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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 03/07/2023

Um trio tão experiente quanto inconvencional.

Sophie Agnel, John Edwards e Steve Noble no Causa|Efeito’23: palavras para quê?

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 03/07/2023

Uma das características transversais aos discos das diferentes etiquetas da chamada library music – ou música de produção, actividade muito em voga nas décadas de 60, 70 e 80 e que consistia na edição de música para uso posterior em cinema, documentários, televisão, publicidade, etc. – eram os breves textos descritivos associados a cada faixa, que normalmente eram disponibilizados nas contracapas de forma a facilitar a vida a quem, frequentemente a lidar com prazos apertados, procurasse o tema certo para usar numa cena de um filme ou no genérico de algum novo programa de TV. “’City Life’: Big band jazz com secção rímtica em destaque e solo de saxofone que ilustra a vida agitada nas grandes cidades” ou, por exemplo, “’Island Sunset’: Tema para pequeno combo guiado por um órgão melancólico e com base pulsante suportada por congas”. Ouvindo as músicas, muitas vezes torna-se difícil ver ligação com as descrições e os títulos: o que para o produtor de tais volumes traduzia bulício urbano ou pôr-do-sol num paraíso tropical, para um qualquer ouvinte poderia sugerir suspense numa casa abandonada ou viagem pelo espaço profundo. E se é compreensível que esta “divergência cognitiva” acontecesse com música linear, firmemente inserida em padrões idiomáticos muito claros – jazz, easy listening, bossa nova, rock, marchas militares, etc. -, imagine-se o quão difícil é meter em palavras música que tudo faz para escapar a normas de género e a conceitos mais amplos de harmonia, tempo rítmico, etc.. Como, por exemplo, a que o trio da pianista Sophie Agnel, do baterista Steve Noble ou do contrabaixista John Edwards apresentou no auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa na noite do passado sábado, jornada de encerramento da edição de estreia do Causa|Efeito, que tinha arrancado na quarta-feira anterior.

Na verdade, nas notas de capa de Meteo, trabalho que Agnel, Noble e Edwards inscreveram no catálogo da Clean Feed em 2013 (o sucessor, de 2018, tem por título Aqisseq e foi editado pelo selo associado à francesa Orchestre National De Jazz com que a pianista toca já há uma década), sugere-se que “escutar é uma forma de improvisação” e é por isso lícito pensar que cada uma das pessoas presentes no concerto do passado sábado entendeu (improvisou?) a música ali produzida de maneira distinta, o que rende quase como desnecessário o que de tentativamente descritivo se possa por aqui avançar.

Ainda assim, importa referir que na hora em que estiveram em palco, a pianista, o baterista e o contrabaixista tudo fizeram para abordarem os respectivos instrumentos de forma total, evitando usá-los convencionalmente, mas explorando-os enquanto objectos multifacetados, feitos de madeira e de metal, de cordas e peles tensas, com cada uma das matérias primas a ser percutida ou friccionada em busca dos sons que estão para lá daqueles que habitualmente produzem. Dessa forma, a amplitude cromática escutada foi generosa, com muitos sons a surgirem no PA que pareciam não ter origem em nenhum dos instrumentos usados em palco, mas talvez nos confins da imaginação dos diferentes elementos do trio. Noções de ritmo e harmonia foram implodidas e as rajadas de atonalidade, os fragmentos desconexos de tempo e ritmo, as sequências de notas abstractas contribuíram para uma imersão colectiva num universo sonoro muito particular. Estranho, certamente, mas ainda assim capaz de arrebatar a atenção.

Explícita ficou a capacidade que cada um tem de se escutar a si mesmo e aos companheiros, a prontidão telepática dos estímulos e respostas sem hierarquia aparente, a resoluta resistência em divergir para terrenos de idiomas claros e definidos, numa constante fuga para a frente de combate entre o caos e a harmonia ou entre o silêncio e a plenitude. Palavras para quê? É um trio de altamente experimentados mestres que não temem mergulhar no desconhecido.


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