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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/04/2024

Eventos extremos intuitivos.

Portalegre JazzFest’24 — Dia 3: tocar com intensa emoção é mexer por dentro

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/04/2024

Percorrer as serranias para retemperar forças que se necessitam para viver o que as noites de concertos reservam foi uma estratégia seguida com boa vontade. Contudo, para além da disponibilidade corporal há que contar com o tempo que faz e nos diz até onde se vai. Entre trovoadas que se juntavam para conjugar contínuos trovões em aceleração no espaço, uma gota súbita e fria prometia mais e ensopar quem a quisesse aceitar em campo aberto. O confronto com os elementos vindos do espaço acima de nós era inevitável. Resignou-se a vontade de ir mais além e o regresso fez-se ao som de bolas de gelo, de proporções surpreendentes, que se desprendiam céu abaixo, rara oportunidade para levar com o embate emocional do que a climatologia vai classificando como eventos extremos. Somos frágeis, mas com  palpitações que se agigantam na experiência do momento. Havia nisso um quê de prenuncio do que a noite traria nos palcos do derradeiro dia de Portalegre JazzFest este ano.

Um dos, se não o mais aguardado dos concertos era agora. Sophie Agnel no piano, com John Edwards no contrabaixo e Steve Noble na bateria. Para os que, no ano passado, presenciaram a prestação em palco no festival Causa|Efeito, em Lisboa, deste mesmo trio cresceu o resumo de ter sido um dos melhores do ano. Motivo de causar o efeito de grande expectativa para quem soube disso mesmo. Além disso, sabíamos de viva-voz o que causa para cada um dos músicos o novo encontro em palco a três. São todos músicos com vastas experiências, mas com uma disponibilidade de partilha em tudo ainda maior, como a primeira vez. Nesta formação assume-se o ideal de estrutura social “sem deus nem chefe”, isto é, a liderança é prescindida a favor de um ideário criativo de condução pela própria música, o efeito do som, e como concerto adiante se entende, muito mais até nos intervalos das notas, no espectro. Como trio têm editados registos que atestam a sua ousadia, audácia e sobretudo emoção. Têm a sua música inscrita em palcos dos quais registaram na Clean FeedMeteo, na passagem em 2012 do homónimo festival de Mulhouse (França), o primeiro dos seus encontros. Na Orchestre National de Jazz (ONJ Records) podemos aceder a Aqisseq, que verte o encontro vivido no Brighton Alternative Jazz Festival em 2016. É um trio que se reúne para tocar em palco, para colocar a sua música em dia, no lugar da emoção. Agnel é uma pianista parisiense, radicada no instrumento como um espaço de intervenção, mais que utilizando um piano preparado, ela mesma prepara-se para o piano, e é antes um piano que é tocado por uma pianista preparada. Edwards é um colossal contrabaixista britânico que contempla a grande herança da improvisação livre, mas facilmente se dispõe para a desafiar e inovar a cada novo momento; difícil é estabilizar a sua presença numa formação, continuamente a tocar com todos, só no JazzFest foi músico com dupla prestação em concertos. Noble, faz totalmente jus ao nome no sentido musical, um enorme senhor, um portentoso baterista londrino que desprende uma carga propulsora marcante e que tem feito com que muitos dos maiores cultivadores da música livre o requisitem, para essa força junto da sua música. Geograficamente poder-se-ia situar este trio algures no canal da mancha, mas dificilmente num ponto concreto, estático e muito menos previsível, absolutamente fora de radar.

Por tudo isso, o palco do Grande Auditório do Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre (CAEP) é, por um tempo bem concreto, o lugar comensurável de criação do irrepetível. Há uma abertura rompante que convoca de imediato os três ao momento, Noble tem esse papel preciso. Desprendem-se em conjuntos os instrumentistas e, mais que isso, os instrumentos pelos músicos numa construção de impulsos criativos, concreta nos elementos da música. O extremo define melhor o que se escuta, na beira das notas tocadas para viver o momento que as separa. Subidas intensas, a pique com patamares sucessivos, das quais abdicam a cada momento de chegada, para viver a queda junto ao silêncio, na busca do vazio. É uma acção dramática, que alimenta a emoção para dela viver o espaço da música. Agnel toca a maior parte do tempo de pé, dança ao piano, está dentro e fora dele, harpeja-o com jogos de uma sensualidade abstracta. Desenha frases contundentes e concretas para definir o espaço entre elas e o que ainda nem se imagina. Toca fisicamente com a ponta dos dedos, que se estendem até aos cotovelos — toca que se farta, sem fartar, toca pelos cotovelos. Ouvem-se plenamente uns aos outros, sem atropelos, os solos aqui são dos três, em simultâneo, no princípio da continuidade, no princípio da igualdade. Edwards é tecnicamente ilimitado no tocar e emocionalmente expandido no resultado, instiga o romper da predefinição do tempo na música. Para isso mesmo dá e recebe, tem conivência exacta com Noble, destroem e galvanizam os compassos. Estabelecem antes uma memória futura, uma vez mais entendida no espectro do campo do tumulto. Num concreto momento emerge em palco um cone sonoro, massivas repetições, elevatório, invariavelmente efémero, concreto na emoção, que se desfaz para um outro plano. Noble desenha um ritmo circular, ciclópico que ciranda com Agnel e Edwards, “dançam” como que numa roda de mãos dadas, estão felizes a tocar, numa catarse que os leva a uma exaustão. O tempo está vivido no espaço da comoção extrema, evento de absoluta extremidade emocional.

No depois, um certo apaziguar, em recatada pausa, pois parecia que nada tinha ficado por ouvir, uma satisfação plena, comovente e consciente do fenómeno, raro e de extrema beleza.



Os Garfo tiveram o merecido destaque de fechar a festa, abrindo palco para a música dos mais jovens músicos de todo o festival. Garfo tocam juntos há cinco anos, são compostos por Bernardo Tinoco no saxofone tenor, João Almeida na trompete, João Fragoso no contrabaixo e mais outro João, Sousa, na bateria. São a expressão recente, deste milénio, do que é ter nascido em liberdade num Abril jazzístico, crescendo a ouvir catálogos criativos, bebendo a água de fontes como a Clean Feed (23 anos), num país onde se deu lugar para um Jazz em Agosto (40 anos). São duas entidades imprescindíveis, contaminantes, responsáveis pelo pujante cenário no que à música criativa diz respeito; o que ouviríamos sem isso ter acontecido seria outra música, menos deste muito mais de agora, certamente. Garfo, que se apresentam entre dois outros marcos, os seus, entre o primeiro disco homónimo e gravado em 2021 para a Clean Feed e o que estão prestes a gravar, o sempre desafiante segundo álbum. O concerto faz-se entre composições do primeiro e do futuro registo, num presente muito fresco e pleno de vitalidade. Apresentam-se destemidos no palco chão do Café Concerto do CAEP. Na frente, dois sopros que inter-actuam com fluidez, em emotivo e caloroso discurso. Nada de estantes e partituras entre eles, a música está escrita e corre no sangue, cheia de emoção que cativa e que chama para acercar. Emoção é o que faz transpirar o eixo do tempo e ritmo. Fragoso e Sousa intersectam-se conscientes do conforto que emanam no tocar, definem molduras ornamentadas por laivos de irreverência. Sousa tornando a bateria num mais que isso mesmo e Fragoso chegando até a tocar o contrabaixo pelas costas, tirando proveito da fricção entre palma da mão e o verniz da madeira, numa construção de sonoridades emotivas. E é uma música plena de jogos feitos entre texturas e timbres criativos que propagam comprometidos com a coesão a quatro. Colocando em equilíbrio estável as melodias escritas e o espaço criado para doses certeiras do inesperado. Uma música fresca e repleta de ideias que se escutam com atenção e despertam a curiosidade do que ainda está para vir deste quarteto.

É este um dos maiores entusiasmos que se recebe da música de perfil mais livre, seja ela jazz ou não-jazz, quando no agora se faz e dá a ouvir novidades desta monta, pois suspeita-se que o amanhã trará invariavelmente um mundo (musical) com mais e melhores opções.


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