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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 30/06/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #122: Meshell Ndegeocello

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 30/06/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Meshell Ndegeocello] The Omnichord Real Book (Blue Note)

São já três as décadas de carreira que Meshell Ndegeocello leva desde que lançou o extraordinário Plantation Lullabies, trabalho que contou com apadrinhamento de Madonna na época em que a sua costela empreendedora a levou a fundar o selo Maverick. Talvez acertar logo à primeira ensombre mais do que ilumine o futuro de qualquer artista, mas deste lado do Atlântico, pelo menos, e apesar do ocasional avistamento Bitter, de 1999, Cookie: The Anthropological Mixtape, de 2002, ou Comet, Come To Me, de 2014, são bons exemplos – ficou-se com a ideia, provavelmente errada, de que a sua obra se foi desencontrando das zonas de mais relevante experimentação. Mas o facto de a sua discografia somar uma dúzia de entradas principais entre 1993 e 2018 diz-nos, no mínimo, que a sua capacidade de produção se manteve regular e elevada. E a escuta retrospectiva de outros títulos, como a colecção de versões Ventriloquism, de 2018, sugere que não devíamos ter desviado o olhar por um momento sequer: é assinalável a ousadia de transformar a transparente seda de “Smooth Operator em cabedal negro para vestir enquanto se cruza a cidade a altas horas em cima de uma moto potente (e agora multipliquem isso por 11 exercícios de corajosa apropriação de matéria alheia de elevado calibre, numa lista que além de Sade inclui gente como George Clinton, Prince ou Tina Turner!!).

The Omnichord Real Book é, simultaneamente, o seu primeiro registo em cinco anos, um regresso a criações próprias e a estreia na Blue Note. Não que Meshell tenha agora decidido fazer um disco de jazz. Neste álbum que a vetusta editora nova-iorquina descreve como “deeply jazz-influenced” cabe de tudo um pouco: soul e funk, afrobeat e derivas espirituais meditativas, arte pop angular, jazz cósmico, blues, rock, dub e até electrónica lo-fi digna de Stereolab.

Explica a artista que durante a pandemia uma série de encomendas para trabalho em bandas sonoras para séries televisivas a levou até perto da exaustão, obrigando-a a longas horas passadas diante do computador, quer em trabalho de composição, quer em longas reuniões com produtores e guionistas. “Descobri que trabalhar no computador começava a deprimir-me”, contou a artista à sua nova editora. “O Omnichord deu-me uma forma de trabalhar melodias e ideias sem ter de olhar para um ecrã. Tenho trabalhado em computadores desde o meu quarto disco. Queria deixar de olhar para a música e apenas tocar e ouvir a música.” O instrumento electrónico (que deu nome a uma muito activa editora portuguesa) parece um brinquedo, mas pode ser uma ferramenta criativa muito intuitiva e eficaz ao permitir rapidamente alinhar ideias com pulso rítmico e esboços harmónicos e melódicos.

Por outro lado, The Omnichord Real Book foi criado durante um período em que Ndegeocello foi obrigada a lidar com o desaparecimento dos seus progenitores. Foi nesse processo que encontrou o primeiro Real Book que o seu pai, saxofonista de jazz com uma longa carreira no exército americano, lhe ofereceu para que ela o pudesse acompanhar, ainda adolescente, nalguns dos seus gigs, quando já viviam em Washington (Meshell nasceu na Alemanha, onde o seu pai estava estacionado, em finais dos anos 60). Um Real Book é um livro que agrega instruções rápidas, lead sheets, para que um músico possa acompanhar um conjunto específico de temas. Na conversa que manteve com Don Was na rubrica em vídeo First Look, o actual presidente da Blue Note pergunta se um Real Book é um livro com pautas de standards, mas Meshell não apenas questiona o termo “standard”, como explica que num Real Book constam apenas as mais básicas instruções para um certo reportório que uma determinada banda possa andar a tocar, como a melodia principal e mudanças de acordes, por exemplo, o suficiente para que um músico possa, se não estiver familiarizado com esse reportório, “fingir” que o conhece.



Este novo álbum conta com produção do saxofonista Josh Johnson e recorre a uma série de aliados habituais: além de Johnson em saxofones acústicos e sintetizados, escutam-se ainda, ao longo das suas 18 faixas, contributos do teclista Jebin Bruni, do guitarrista Chris Bruce (que foi quem presenteou o Omnichord a Meshell) e dos bateristas Abe Rounds e Deantoni Parks. Uma das marcas distintivas de The Omnichord Real Book, no entanto, é a impressionante lista de convidados especiais convocados para o estúdio: nas suas faixas participam o guitarrista Jeff Parker, o vibrafonista Joel Ross, o trompetista Ambrose Akinmusire, a harpista Brandee Younger, o baterista Mark Guiliana, o baixista Burniss Travis II, os teclistas Julius Rodriguez, Corey Henry e Jason Moran e vocalistas como Joan As Police Woman, Sanford Biggers, Hanna Benn, Thandiswa e ainda os HawtPlates (Justin Hicks, Kenita-Miller Hicks e Jade Hicks). Sinal claro do elevado grau de respeito que Meshell Ndegeocello comanda entre os seus pares.

No alinhamento de The Omnichord Real Book encontra-se uma peça importante, “Gatsby”, canção de Samara Pinderhughes de que Mershell se socorre (e esta é mesmo a expressão certa…) para expor o que lhe vai na alma: “I’ve been saying things I don’t believe. I’ve been doing things that just ain’t me”. Não se percebe exactamente se a artista se refere à sua obra ou a coisas ditas e feitas na sua vida pessoal, mas a dor é inequívoca. E isso oferece a chave para descodificar um trabalho denso em que vai largando, a espaços, outras confissões: “I’ve been shakin, I fear I’ve lost my way”, admite ela em “An Invitation” ou, na belíssima balada “Perceptions”, e em jeito de mantra repetido sobre o piano de Jason Moran, “Don’t let the outside world / Distract you from your inner world”.

Um dos temas centrais no álbum é também o mais longo do alinhamento, “Virgo”. Envolvente exercício de afrofuturismo (termo que, certamente, a artista questionaria), nesta peça Meshell canta “They’re calling me / Back to the stars” enquanto imagina a libertação espiritual de alguém que foi forçado a atravessar o Atlântico nas entranhas de um navio carregado de corpos negros. “De onde é que eu venho? O que é que aconteceu? A quem é que eu pertenço? Vou procurar essas respostas para o resto da minha vida. Esses espíritos que saltaram dos navios negreiros são os meus antepassados na minha mente. Tive de criar um novo mito sobre os meus antepassados, da mesma forma que Sun Ra falava frequentemente”, explica ela.



Musicalmente, esse denso e íntimo lastro emocional rende um trabalho extraordinário. Em “Georgia Ave”, a peça que abre o alinhamento, o primeiro som que se esculta é o pulso electrónico lo-fi do Omnichord a que depois se sobrepõe uma guitarra acústica numa espécie de declaração de princípio: é entre estes múltiplos eixos – electrónico e acústico, rítmico e melódico, lento e rápido, solitário e colectivo, escrito e improvisado – que o álbum se vai desenrolando num jogo constante de tensões. A origem das canções fica muitas vezes exposta com o que resiste do Omnichord nos arranjos finais, como se percebe logo depois em “An Invitation”, mas a arquitetura final é aí bastante exuberante, carregada de pormenores oferecidos pelos diversos músicos convocados. Na fantástica “Omnipuss”, ao pulsar repetivo do Omnichord sobrepõe-se depois um complexo labirinto de poli-ritmos num exercício de afrobeat estilizado que aponta às estrelas, como se Fela Kuti e Sun Ra alguma vez tivessem tocado juntos numa sessão no The Shrine. A guitarra de Jeff Parker desconstrói os blues numa colisão com mais ecos de afrobeat em “Clear Water”, tema que no plano vocal percorre o caminho algo longo que existe entre o fervor gospel e o lado mais preachin’ do rap.

Mas “Vigo” é de facto pilar fundamental neste sólido edifício musical: neste tema, Meshell relembra-nos a extraordinária baixista que também é, num arranjo que mais uma vez se revela denso, com múltiplas camadas, com a luz da harpa de Brandee Younger a casar de forma perfeita com a cadência vincada enquanto o colectivo se dirige às tais estrelas que a líder garante estarem a chamá-la. Este tema merece um reprise em “Virgo 3”, uma versão alternativa que encerra o alinhamento e em que Brandee Younger cede lugar ao octagenário saxofonista Oliver Lake que assina o arranjo da peça. Mais um extraordinário pedaço de afrofuturismo de complexidade rítmica, harmónica e melódica em que o jazz é apenas uma das coordenadas, com a guitarra incessantemente funk na base a proporcionar um contraponto que nos mantém sempre à beira do abismo.

The Omnichord Real Book é uma auspiciosa estreia de Meshell Ndgeocello na Blue Note, um luxuriante trabalho de fusão de linguagens que a reafirma como uma das mais intrigantes e desafiantes criadoras destes últimos 30 anos. E uma complexa experiência de análise identitária em que a artista mergulha no vasto oceano da música negra para emergir com um trabalho que resulta num envolvente manifesto. Garante-se no final das notas de apresentação deste álbum, disponibilizadas pela Blue Note, que o mantra “Watch it burn” que marca “Burn Progression”, um tema que se inspira, tal como a faixa “5th Dimension”, no documentário Summer of Soul de Questlove, deriva em parte do clássico manifesto de James Baldwin The Fire Next Time, e isso, sugere enigmaticamente a editora, “também dá pistas para o próximo projecto de Ndegeocello na Blue Note”. Óptimas notícias, pois claro. Aguardemos, portanto.


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