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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 25/04/2024

Novos sentidos e significados para uma música que troca as voltas a cadências e códigos estilísticos de géneros.

SAMALANDRA na Collect: o futuro de qualquer coisa nova

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 25/04/2024

Eu vi o futuro de alguma coisa e o seu nome é SAMALANDRA. Este “alguma coisa” nem deveria merecer discussão: é jazz que não quer ser jazz de outro lado que não seja do futuro, daqui. Mas também é uma música com assinalável grau de complexidade rítmica que se deleita em pertencer a este momento exacto da história: a teclista Débora King, o baixista Tiago Martins e o baterista João Neves convocam com autoridade plena para dentro da sua música outras coordenadas que ultrapassam o que histórica e academicamente se designa como jazz. Claro que eles sabem isso perfeitamente: todos exibem canudos dessa experiência académica — Débora e Tiago licenciaram-se em Jazz na ESMEL, João formou-se na Universidade de Évora. Quanto ao jazz, estamos arrumados já que eles passaram nos exames. Mas há na música de SAMALANDRA uma cadência soluçada que vem do hip hop desquantizado que J Dilla deu ao mundo, há igualmente groove sensual aprendido no disco, passagens 4×4 que se afinaram a dançar na pista do Lux e tanto mais. Não fui só eu que vi e ouvi, no entanto: a Collect, espaço-oásis no deserto-gentrificado do Cais do Sodré que é loja de discos, mas também é bar, encheu-se de amigos e desconhecidos que certamente terão sentido o mesmo.

Perante uma sala cheia de rostos conhecidos — Tiago também usa o seu baixo em palco com o Expresso Transatlântico e os irmãos Varela lá estavam para o aplaudir a ele e aos seus companheiros, bem como músicos de Mazarin, por exemplo —, esta SAMALANDRA bem trabalhadora desfilou todos os temas do seu homónimo trabalho de estreia — “Artificiência Inteligencial”, “Chelia”, “Elvira”, “Sépia”, “Grafititi” e “R.F.I.” —, mas também alguns inéditos como “Super 8”, “U.F.O.”, “Girafa” e “Nawi”, esta última baptizada com o mesmo nome de um pequeno bicharoco de estimação que inspirou a designação escolhida pelo trio.

Ouvindo SAMALANDRA ao vivo entende-se que o fino humor e manipulação linguística ecoados não apenas no nome escolhido para o trio, como nalgumas das suas canções (“Grafititi”, “Artificiência Inteligencial”), tem perfeita equivalência na sua música: este trocar de voltas a sílabas em busca de novos sentidos e significados existe também na música que troca as voltas a cadências, a códigos estilísticos de géneros, em busca de um novo lugar. É a esse jazz-que-não-é-bem-jazz-mas-também-ainda-é-isso-e-mais-alguma-coisa que SAMALANDRA chega com plena desenvoltura.

Débora e os seus companheiros são músicos de elevadíssima craveira, diga-se: a teclista assume as maiores despesas decorrentes dos solos, extraindo do Nord Lead e do pequeno Korg que usa (em tandem com um par de pedais) mel de fusão puro que parece ter tanto do Mwandishi que sempre existiu em Herbie Hancock como do homem dos boletins meteorológicos que Joe Zawinul também foi. E à sua proficiência digital expressada sobretudo com a sua mão direita, Débora ainda acrescenta o uso da voz, robotizada por efeitos algumas vezes, transparente e inocente noutras. Sempre apropriada. Junte-se depois a isto uma secção rítmica endiabrada, com um João Neves tão glorioso como o outro na combinação da electrónica dos pads com a elegância acústica do kit convencional que toca com a precisão de um relógio suíço que de vez em quanto gosta de dar pequenos saltos no tempo; e um baixista que faz jus à designação anfíbia do trio exibindo frases de fluidez aquática, que circulam entre a tarola e os arpégios dos sintetizadores com determinação absoluta e uma elasticidade que nos impele a todos à dança. Tudo junto é ouro. O som do trio, trabalhado ao vivo pelo técnico de som Pedro Ferreira (que também misturou Pendular dos Mazarin), é coeso, fluído e cristalino como água dos Alpes. Tudo certo, portanto.

O que é que falta, então? Absolutamente nada, exceptuando atenção de muitos mais ouvidos, palcos maiores e doses generosas de atenção tanto por parte dos porteiros que só deixam entrar no grande bar do jazz os “clientes” com garrafa reservada como por parte dos que passam a vida a desejar que o jazz saia do “pedestal” (o que quer que isso possa ser…) e teimam em não saírem eles mesmos do sofá para irem saborear o futuro onde ele se ensaia, que é no presente, pois claro. E pronto, é isto.


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