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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 20/07/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #60: Garfo / Luís Lopes Lisbon Berlin Quartet

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 20/07/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Garfo] Garfo / Clean Feed

Se somarmos as idades de Bernardo Tinoco (saxofone tenor), João Almeida (trompete), João Sousa (bateria) e João Fragoso (contrabaixo), o resultado que se obtém mal ultrapassa um cento de anos. Um quarto de século de vida em média, portanto, para cada um destes jovens músicos, com Sousa a ser o “veterano” do grupo que juntos formam, os Garfo, com os seus sólidos 30 anos, e Tinoco o “caçula”, com apenas 21 anos.

Ambos os sopradores deste quarteto estiveram em finais do ano passado no palco da Culturgest com Ricardo Toscano, ladeando o saxofonista na sua sentida revisitação de A Love Supreme de John Coltrane. A esse propósito, escreveu-se por aqui: “O trio de sopros fez vénia à tradição, mas não se manteve curvado, soube soar disruptivo quando a música assim pedia, deixando-se guiar pela imaginação do líder, com o jovem Tinoco a ser o contorno de carvão que os seus companheiros coloriram de forma expansiva”. Jovens, então, mas já com assinalável experiência e bagagem.

Pode garantir-se que esse nervo está amplamente exposto na estreia destes Garfo, trabalho gravado por Hugo Romano no mesmo mês da já mencionada homenagem a ‘Trane. Sim, é verdade que o caminho dos Garfo ainda agora começou, mas o primeiro passo é sempre decisivo em qualquer aventura e este é assertivo, seguro, dado com a confiança de quem acredita no desconhecido, de quem não teme guinar numa direcção quando o trilho mais calcorreado parece apontar para o lado oposto.

Todos os músicos dos Garfo demonstram possuir sólidas competências técnicas, conquistadas academicamente, mas aprimoradas da única forma possível, em múltiplos palcos e contextos, ao lado de outros músicos com mais experiência, explorando diferentes paisagens.

Durante boa parte das primeiras peças do álbum (sobretudo “Improv.”, “Terminal” e “Ciclo”), os Garfo soam mais reflexivos, exploratórios, contendo o pulso em favor de uma expressividade mais cerebral e contemplativa, com os sopros a interligarem-se de forma inteligente (como acontece em “Ciclo”, com Tinoco a soar inicialmente mais lírico e Almeida mais abstracto, sobre secção rítmica ultra-discreta, mas com o contrabaixo de Fragoso a ter espaço para se expor com vibrante tranquilidade).

Em “T”, o grupo parece soltar-se mais, com o tempo a acelerar e os solistas a poderem espraiar-se com mais amplitude, exibindo sempre dotes de telepática empatia. Mas as toadas mais lentas dominam mesmo o alinhamento, como se os Garfo quisessem deixar claro que o fervilhar da idade não lhes dita o pulso das ideias. Na peça que encerra a “viagem”, “Palavras”, o contrabaixo de Fragoso volta a assumir a dianteira, pintando com pinceladas breves de tons sépia a tela em que os restantes membros do trio são depois convidados a deixar as suas delicadas marcas, de tonalidades líricas bem definidas. Palavra também para a contenção quase zen da bateria de João Sousa, um portento de subtileza ao longo de todo o álbum. 



[Luís Lopes Lisbon Berlin Quartet] Sinister Hypnotization / Clean Feed

As pontes são sítios mágicos, que existem suspensos entre margens, unindo o que é distante, permitindo aceder ao que antes era inacessível, tornando possível a comunicação. Esta foi erguida pelo guitarrista Luís Lopes entre Lisboa e Berlim com a ajuda inicial de Robert Landfermann (em contrabaixo com efeitos) e Christian Lillinger (bateria) (antes de ser quarteto, esta “estrutura” luso-germânica foi trio com duas edições a seu cargo, lançadas em 2011 e 2014, respectivamente) e agora também com o vital contributo de Rodrigo Pinheiro (aqui bem “electrificado” com o seu Fender Rhodes).

Lopes é um guitarrista destemido, um improvisador sabedor, que entende o instrumento como uma ferramenta de tradução de ideias instantâneas. Neste álbum a sua guitarra emaranha-se nas faíscas harmónicas debitadas por Pinheiro, numa densa nuvem eléctrica que não ensombra Lopes, antes o liberta para ser até mais expressivo, como se tal fosse possível, usando o feedback como uma envolvente massa sonora que convida ao mergulho. O tom é bastante frenético (experimentem deixar-se cilindrar por “O Andróide Que Sonhava Ser Humano”), com Lillinger a não hesitar em impor cadências de acentuado pendor propulsivo, quase “motorik”, mas com pulso livre. O contrabaixo de Landfermann também assume papel expansivo (como em “Sinister Hypnotization”, a mais longa deriva do alinhamento, igualmente frenética e abrasiva), capaz de soar tão nervoso como os restantes companheiros, como quem busca algo com urgência.

Essa azáfama colectiva rende, a espaços, uma música que quase (e não será inocente nesta conclusão o facto do texto de apresentação do projecto fazer questão de mencionar o passado das cidades aqui unidas, sobretudo o mais sombrio lado político das suas histórias que conheceram ambas o jugo de polícias secretas que actuavam como tampões da liberdade) soa como banda sonora para um qualquer thriller, negro, urbano, que siga a história de quem se movimenta no lado menos iluminado das cidades. Talvez as que aqui se referenciam, talvez as que se erguem na nossa imaginação.

O que é certo, e relevante, é que esta música densa e sinuosa, carregada de volts e de pequenas tempestades de electricidade harmónica, parece revelar novos segredos com cada sucessiva audição, tamanha a concentração de ideias que regista. Há um mistério aqui escondido e nada garante que o consigamos resolver. Basta deixarmo-nos levar por ele. Afinal, é a meio das pontes que os espiões gostam de se encontrar.

O catálogo da Clean Feed está disponível para venda na Jazz Messengers Lisboa (pedidos aqui).

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