pub

Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 20/07/2023

Uma dança de sons que quebra a barreira do tempo.

Susana Santos Silva e Kaja Draksler no gnration: dos ponteiros que se derretem e outros considerandos

Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 20/07/2023

Faz parte do “livro de estilo” do Rimas e Batidas procurar encurtar tanto quanto possível o tempo que separa um evento da publicação do texto que o reporta ou sobre ele pensa. No entanto, nesse departamento específico, tudo pode acontecer: uma reportagem em ambiente de festival pode demorar apenas algumas horas a ser publicada (e daí falharmos todas as after-parties…) ao passo que uma outra crónica que verse sobre um concerto pode só surgir publicada alguns dias após o mesmo ter tido lugar. E todas as razões que possam imaginar podem concorrer para isso, mas a mais comum de todas é a que eu mesmo posso aqui apresentar para justificar só agora dar conta do que eu penso ter acontecido quando Susana Santos Silva e Kaja Draksler subiram ao palco da caixa negra do gnration no passado dia 14 de Julho – demasiado trabalho paralelo com prazos muito apertados.

Adiante.

Na passada sexta-feira (lá está…), fechou-se em Braga o ciclo Julho é de Jazz que este ano levou até ao gnration concertos de Ceramic Dog, projecto conduzido por Marc Ribot, André Carvalho, João Lencastre e, por último, Susana Santos Silva e Kaja Draksler, um encontro luso-esloveno de contornos bem particulares, como se irá perceber. 

A designação escolhida pelo gnration para este curto, mas ainda assim diverso e até ambicioso, programa é adequadíssima: olhando para o que acontece por todo o país – do Funchal ao Porto e a Braga, de Coimbra a Sintra, Matosinhos e Lisboa – é realmente verdade que o presente calendário está cheio de jazz (e arredores…) e que tal abundância até extravasa a duração do sétimo mês do ano. Essa “fartura” – que é sempre menos problemática do que a escassez, sublinhe-se – merece também alguma reflexão e pode até ser caso de estudo (e já terá sido, certamente). Deste lado, é caso a manter sob observação, com toda a certeza.

No gnration culmina assim uma visão específica que impôs este equipamento como polo chave não apenas da cultura na cidade de Braga, mas também no mais amplo mapa nacional: Luís Fernandes, até aqui o seu director artístico e programador, passa a assumir novas funções que irão ter reflexos na estrutura orgânica que pensa e executa a sempre ambiciosa programação desse polivalente espaço. A base sobre a qual o futuro do gnration vai ser erguido é sólida e isso augura novos e excitantes capítulos numa história deveras entusiasmante. Pode dizer-se que, ainda que de forma involuntária, o belíssimo concerto protagonizado pela trompetista e pela pianista representou, simultaneamente, o fechar de um ciclo e a perspectivação de um novo pulsar que em breve poderá ser sentido. E lá estaremos para o auscultar, certamente.

Muito se tem escrito por aqui sobre Susana Santos Silva, que viu aliás o seu último encontro com Kaja Draksler, o álbum Grow dado à estampa pela Intakt, figurar entre os mais destacados lançamentos de 2022 para o Notas Azuis. Ambas são artistas desafiantes e com uma visão total e absolutamente liberta da música e dos seus respectivos instrumentos; ambas encaram o que fazem com um mais ou menos declarado espírito de missão que as impele a desbravarem novos territórios sonoros; ambas são resolutamente destemidas no cumprimento desse desígnio.

A sua apresentação na BlackBox do gnration (alteração de última hora motivada pelas condições atmosféricas) quedou-se abaixo de uma hora, mas quebrou a barreira do tempo, deslocando o atento público para uma hipnótica, quiçá onírica dimensão paralela em que os ponteiros do relógio (ou os dígitos, vá lá…) pareciam não avançar ou recuar, mantendo-se estáticos ou talvez derretendo-se, como numa pintura de Dali. Essa dimensão onírica pode ter sido exacerbada pela intervenção de Kaja Draksler sobre o seu Baby Grand, reduzindo (molas de roupa com feltro, talvez?…) a vibração das cordas do piano até o fazer soar como caixa de música. E a brisa que Susana extrai do seu trompete também concorre para esse hipnótico resultado fazendo-se de repente acreditar que não é numa caixa negra que nos encontramos, ao abrigo dos elementos, antes num exótico domínio natural, pleno de verde e flora frondosa, o local por onde deambulamos ao som da sua música.

Na entrevista que nos concedeu para antecipar este concerto, a trompetista portuguesa já tinha sugerido que a música que cria com Kaja Draksler é algo que “seguramente já está fora do jazz” apontando para os terrenos da música contemporânea numa tentativa – forçada apenas pela pergunta, ressalve-se – de “localizar” o que acontece quando ambas se cruzam em palco. E o que acontece é simples (bem, “simples” é como quem diz…) exercício de liberdade, uma música profundamente expressiva, mas igualmente abstracta, que não oferece grandes sinais de descodificação detendo-se em idiomas reconhecíveis. São cores, formas e texturas atirados para a “tela” sem outro propósito que não seja o de exercitar a impreparação, de ceder sem reservas ao imprevisto e aceitar o inesperado. E para tanto convoca-se espírito e intelecto, corpo e alma, memória e desejo, revolvendo tudo com mãos seguras. Tanto Kaja como Susana são instrumentistas inventivas que conhecem como ninguém os seus instrumentos, que são objectos plenamente ressoantes feitos de materiais nobres que são convocados a oferecerem a totalidade dos sons que são capazes de produzir: há ar harmónico e fragmentos melódicos envoltos em sépia de madeira e ofuscante brilho metálico. Há até um subtil humor… Parece nítido que Susana “pensa” em voz alta com o seu trompete enquanto Kaja gosta de se perder no entrelaçar das suas cordas. A verdade é que elas falam a mesma língua. E ainda que possamos todos desconhecer o seu alfabeto particular, as nuances semânticas do que escutamos, não é por isso que deixamos de as escutar e até “entender”. Não que seja preciso: a poesia nunca se esconde, nem numa língua que nunca escutámos antes.

E assim foi, com o merecido aplauso final a acontecer apenas quando elas acordaram e nos deixaram entender que a viagem/o sonho/a pintura de luz sónica/ou lá o que foi aquilo, tinha terminado… O que se pode sem qualquer dúvida garantir é que foi bonito.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos