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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 01/07/2023

Uma experiência a repetir.

Carlos Bica e Susana Santos Silva no Causa|Efeito’23: duas gerações distintas, uma nova língua comum

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 01/07/2023

O encontro, alertou logo a abrir Pedro Costa, foi inédito e representou uma “estreia mundial”. A classificação do concerto que ontem à noite teve lugar no Auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa não é exagerada, já que tanto o contrabaixista, que actualmente reside em Berlim, Carlos Bica, como a trompetista, que vive em Estocolmo, Susana Santos Silva, são nomes de primeiríssima linha das facções mais avançadas do jazz e da música improvisada internacionais, gozando ambos de mais do que justificado prestígio que os tem levado a pisar relevantes palcos um pouco por todo o globo.

“Como é que isto nunca aconteceu?” A pergunta foi lançada no momento de introdução dos artistas pelo programador e produtor do Causa|Efeito, novíssimo festival de jazz lisboeta que hoje tem a sua jornada final no Campus da Universidade Nova em Campolide. “É um mistério”, desabafou ainda Pedro Costa. O “mistério” resolveu-se da melhor forma numa apresentação que terá forçosamente que constar das listas que derem conta do que de melhor aconteceu nos palcos nacionais em 2023, aconteça o que acontecer nos meses da segunda metade do ano.

Ao seu já longo e multifacetado currículo, Pedro Costa, que é também o homem do leme da editora Clean Feed e instigador de muitos outros encontros inéditos e felizes, deverá adicionar o de “descobridor” de novos espaços para o jazz. O campus da Nova não só fica numa zona central, de fácil acesso, com espaços para estacionamento, como se revelou confortável e com características ideais para receber um evento desta natureza. Deseja-se, obviamente, que a semente agora plantada dê bastante fruto.

Carlos Bica e Susana Santos Silva são duas referências incontornáveis, como já se deixou claro, mas de gerações distintas e com percursos igualmente diferenciados. O contrabaixista tem uma longa discografia que atravessa muitos géneros e a melhor parte de quatro décadas ao passo que a trompetista se iniciou nas gravações já neste milénio, tendo, ainda assim, acumulado muitas dezenas de entradas no seu catálogo pessoal. Ambos são donos de uma vasta experiência multi-idiomática, mas — e talvez até isso seja mais importante — ambos possuem uma voz distinta nos seus respectivos instrumentos.

E essa singela palavra – “voz” – é até importante para se descrever o que ontem aconteceu no palco principal do Causa|Efeito. E não necessariamente em sentido metafórico: claro que as vincadas personalidades artísticas que ambos possuem se traduzem em originais abordagens aos seus instrumentos e em tons próprios muito definidos, mas a verdade é que houve momentos no concerto de ontem em que tanto o contrabaixo como o trompete pareceram “cantar” acercando-se de forma algo surpreendente do registo da voz humana. Ou isso ou a mente prega partidas quando a música é de tal qualidade que nos transporta para uma qualquer dimensão alternativa em que tudo é possível.

O duo combinou a execução de excertos de composições próprias com livre improvisação emoldurada por estruturas pré-gizadas. Bica, como sempre, pareceu arrancar ao seu próprio âmago físico toda a força telúrica, toda a poesia, toda a beleza, todo o nervo de que vive a sua música, soando sempre gigante, quer quando usou o arco, quer quando dedilhou o contrabaixo com som cuidadosamente esculpido através da conjugação de amplificador, microfones e efeitos. O seu tom é fundo e nobre, amplo e bem capaz de se erguer do silêncio e subir até ao trovão.

Santos Silva, por outro lado, é luz ofuscante, outra exploradora da totalidade do instrumento, capaz de transformar ar em vibração vital, com uma capacidade singular e até algo insólita de percorrer a enorme distância entre a mais funda tradição e a mais radical invenção livre numa única frase, num conjunto breve de notas. Ontem, antes do trompete, só o seu corpo, e depois só o microfone que captava para a sala um som puro, sem qualquer processamento adicional. Uma opção de transparência total que parece traduzir alguma reverência pela ocasião. E que lhe vinca o discernimento e a precisão.

O entendimento da música como coisa viva e indivisa, como coisa vital e urgente que não se cinge a códigos, que existe para lá das regras e que se reinventa no agora pelo poder livre da imaginação, é algo que os dois partilham e que se sentiu de forma clara nos uníssonos que com arrebatadora elegância ontem executaram. E o que ficou por demais evidente no concerto de deste Causa|Efeito é que Susana e Carlos falam uma língua que só eles conhecem, mas que, magicamente, talvez, todos entendemos.

Não só urge a repetição desta experiência como se deseja a sua fixação em disco.


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