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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/12/2020

Rendidos ao talento do saxofonista.

Ricardo Toscano na Culturgest: só o amor supremo nos pode salvar

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/12/2020

Foi em África que ontem se começou. Mas na mesma África que Picasso inventou, imaginando-a à distância, transformando-a, quando deixou que as máscaras africanas que descobriu expostas em Paris lhe guiassem o traço dos rostos de duas das suas Demoiselles d’Avignon. Também ali, no palco da Culturgest, João Lopes Pereira começou por seguir a direcção do líder, o saxofonista Ricardo Toscano, que, na entrevista que nos concedeu, explicou que foi esse o ponto de partida para a sua abordagem ao clássico de John Coltrane: “o convite/desafio veio da Culturgest e eles propuseram fazer um ensemble mais alargado. Pensei, “então e agora, o que é que vou fazer?” Depois pensei, “gostava de ter percussões africanas para ser a cena mesmo tribal, celebração, cerimónia e tal”. Pensou, primeiro, e  executou, depois, entregando a abertura da noite ao pulso dos bateristas João Lopes Pereira e Luís Candeias, que ali desenharam um longo mantra de ritmos quebrados e angulares, preparando os espíritos presentes para a tal cerimónia que teve início pelo contrabaixo de Romeu Tristão que foi quem deu o mote para o septeto se atirar a “Acknowledgement”, o primeiro andamento da obra magna que ontem se evocou, exactamente 56 anos e 9 dias após John Coltrane, McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones se terem reunido em Englewood Cliffs, Nova Jérsia, no estúdio de Rudy Van Gelder, para a gravação daquele que é justamente considerado um dos melhores álbuns de jazz de todos os tempos. Bem, na verdade, uma das melhores obras musicais de sempre!

Toscano poderia perfeitamente ter tomado o peso do cânone nos ombros, seguindo como sombra os passos do mestre e replicando o quarteto original, mas o ensemble que reuniu permitiu-lhe interpretar, palavra que deve ser entendida aqui como oposta de “mimetizar”, a ideia que Coltrane tão genialmente expôs em A Love Supreme, tomando-a muito mais como ponto de partida do que como destino último. E por isso se começou em África, como se Ricardo Toscano pretendesse ir à origem antes de mergulhar no legado para emergir, triunfante, no final, perante uma plateia rendida em justa ovação unânime e de pé.

Além de Lopes Pereira, Candeias e Tristão, estiveram no palco em torno do líder o pianista João Pedro Coelho, o trompetista João Almeida e o saxofonista Bernardo Tinoco, músico muito jovem, que ontem trocou o seu habitual tenor pelo barítono para, como nos explicou Toscano, “dar ali um som de oitava mais grave”. O líder justificou a opção na já mencionada entrevista: “Principalmente quando temos um trompete também ali a acontecer, do João Almeida, eu acho que o barítono era o equilíbrio certo para ter estes três instrumentos de sopro, e dar aquela onda… Tipo Sun Ra, estás a ver?”. Deu para ver – e ouvir – de facto.

Houve, portanto, “regra e esquadro” no plano gizado por Ricardo Toscano: as duas baterias garantiram a propulsão constante, com desvios pontuais por parte de cada um dos músicos que iam assim oferecendo contrapontos que ajudavam a sustentar as derivas dos solistas, com marcações assertivas, plenas de nuance, polirritmicamente desafiantes e de uma segurança a toda a prova; o contrabaixo de Romeu Tristão foi inesgotável fonte de elegância, o sombreado de rigor pulsante que também soube ter carácter melódico, somando pontos de subtileza aos de absoluta competência técnica, como tão bem demonstrado no arranque de “Resolution”; o piano de João Pedro Coelho foi depois o lago de límpidas águas em que todos mergulharam, o fundo cromático em cima do qual os sopros se espraiaram, com as mãos a preencherem o espectro harmónico com imaginação ampla; e em cima desta sólida base, o líder guiou então os sopros parecendo por vezes estar a tocar um único instrumento, híbrido, cromaticamente rico, e harmonicamente vasto.

O trio de sopros fez vénia à tradição, mas não se manteve curvado, soube soar disruptivo quando a música assim pedia, deixando-se guiar pela imaginação do líder, com o jovem Tinoco a ser o contorno de carvão que os seus companheiros coloriram de forma expansiva. Houve também momentos de retracção, quando os sopros solistas se resguardaram no silêncio, entregando à secção rítmica o protagonismo que evidenciou a sua solidez. Mas foi o colectivo que de facto mais brilhou, com Toscano a confirmar, uma vez mais, que é um líder de mão cheia, que não se limita a tocar o seu alto com nervo e alma, com absoluto domínio estilístico e um tom próprio, capaz de equilibrar o som dos mestres que estudou com afinco com a ousadia de quem acredita ter algo a acrescentar à história. Ricardo escolheu sabiamente cada músico, tendo exacta noção do que pretendia de cada um deles, e foi seguido sem reservas por cada um dos seis músicos que chegaram a “Pursuance” com o ânimo de quem sabia perfeitamente ter a plateia conquistada desaguando depois num “Psalm” que impôs um estremecimento colectivo, percebendo o público ter alcançado um lugar especial, superiormente elevado, espiritualmente puro. É preciso começar em África para se chegar ao paraíso, seja lá ele onde for…

No final, depois de uma efusiva, mas necessariamente breve ovação, o colectivo voltou para nos oferecer uma reverente versão de “Dear Lord”, tema que integrava o alinhamento original de Transition, um disco que só foi lançado em 1970, três anos após o desaparecimento de John Coltrane, mas que foi gravado menos de seis meses depois das sessões de A Love Supreme. É uma tocante balada em que Coltrane soa apaixonado, resolvido, espraindo-se de forma poética nessa singela oração, e Toscano e companheiros tomaram esse mote como uma oferenda e quase como uma forma de descompressão da intensa viagem prévia. A plateia submeteu-se, como não podia deixar de ser, levantando-se para ovacionar o septeto. O público, talvez um pouco mais velho do que é habitual encontrar-se noutras salas por onde Ricardo Toscano vai passando, terá sido tão levado pelo nome do líder exposto no cartaz como pela promessa do encontro com o espírito mais celebrado de John Coltrane, e talvez isso até tenha justificado, no final, alguns comentários, não de algum tipo de descontentamento – nada disso! –, mas de uma preferência mais, vá lá, “conservadora”, que sugeriam que o derradeiro tema tinha sido “a melhor parte”. Não foi. O melhor mesmo foi perceber que temos entre nós um talento desmedido como o de Ricardo Toscano, que não é só artista de corpo inteiro, mas também um verdadeiro aglutinador de energias, um líder natural que não teme entregar-se sem reservas porque sabe bem que só assim se alcançam novos lugares. Porque não há futuro sem fundo conhecimento do passado. E como Coltrane tão bem clarificou, só o amor supremo nos pode salvar a todos. Que venha 2021 que estamos no lugar certo para o recebermos

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