pub

Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 31/07/2023

Refinado transe.

Susana Santos Silva e Natural Information Society + Evan Parker no Jazz em Agosto’23: e já que o tempo é gravidade, flutuemos

Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 31/07/2023

No passado sábado, o terceiro dia do extraordinário programa da 39ª edição do Jazz em Agosto cumpriu-se com as apresentações da trompetista Susana Santos Silva no pequeno auditório da Calouste Gulbenkian e da Natural Information Society de Joshua Abrams com Evan Parker no anfiteatro ao ar livre.

Ar livre é, aliás, algo que Susana Santos Silva entende muito bem. Esta sua solitária performance (na jornada seguinte do festival, que ontem teve lugar, juntar-se-ia à Ekhidna de Hedvig Mollestad) joga, precisamente, com a tensão entre o “ar livre” que circula através do seu trompete e o seu “aprisionamento” via microfones para posterior processamento electrónico.

A apresentação acentua a intenção imersiva através da projecção de um vídeo com diferentes imagens que vão pontuando as etapas da viagem para que a artista nos convida. Uma viagem interior, tão real quanto imaginada, sensorial, onírica, mas ainda assim uma viagem. A dada altura, ela mesmo declara “logo segue viagem celebrando o efémero”. A lâmpada filmada em extremo close up que revela a pequena e, lá está, efémera vida alada atraída pela luz; a cidade invertida captada provavelmente através de uma janela de comboio; o skyline de uma floresta em nocturno contraste com o céu; uma alva mancha de nuvens densas… Sobre esses “cenários” desagua uma música em constante busca de si mesma, uma música que se transforma e processa em tempo real, com Susana a expelir ar do seu trompete que é abordado de todos os ângulos, com ar soprado pelo bocal ou pelas válvulas, mas também a usar o que pareceu um pequeno flautim e uma melódica, como se estudasse o que acontece a esse ar livre quando soprado através de diferentes mecanismos. E também há ar moldado em palavras, com Susana a dizer a sua poesia com um tom sério, mas sem contornos emocionais, deixando ao peso do texto toda a responsabilidade.

O trabalho que Susana depois opera sobre todo esse ar feito ruído ou palavra é de inquisitiva minúcia, com o processamento a levar essa difusa matéria sonora a conviver com gravações de campo, quase sempre em abstracta suspensão, longos drones ou pequenos ruídos que se cruzam para criar uma amálgama tão estranha quanto fascinante.

Susana Santos Silva tem-se afirmado — através da sua generosa discografia ou na resposta que oferece às múltiplas solicitações que lhe chegam (e o Rimas e Batidas viu-a em tempos recentes ao lado de Carlos Bica na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, a solo em Serralves, Porto, ou com Kaja Draksler no gnration, em Braga) — como uma das mais relevantes performers nacionais nos domínios do jazz e da música livre e improvisada, com justa projecção internacional. Um estatuto atingido graças a uma muito séria ética de trabalho, por um lado, mas também apoiado numa criatividade que não parece conhecer limites e que é resolutamente destemida. Tudo isso se tornou claro nesta actuação em que Susana foi guia numa viagem ao lado de lá — o da consciência, talvez. O que é curioso é que não se pode ficar com a certeza absoluta de que ela soubesse para onde se dirigia. Não importa. O que interessa é ir.



Com o calor ameno que se fazia ainda sentir no jardim da Fundação antes da noite envolver a vegetação aceitou-se o convite para se repousar um pouco antes da segunda etapa do dia, aquela que nos conduziu até ao anfiteatro de uma Gulbenkian em física transformação — o Centro de arte Moderna deverá reabrir no próximo ano, quando, de resto, este festival festejará a sua 40ª edição — para a performance da Natural Information Society com Evan Parker.

O espaço encontrava-se absolutamente lotado e uma vibração de antecipação qualquer parecia unir todos os presentes numa mesma frequência, talvez porque a mais recente edição do ensemble fluído dirigido por Abrams, o álbum lançado há alguns meses na Aguirre Since Time Is Gravity, tenha estabelecido o tom e apontado a direcção para o que ali poderia acontecer. E o concerto consistiu numa longa peça, ou num curto conjunto de peças que se entrelaçaram e diluíram umas nas outras dando essa sensação, que nos elevou a todos através da sua natural propensão hipnótica.

Joshua Abrams apresentou-se com o seu guimbri amplificado e ladeado por Lisa Alvarado, responsável pelo harmónium e pelas pinturas que adornavam o palco, como, de resto, o líder fez questão de referir, por Mikel Avery na bateria, Jason Stein no carinete baixo e, pois claro, com o ultra especial convidado Evan Parker no saxofone soprano. O som grave e de afinação não convencional do instrumento tão presente na cultura gnawa foi o primeiro a ouvir-se: o pulsar do guimbri está na base e no centro da densa escultura sonora do grupo — apresenta os temas, dita o tempo, introduz mudanças. Abrams vai pontuando o grave vibrar do seu guimbri através do uso de pedais, um recurso que lhe permite acentuar breves frases com outra identidade tímbrica. E os seus acenos de cabeça indicam mudanças, lugar para solos, subidas de intensidade ou espaços de (relativa acalmia). Ele é, certamente, o homem do leme que comanda o ritual.

Ao seu lado, o incrível Mikel Avery. Precisaria de algum esforço para recordar outro baterista que possa nos últimos tempos ter demonstrado tamanha capacidade de contenção e tão impressionante virtuosismo com um kit tão económico e um espaço rítmico tão reduzido. A Avery competiu assegurar a cadência do colectivo, expondo um seguro e muito criativo trabalho de pulsos, com os pratos e a tarola a colorirem a cadência circular imposta pelo bombo. Absolutamente estonteante a sua energia que nunca esmoreceu em hora e meia de apresentação.

Talvez por causa de Avery, a ideia de abandono rítmico no centro da pista da rave nunca esteve muito distante. Mas esta é uma rave no meio deserto, uma rave em que aos Masters Musicians of Jajouka se juntam Terry Riley e John Coltrane e músicos da Party de Nusrat Fateh Ali Khan, uma rave em que o espírito dança tanto quanto o corpo e uma rave em que não se faz sentir a força da gravidade já que todos flutuamos impulsionados pela incessante repetição.

Sobre essa sólida, vibrante e propulsiva vibração conjurada por Abrams e Avery estendia-se o amplo tapete harmónico de Lisa Alvarado que, uma vez mais, fez muito com um instrumento de limitações naturais, mas de personalidade vincada. Essa sua tapeçaria de ar expelido pelo fole do seu harmónio envolve e acentua o papel dos sopros: Jason Stein é só nervo e alma, com o som fundo do seu clarinete a ser sombra para a luz do mestre Evan Parker que meteu em jogo todos os seus amplos recursos — soou inventivo, desafiante, criativo como sempre, mas também não se escusou a evocar a memória de Coltrane a dada altura, vénia de um mestre a outro que se encaixou de forma perfeita nesta enérgica e realmente entusiasmante apresentação. Duvido que no Boom o transe tenha sido desta estirpe tão refinada.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos