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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/07/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #123: Terrace Martin

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/07/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Terrace Martin] Fine Tune (Sounds of Crenshaw / BMG)

O jazz bonito, elegante, escorreito, bem tocado, afinado, com groove, melodias orelhudas, estruturas simples, gravado em estúdio com amplo recurso a tecnologia, com assumida aversão à disrupção, lamento profundamente informar, também é jazz. Nem só de implosão de regras harmónicas, de negação da repetição, de fuga à tonalidade, com todos os músicos a comungarem no presente, de invenção instantânea, etc., se faz o exercício de liberdade. 

Francis Gooding assinou, no terceiro número da revista We Jazz, Tetragon, um excelente ensaio em que propõe um novo enquadramento para o que se convencionou chamar smooth jazz, esvaziando o termo de qualquer sentido depreciativo para o reapresentar como uma tradição radical”. No long read que se espraia por 12 páginas da publicação finlandesa, Gooding argumenta, listando uma série de nomes acima de qualquer suspeita, de Eddie Gale a um tal de Miles Davis, que esta corrente de jazz – associada a ambições comerciais (perfeitamente legítimas) e com uma componente de evidente romantismo de que o jazz mais resguardado pela Intelligentsia se parecia ter esquecido, tão embrenhado que foi ficando, em paralelo com as lutas dos Direitos Civis, num ardente fervor revolucionário – foi naturalmente evoluindo a partir de cenas mais reconhecidas, como o soul jazz e o jazz espiritual dos anos 60 ou as derivas de fusão da década de 70.

Recentemente, num post na sua página Substack, Honest Broker, o escritor e crítico de jazz Ted Gioia assumiu publicamente a sua paixão (mais ou menos recente) pelos Steely Dan, admitindo no texto que nem sempre tinha sido assim: Naqueles tempos, eu achava que a música dos Steely Dan era demasiado elegante. Era demasiado polida e radiofónica, sem arestas. E isso significava (ou assim eu pensava na altura) que devia ser superficial e artificial”. Mais adiante na sua reflexão, o conceituado autor explica como se foi rendendo aos argumentos puramente musicais apresentados pelo grupo de Aja: Francamente, fiquei estupefacto quando ouvi a gravação dos Steely Dan de “East St Louis Toodle-Oo” – um êxito de Duke Ellington de 1927. Walter Becker conseguiu imitar o solo de trompete da gravação original, de Bubber Miley, usando apenas a sua voz e uma talkbox”. A estupefacção permitiu que Gioia concluísse algo: Isso foi um desvio radical da estética pop que eu associava àqueles ratos de estúdio”.

No presente, muitos têm sido, de ambos os lados do Atlântico, os músicos apostados numa recuperação da estética que a crítica especializada, como Ted Gioia admitiu, durante tanto tempo desvalorizou ou até mesmo veementemente renegou. Em 2020, a propósito de Wu Hen, de Kamaal Williams, eu procurava por aqui explicar que o patrão da Black Focus” assumia aí “a ambiciosa missão de criar uma ponte entre o lado mais sofisticado do jazz de fusão e a presente cena britânica em que o jazz vive de alianças com o espírito emergente dos clubes pós-quase tudo (hip hop, broken beat, house, dubstep, grime…). Mas, muito mais do que agarrar em marcas específicas do tal jazz que se passeava pelas frequências mais comerciais das rádios nos anos 70 e 80 do século passado, a Kamaal Williams interessa-lhe a aura, o espírito que emanava desses discos”. 

Essa mesmíssima ideia e postura parece agora surgir em Fine Tune, o trabalho com que o saxofonista, cantor, produtor e criativo incansável Terrace Martin inaugura, em parceria com a BMG, uma nova série focada no jazz e dada à estampa pela sua Sounds of Crenshaw. Quando antecipou, nas páginas da Spin, este novo trabalho, Martin não foi vago nas coordenadas: “Ouvirá algumas coisas tradicionais, ao jeito de Wayne Shorter, e depois algum hip hop pesado com sopros, porque foi por esse jazz que eu e os meus homeboys nos apaixonámos. A BMG acreditou na arte, o que exige muita coragem”. A coragem a que se refere o reconhecido músico e produtor é, precisamente, a que parece necessária para apoiar quem procura explorar uma parte menos celebrada da história.

Terrace Martin, em boa verdade, não se pode queixar de falta de reconhecimento. O sucesso da sua visão também se mede no alargado espectro de colaborações que tem assinado e que lhe têm permitido inscrever o seu nome nos créditos de discos de artistas tão diversos quanto Kendrick Lamar, 2 Chainz e Snoop Dogg, por um lado, ou Herbie Hancock, Stevie Wonder e Robert Glasper, por outro. Também parece que Martin nasceu na família certa: Thundercat, outro notório capitão de iate que navega nas mais cristalinas e tranquilas águas do jazz suave, é seu primo. A sintonia é total, como se depreende.

Com os supergrupos Dinner Party — que inclui o produtor de hip hop 9th Wonder e ainda Kamasi Washington e Robert Glasper — e R+R=NOW — também com Glasper e ainda com Christian Scott aTunde Adjuah, Derrick Hodge, Justin Tyson e Taylor McFerrin —, Martin tem igualmente trabalhado arduamente para eliminar as fronteiras que muita gente acreditava existirem entre o jazz e o hip hop/r&b contemporâneos, criando música que, de facto, se pode — e deve — enquadrar com a tal “tradição radical” a que se referia Francis Gooding. E isso passa também por reclamar práticas, ideias e sonoridades das mãos dos gatekeepers que sempre fizeram questão de criar divisivas e, em última instância, problemáticas categorias — alternativo ou comercial, arte superior ou inferior, elitista ou popular e, imagine-se, jazz e outra-coisa-qualquer-decididamente-inferior.

A provocação de Martin percebe-se logo no título, um double entendre que tanto se poderá traduzir como “boa malha” ou “boa música” (“that’s a really fine tune”) como por “afinação” ou “sintonia” fina (“let me just fine tune this instrument”). Este álbum está preenchido de ponta a ponta de ambas as coisas: boa música que vive de uma sintonia fina entre todos os participantes, decididamente a navegarem todos no mesmo comprimento de onda. E que tripulação escolheu Terrace Martin: companheiros dos Dinner Party como o saxofonista Kamasi Washington e o teclista Robert Glasper, mas também outros colaboradores habituais como o organista Cory Henry (um mestre do Hammond B-3), o vocalista James Fauntleroy, o trompetista Keyon Harrold, os contrabaixistas Dominique Sanders ou Derrick Hodge, o baterista Justin Tyson (também de R+R=NOW), a vocalista e flautista Elena Pinderhughes, o percussionista Allakoi Peete, o saxofonista Ben Wendell, o pianista e arranjador Larry Goldings, o baterista Robert “Sput” Searight (que também toca com Snarky Puppy ou uns tipos bem suaves de que já poderão ter ouvido falar chamados Toto), o guitarrista Marlon Williams, as vocalistas Malaya e Alex Isley, a harpista Brandee Younger ou o guitarrista Calvin Keys. Uma tripulação de elite que certamente não destoaria a bordo do Barco do Amor.



No trailer de um documentário a estrear sobre este projecto, Martin e demais colaboradores enfatizam outra ideia que é bastante explorada no já mencionado ensaio da We Jazz, a de que, ao contrário do que é tantas vezes referido pela crítica que mais desmerece este género, o facto do jazz ser smooth não significa que tenha descartado a livre invenção e o improviso. Neste álbum, garante-se, os músicos também tocam não sabendo muitas vezes o que vai acontecer no próximo segundo. E isso também ajuda a manter estas tranquilas tempestades interessantes.

É curioso que Fine Tune arranque com uma óbvia vénia a África, com a síncope de elegância afrobeat a suportar a fantástica “Degnam Dreams”, peça em que a guitarra de Marlon Williams oferece um amplo palco para o festival proporcionado pela secção de metais orquestrada, certamente, pelo espírito de Fela Anikulapo Kuti. Logo depois chega a fantástica versão de “Snooze”, de SZA. O original é um pedaço de céu feito canção, uma bedroom jam do mais elevado calibre, mas nas mãos de Martin a malha torna-se remédio ainda mais perfeito para combater baixas taxas de natalidade, banda sonora ideal para paixões com infinity pools, cocktails coloridos com chapelinho e palmeiras recortadas sobre fundo azul. E com o saxofone de Terrace Martin em modo Sade — e em contraponto com uma harmónica pedida emprestada a Stevie Wonder — esta é mesmo uma daquelas faixas com elevado replay value. Já agora, “Too Late” — tema em que brilham o elegante crooning de James Fauntleroy e a doce voz e flauta de Elena Pinderhughes, com direito a solo solarengo e tudo — traz cadência de inspiração brasileira de elevado teor calórico. Nas primeiras três faixas do álbum há três tiros em cheio no alvo e uma espécie de declaração de intenções — entre uma África sofisticada e imaginada, um r&b de seda pura e uma alma tropical vive um Fine Tune de sérias ambições artísticas.

E se no baixo obeso que surge em “Mind Your Business” ou “Frowning Smiles” se pode entender que o presente é, decididamente, o palco principal deste registo, a forma como na surpreendente “Final Thought”, a piéce de resistance do alinhamento, se equaciona a que soaria um encontro entre os Soft Machine e Pharoah Sanders, confirma que Terrace Martin sabe muito bem olhar para a história e aplicar as suas melhores conquistas no presente. Aqui, Kamasi Washington e Cory Henry, com dois estonteantes solos, puxam dos seus mais polidos galardões e deixam absolutamente claro que este não é, nem de perto, nem de longe, disco inócuo de grooves para se escutarem em fundo, agarrando-nos na atenção pelos colarinhos e sem pedir licença. Como tem que ser.

Sem uma única peça deslocada, este é um disco perfeito para se escutar em imersiva alta-definição, com um bom par de auscultadores, para que nada nos escape. E os arranjos revelam-se tão densos que cada nova audição atenta é recompensada com subtis e preciosos detalhes: o atmosférico baixo que envolve a voz de Malaya na belíssima “Afraid”, a delicada filigrana melódica tecida por Brandee Younger que serve de perfeito contraponto à voz processada de Martin em “Damage”, ou a eloquência da guitarra de Calvin Keys que traz subtil balanço de bossa nova para uma balada guiada por piano acústico. Primeira classe.

Este é, claramente, disco merecedor de figurar nas listas que dentro de seis meses oferecerão o melhor de 2023 ao futuro. Pelo menos nas que já se vão fabricando deste lado.


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