterias), Matt Lavelle e Stuart Bogie(clarinetes), Cory Smythe (piano), Mazz Swift (violino), Darius Jones (saxofone alto), Gitanjali Jain (voz) e Kyp Malone (sintetizadores, produção).

O foco, desta vez, é numa antepassada de Roberts que terá sucumbido aos nefastos efeitos de um aborto ilegal. Ou seja, mais um delicado, sério e tocante estudo da experiência negra na América, firmando este quinto volume da série Coin Coin num terreno íntimo, confessional, mas igualmente denotando uma revolta que tem alimentado uma luta histórica em busca de dignidade e igualdade. 

Matana Roberts volta a triunfar nessa sua “pintura mural” (e moral…) das vidas negras adoptando uma narrativa que, desta vez, soa menos fragmentada e mais estruturada e uma estética de colagem que tem origem conceptual no hip hop mas que aqui lhe permite cruzar ecos de folk e de free jazz, de spoken word e balanço bop, de espirituais negros e pós-rock, de diversas práticas sonoras experimentais e até de música de câmara. É a partir dessa amálgama que se tece a densa obra que nos prende, como um vórtice em que irremediavelmente se mergulha, puxando-nos para o centro de um passado que é real, carregado de dor, mas também de superação.”


[Meshell Ndegeocello] The Omnichord Realbook (Blue Note Records)

Da coluna Notas Azuis:

“Um dos temas centrais no álbum é também o mais longo do alinhamento, ‘Virgo’. Envolvente exercício de afrofuturismo (termo que, certamente, a artista questionaria), nesta peça Meshell canta ‘They’re calling me / Back to the stars’ enquanto imagina a libertação espiritual de alguém que foi forçado a atravessar o Atlântico nas entranhas de um navio carregado de corpos negros. ‘De onde é que eu venho? O que é que aconteceu? A quem é que eu pertenço? Vou procurar essas respostas para o resto da minha vida. Esses espíritos que saltaram dos navios negreiros são os meus antepassados na minha mente. Tive de criar um novo mito sobre os meus antepassados, da mesma forma que Sun Ra falava frequentemente’, explica ela.

Musicalmente, esse denso e íntimo lastro emocional rende um trabalho extraordinário. Em ‘Georgia Ave’, a peça que abre o alinhamento, o primeiro som que se esculta é o pulso electrónico lo-fi do Omnichord a que depois se sobrepõe uma guitarra acústica numa espécie de declaração de princípio: é entre estes múltiplos eixos — electrónico e acústico, rítmico e melódico, lento e rápido, solitário e colectivo, escrito e improvisado — que o álbum se vai desenrolando num jogo constante de tensões. A origem das canções fica muitas vezes exposta com o que resiste do Omnichord nos arranjos finais, como se percebe logo depois em ‘An Invitation’, mas a arquitetura final é aí bastante exuberante, carregada de pormenores oferecidos pelos diversos músicos convocados. Na fantástica ‘Omnipuss’, ao pulsar repetivo do Omnichord sobrepõe-se depois um complexo labirinto de poli-ritmos num exercício de afrobeat estilizado que aponta às estrelas, como se Fela Kuti e Sun Ra alguma vez tivessem tocado juntos numa sessão no The Shrine. A guitarra de Jeff Parker desconstrói os blues numa colisão com mais ecos de afrobeat em ‘Clear Water’, tema que no plano vocal percorre o caminho algo longo que existe entre o fervor gospel e o lado mais preachin’ do rap.

Mas ‘Virgo’ é de facto pilar fundamental neste sólido edifício musical: neste tema, Meshell relembra-nos a extraordinária baixista que também é, num arranjo que mais uma vez se revela denso, com múltiplas camadas, com a luz da harpa de Brandee Younger a casar de forma perfeita com a cadência vincada enquanto o colectivo se dirige às tais estrelas que a líder garante estarem a chamá-la. Este tema merece um reprise em ‘Virgo 3’, uma versão alternativa que encerra o alinhamento e em que Brandee Younger cede lugar ao octagenário saxofonista Oliver Lake que assina o arranjo da peça. Mais um extraordinário pedaço de afrofuturismo de complexidade rítmica, harmónica e melódica em que o jazz é apenas uma das coordenadas, com a guitarra incessantemente funk na base a proporcionar um contraponto que nos mantém sempre à beira do abismo.

The Omnichord Real Book é uma auspiciosa estreia de Meshell Ndgeocello na Blue Note, um luxuriante trabalho de fusão de linguagens que a reafirma como uma das mais intrigantes e desafiantes criadoras destes últimos 30 anos. E uma complexa experiência de análise identitária em que a artista mergulha no vasto oceano da música negra para emergir com um trabalho que resulta num envolvente manifesto. Garante-se no final das notas de apresentação deste álbum, disponibilizadas pela Blue Note, que o mantra ‘Watch it burn’ que marca ‘Burn Progression’, um tema que se inspira, tal como a faixa ‘5th Dimension’, no documentário Summer of Soul de Questlove, deriva em parte do clássico manifesto de James Baldwin The Fire Next Time, e isso, sugere enigmaticamente a editora, ‘também dá pistas para o próximo projecto de Ndegeocello na Blue Note’. Óptimas notícias, pois claro. Aguardemos, portanto.”


[Mike Reed] The Separatist Party (We Jazz)

Das notas de lançamento no Bandcamp:

“O baterista, líder de banda e compositor de Chicago Mike Reed apresenta o seu novo trabalho The Separatist Party, co-lançado pela We Jazz Records e Astral Spirits a 27 de outubro de 2023. O álbum conta com a participação de Ben LaMar Gay, Bitchin Bajas e Marvin Tate, e foi escrito e executado como banda sonora para o ensaio jornalístico ‘The Lonely Death of George Bell’ de N.R. Kleinfield”.


[Natural Information Society] Since Time is Gravity (Aguirre)

Da reportagem do concerto da Natural Information Society publicada no Rimas e Batidas:

“Joshua Abrams apresentou-se com o seu guimbri amplificado e ladeado por Lisa Alvarado, responsável pelo harmónium e pelas pinturas que adornavam o palco, como, de resto, o líder fez questão de referir, por Mikel Avery na bateria, Jason Stein no clarinete baixo e, pois claro, com o ultra especial convidado Evan Parker no saxofone soprano. O som grave e de afinação não convencional do instrumento tão presente na cultura gnawa foi o primeiro a ouvir-se: o pulsar do guimbri está na base e no centro da densa escultura sonora do grupo — apresenta os temas, dita o tempo, introduz mudanças. Abrams vai pontuando o grave vibrar do seu guimbri através do uso de pedais, um recurso que lhe permite acentuar breves frases com outra identidade tímbrica. E os seus acenos de cabeça indicam mudanças, lugar para solos, subidas de intensidade ou espaços de (relativa acalmia). Ele é, certamente, o homem do leme que comanda o ritual.”


[Nite Bjuti] Nite Bjuti (Whirlwind Recordings)

O álbum assinado pelo trio Nite Bjuti é, provavelmente, uma das surpresas do ano. Candice Hoyes (vocais, pedais), Val Jeanty (percussões, bateria, electrónica, pedais) e Mimi Jones (baixo, vocais, pedais) são um power trio definitivamente diferente e que por isso mesmo requer atenção.

Das notas de lançamento no Bandcamp:

“Nite Bjuti (ou seja Beleza Nocturna) é um trio experimental improvisado, afro-caribenho e liderado por mulheres, com sede nos EUA, composto pela vocalista Candice Hoyes, pelo químico de som nomeado para o GRAMMY Val Jeanty e pela baixista Mimi Jones — que tecem múltiplas vertentes de narração de histórias usando voz, baixo, electro percussão, gira-discos, tambores haitianos, dança e projecções visuais. O trio foi formado em 2018, depois de Hoyes ter realizado um concerto de Afrofuturismo no Jazz at Lincoln Center, onde é professora, convidando Jeanty a tocar e a colaborar. Esta atuação revelou uma química poderosa que levou a improvisações prolongadas em estúdio e a um convite a Mimi Jones — uma colega professora de Berklee com Jeanty.

Intencionalmente, o trio escolheu a improvisação e todas as 11 faixas deste álbum são inteiramente improvisadas. ‘O som é completamente autêntico e estamos a fazê-lo no local’, explica Jeanty. As faixas foram gravadas após discussões e reflexões entre os músicos, alimentando um ambiente de apoio e profundamente criativo para a criação musical. ‘Ao apoiarmo-nos uns aos outros, estamos a apoiar os nossos ouvintes — entrando na sua vibração’, explica Jones. ‘É um convite para ouvir’, continua Hoyes, ‘é um convite para nos ligarmos. A improvisação pura é tão dependente das ligações que acho que ninguém vai sentir falta da ligação entre nós os três’.”


[Roman Norfleet And Be Present Art Group] Roman Norfleet And Be Present Art Group (Mississippi Records)

Uma recomendação de Angel Bat Dawid que carrega em todos os botões que interessam: Roman Norfleet (vozes, saxes alto e soprano, percussão), Jacque Hammond, Vaughn Kimmons, Mia Raiah, Turiya Raiah (vozes), Darian Anthony Patrick (bateria), Elijah Jamal Asani (percussão) e Andre Raiah (teclados) são um grupo que, de facto, faz por justificar ter escolhido a palavra “Arte” para parte da sua designação.

Das notas de lançamento no Bandcamp:

“LP de estreia dos melhores praticantes de Great Black Music de Portland. Um registo espiritual para todas as idades. Roman Norfleet and Be Present Art Group tocam música profundamente sentida, por vezes terrena e por vezes cósmica. Um trio (saxofone, bateria e órgão) que é aumentado por percussão adicional, vozes elevadas e até uma aparição vocal de uma criança. Este disco vai levá-lo onde precisa de ir. Não perca a história em construção.

Ao longo de seis faixas extensas, Roman Norfleet e o Be Present Art Group vão desde a cerimónia livre até à oração meditativa baseada em groove e à música improvisada. ‘Construímos o nosso próprio tempo’, disse Norfleet, um ato coletivo de libertação através do som. Criado na igreja batista e formado na filosofia hindu/védica de Swamini Turiyasangitanada (Alice Coltrane), o multi-instrumentista e líder de banda de Portland Roman Norfleet percorre uma linhagem da Grande Música Negra e das espiritualidades do mundo na sua estreia pela Mississippi Records. O álbum surgiu a partir de reuniões de tambores no Malcolm X Park de Washington DC — uma bolsa de liberdade construída sobre a improvisação colectiva e o ritmo partilhado. Em Portland, Norfleet reuniu um coletivo de artistas, incluindo Jacque Hammond e membros dos Brown Calculus, para transmitir o espírito dessas sessões em DC.”


[Terrace Martin] Fine Tune (Sounds of Crenshaw / BMG)

Da coluna Notas Azuis:

“Essa mesmíssima ideia e postura parece agora surgir em Fine Tune, o trabalho com que o saxofonista, cantor, produtor e criativo incansável Terrace Martin inaugura, em parceria com a BMG, uma nova série focada no jazz e dada à estampa pela sua Sounds of Crenshaw. Quando antecipou, nas páginas da Spin, este novo trabalho, Martin não foi vago nas coordenadas: ‘Ouvirá algumas coisas tradicionais, ao jeito de Wayne Shorter, e depois algum hip hop pesado com sopros, porque foi por esse jazz que eu e os meus homeboys nos apaixonámos. A BMG acreditou na arte, o que exige muita coragem’. A coragem a que se refere o reconhecido músico e produtor é, precisamente, a que parece necessária para apoiar quem procura explorar uma parte menos celebrada da história.

Terrace Martin, em boa verdade, não se pode queixar de falta de reconhecimento. O sucesso da sua visão também se mede no alargado espectro de colaborações que tem assinado e que lhe têm permitido inscrever o seu nome nos créditos de discos de artistas tão diversos quanto Kendrick Lamar, 2 Chainz e Snoop Dogg, por um lado, ou Herbie Hancock, Stevie Wonder e Robert Glasper, por outro. Também parece que Martin nasceu na família certa: Thundercat, outro notório capitão de iate que navega nas mais cristalinas e tranquilas águas do jazz suave, é seu primo. A sintonia é total, como se depreende.

Com os supergrupos Dinner Party — que inclui o produtor de hip hop 9th Wonder e ainda Kamasi Washington e Robert Glasper — e R+R=NOW — também com Glasper e ainda com Christian Scott aTunde Adjuah, Derrick Hodge, Justin Tyson e Taylor McFerrin —, Martin tem igualmente trabalhado arduamente para eliminar as fronteiras que muita gente acreditava existirem entre o jazz e o hip hop/r&b contemporâneos, criando música que, de facto, se pode — e deve — enquadrar com a tal ‘tradição radical’ a que se referia Francis Gooding. E isso passa também por reclamar práticas, ideias e sonoridades das mãos dos gatekeepers que sempre fizeram questão de criar divisivas e, em última instância, problemáticas categorias — alternativo ou comercial, arte superior ou inferior, elitista ou popular e, imagine-se, jazz e outra-coisa-qualquer-decididamente-inferior.

A provocação de Martin percebe-se logo no título, um double entendre que tanto se poderá traduzir como ‘boa malha’ ou ‘boa música’ (‘that’s a really fine tune’) como por ‘afinação’ ou ‘sintonia’ fina (‘let me just fine tune this instrument’). Este álbum está preenchido de ponta a ponta de ambas as coisas: boa música que vive de uma sintonia fina entre todos os participantes, decididamente a navegarem todos no mesmo comprimento de onda. E que tripulação escolheu Terrace Martin: companheiros dos Dinner Party como o saxofonista Kamasi Washington e o teclista Robert Glasper, mas também outros colaboradores habituais como o organista Cory Henry (um mestre do Hammond B-3), o vocalista James Fauntleroy, o trompetista Keyon Harrold, os contrabaixistas Dominique Sanders ou Derrick Hodge, o baterista Justin Tyson (também de R+R=NOW), a vocalista e flautista Elena Pinderhughes, o percussionista Allakoi Peete, o saxofonista Ben Wendell, o pianista e arranjador Larry Goldings, o baterista Robert ‘Sput’ Searight (que também toca com Snarky Puppy ou uns tipos bem suaves de que já poderão ter ouvido falar chamados Toto), o guitarrista Marlon Williams, as vocalistas Malaya e Alex Isley, a harpista Brandee Younger ou o guitarrista Calvin Keys. Uma tripulação de elite que certamente não destoaria a bordo do Barco do Amor.”


[Yussef Dayes] Black Classical Music (Brownswood Recordings)

Da coluna Notas Azuis:

“Black Classical Music não é, portanto, produto de uma qualquer inexplicável geração espontânea, antes o resultado de uma longa, variada e muito ponderada gestação.

À edição australiana da Rolling Stone, Yussef deu mais explicações sobre o lugar de onde emana a sua arte. ‘Não andei numa escola de música. Tive a oportunidade de estudar com o Billy Cobham, o que foi fantástico; tive professores de bateria, mas a minha formação musical não fez necessariamente parte da academia. Aconteceu fora dela. E não estou a dizer que uma forma de o fazer é certa ou errada, só queria partilhar que há outras formas de fazer as coisas acontecerem. Quando se é adolescente, dizem-nos que temos de ter as melhores notas na escola e que temos de fazer certas coisas para ter sucesso. Penso que há alguma verdade nisso, mas, para mim, foi o facto de fazer o que estava a fazer fora da academia que me permitiu chegar onde estou agora’.

E o lugar a que Yussef Dayes chega com Black Classical Music é de absoluto requinte, um espaço que existe suspenso entre o tal historial longo do passado e as possibilidades ainda inexploradas do futuro, um espaço que é novo porque equilibra dogma e ruptura, tradição e invenção. E com a honestidade da genuína procura como garante da qualidade de que nunca se abdica. Dayes não alcança, compreensivelmente, esse espaço sozinho e neste disco — que é, indubitavelmente uma criação de estúdio, com tudo o que isso tecnicamente implica — reúne os consideráveis talentos dos já mencionados Misch, Venna, Bourt, Palladino e Stacey e ainda do saxofonista Shabaka Hutchings, do guitarrista Miles James, da teclista Laurie Blundell, do trombonista Nathaniel Cross e do seu irmão tubista Theon Cross, da trompetista Sheila Maurice-Grey, de elementos da Chineke! Orchestra e ainda, em vozes, de, entre outros artistas, Masego ou, via sampling, da lenda Leon Thomas, a voz da icónica ‘The Creator Has a Master Plan‘ de Pharoah Sanders.

O impressionante acerca de Black Classical Music é o seu constante estado de fluxo, o facto de apresentar a música não como um retrato estático, antes como um filme ou uma viagem, como uma narrativa em que várias vozes, paisagens, cores e sons surgem em constante debate. Pressentem-se colorações latinas de natureza fusionista, mas há igualmente veementes acenos de cabeça aos sons com que Dayes cresceu na Londres moderna e agitada, do hip hop ao drum & bass, do b&b ao dub. E tudo é pautado por uma naturalidade extrema e uma fluidez que nunca permite que da colisão de forças estéticas contrárias resulte algum choque. A bateria de Dayes é central neste edifício, assumindo-se o seu constante diálogo com o baixo como uma espécie de pilar para a construção sonora geral, sempre pautada pela liberdade, pela excelência dos contributos individuais, mas, sobretudo pela harmonia colectiva que é, certamente, o corolário de um delicado trabalho de tapeçaria sonora criada no estúdio.

“Quero que as pessoas tirem o que quiserem deste álbum”, explicou ainda Dayes à Rolling Stone australiana. “Não há certo ou errado aqui. Nem todas as faixas são instrumentais, mas com a música instrumental, podes encontrar a tua própria narrativa, história ou visão através dela. Eu tinha isso quando estava a crescer, se ouvisse Herbie Hancock ou Miles Davis, isso fazia-me sentir de uma certa maneira. Podia não ser o que o Miles ou o Herbie estavam a sentir na altura, mas a música é assim. Podem ser certas notas, certos ritmos que nos dão uma sensação. Estou a tentar continuar essa linhagem”. Esta é, portanto, música que avança, que nos puxa para o futuro. Música clássica negra contemporânea, urgente e absolutamente necessária.”

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