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Fotografia: André Delayhe
Publicado a: 14/07/2023

Improvisação total.

Susana Santos Silva sobre concerto com Kaja Draksler no gnration: “Tens que tocar a tua verdade”

Fotografia: André Delayhe
Publicado a: 14/07/2023

Susana Santos Silva é uma artista livre, capaz de se movimentar em contextos muito diferentes, de mostrar diferentes facetas em diferentes momentos. Hoje, no gnration, em Braga, mostra-se em modo de improviso livre ao lado de Kaja Draksler, pianista eslovena que bem conhece do quarteto Hearth. Juntas lançaram em 2021, o álbum Grow na conceituada Intakt Records, trabalho que lhes reafirmou o valor no plano internacional das músicas livres recebendo amplos elogios por parte da imprensa especializada.

A trompetista portuguesa baseada em Estocolmo atendeu-nos o telefone no seu Porto natal, depois de se ter apresentado recentemente em Serralves. Com um sorriso carregado na voz e uma transparência total no discurso.



Acabas de tocar em Serralves, em breve estarás na Gulbenkian. Para um concerto como o que te preparas para fazer em Braga, no gnration, em duo com a Kaja Draksler, que tipo de preparação fazes tendo em conta que é tão diferente do que fizeste antes e, certamente, igualmente distinto do que irás fazer a seguir?

Essa é a história da minha vida, não é? Estou sempre a fazer coisas diferentes, sempre a saltar de uma coisa para a outra, já estou… hum… formatada para fazer estes saltos… quânticos. Na realidade, eu e a Kaja improvisamos — completamente! Tivemos um percurso curioso: começámos por tocar temas nossos e depois fomos progressivamente largando os temas, começando por os introduzir no meio de improvisações, quando eles surgiam naturalmente, até chegarmos a um ponto em que os abandonámos por inteiro. Hoje em dia, só improvisamos e não levamos nada programado ou planeado e tudo acontece espontaneamente. Não há, portanto, grande preparação.

Mas não se carrega para uma situação dessas — de improviso absoluto — algo do que se fez antes? A última vez que te vi foi com o Carlos Bica, no Causa I Efeito, em Lisboa. Se de repente esta apresentação com a Kaja acontecesse meros dias depois de um encontro como esse, não achas que carregarias parte dessa experiência para esse novo contexto?

Bem, em boa verdade, tudo afecta tudo. Constantemente. Tudo aquilo que faço vai afectar o que farei a seguir. E eu diria que isso acontece obrigatoriamente. Nem temos como fugir a isso. Eu diria que num primeiro plano, vá lá, mais superficial, uma coisa não tem impacto na outra, mas lá no fundo, bem no fundo, claro que sim. O que eu fiz antes vai marcar o que vou fazer a seguir. Fiz este concerto a solo em Serralves e desse tipo de experiência eu trago sempre pelo menos uma ideia, uma melodia de alguma coisa que possa ter feito recentemente, um disco, por exemplo. De repente posso encontrar uma melodia que ja gravei no meio de um solo num concerto improvisado.

Compreendo. Mas também presumo que nada afectará mais o que vais fazer numa situação destas do que a pessoa ou pessoas que possas ter pela frente. No caso da Kaja, o que é que ela traz de único à tua música?

Bem, a resposta fácil é que traz aquilo que ela é e que é, lá está, único, já que mais ninguém toca como ela. Mas, na verdade, cada pessoa com quem eu toco traz algo de singular para a minha música, algo que não será muito palpável ou explicável. No início da nossa colaboração, eu já era uma pessoa muito liberta e ela ainda gostava muito de trabalhar com estruturas, de pensar um pouco mais nas coisas e de controlar a música. E, de alguma maneira, isso para mim também foi benéfico, até porque me trouxe outra forma de trabalhar e de encontrar outros caminhos dentro da música. E agora, em relação ao que fizemos no passado, posso dizer que o que fazemos mudou muito… é algo muito diferente, mesmo, quase música de câmara. Um pouco com um pé na música contemporânea, se é que posso dizer tal coisa. Seguramente algo que já está fora do jazz.

E dialogar num registo de improvisação livre absoluta resulta de forma diferente quando tens pela frente uma artista mulher ou um homem?

Hum… não sei… Todos têm as suas personalidades, as suas formas de tocar… Mas com certeza que devem existir diferenças… Não sei bem que dizer em relação a esta questão…

Ainda recentemente ouvi um comentário — por causa de um debate televisivo — de uma mulher a dizer algo como “os homens não conseguem deixar de interromper as mulheres quando sentem que elas têm algo a dizer”.

[Risos] Pois… isso acontece, de facto. E no contexto do free jazz isso sente-se. E no jazz tradicional… Nesses contextos os homens querem mostrar tudo de uma vez: quem são, o que podem e sabem fazer. E nós temos uma fragilidade… Bem, eu, pessoalmente, até faço questão de a deixar a descoberto. Os homens não fazem isso. Gostam de pensar: “Eu posso e mostro tudo o que tenho”. E metem um bocadinho mais de energia nisso. Bem, se calhar energia nem será o termo mais correcto porque pode haver muita energia em coisas menos explosivas. Mas, sim… talvez… Depende dos contextos, depende dos músicos. Não gosto de generalizar. Mas, vá, é verdade que há um bocadinho disso.

Há pouco mencionavas, em comparação com a Kaja, que já te tinhas libertado da ideia das estruturas, do encaixe em idiomas, etc. Esse processo, digamos, de libertação foi tranquilo ou violento? Deu luta?

Sim, deu luta. Foi, principalmente, uma luta comigo mesma. No início eu nem sabia muito bem do que andava à procura. Eu já tocava coisas que achava que não eram muito aceitáveis ou muito válidas dentro do circuito em que me encontrava, mais do jazz e do free jazz. E eu sentia que havia ali alguma coisa estranha, porque estás sempre à procura de algo. Depois, a dada altura, uma pessoa acaba por encontrar outros músicos que também estão nesse caminho e as coisas começam a fazer sentido. E depois, cheguei a um ponto de libertação total. Principalmente do que os outros estavam à espera de ouvir, daquilo que as outras pessoas esperavam que eu tocasse. Esse circuito em que te encontras espera algo de ti e ser capaz de largar essas expectativas alheias é algo importante e até necessário. Mas em dado ponto houve essa libertação e quando isso acontece tudo é possível, na realidade, porque deixa de interessar o que os outros pensam. Nesse momento sabes que tens que fazer o que queres e tocar a tua verdade. Senão não é honesto e se não é honesto nem vale a pena fazer.

Última pergunta. Recentemente ouvi uma história, penso que sobre o Alexander Von Schlippenbach, que levou para cima do palco um despertador porque lhe pediram para tocar uma hora e ele precisava de saber quando terminar. Num concerto destes, precisamente porque não pré-determinam nada, como é que sabes quando terminar?

Normalmente eu sei… Nunca usei um despertador [risos]. Mas há qualquer coisa muito intuitiva que nos indica isso: “Ok, agora está na altura de acabar, já não temos mais nada a dizer, a música já está… feita”. Não sei explicar muito bem de onde vem essa intuição, mas ela está sempre lá e resulta sempre.


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