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Fotografia: André Delayhe
Publicado a: 10/07/2023

Bravura e virtuosismo.

Jazz no Parque’23 — Dias 8 e 9 de Julho: ao encontro dos nomes mais relevantes da música improvisada nacional

Fotografia: André Delayhe
Publicado a: 10/07/2023

Com curadoria de Rodrigo Amado, a 32ª edição do festival Jazz no Parque, em Serralves, trouxe ao Porto, nos dois últimos fins-de-semana, artistas provenientes de várias vertentes da música exploratória, reunindo-os num cartaz arrojado e desafiante que contou com 7 concertos, mais 2 do que na edição do ano passado. Quem, às escuras, foi ao certame para ouvir jazz consensual, mainstream, porventura saiu de lá frustrado… ou não. Afinal, a Fundação Serralves, como instituição de referência que é em Portugal no campo da arte contemporânea, tem a missão de promover o pensamento crítico através de arte que é crítica do próprio pensamento — pelo menos do vigente — e que se encontra virada para o futuro, pronta a transcender no desconhecido.

Dando destaque a algumas das figuras mais relevantes do jazz e improvisação livre nacionais, a edição de 2023 do festival reuniu, no primeiro fim-de-semana do festival, ocorrido a 1 e 2 de Julho, formações incontornáveis da música livre portuguesa, tais como Mazam, GARFO, Luís Lopes Fuchsia Trio e o trio Malaby / Formanek / Lencastre. No passado sábado, 8 de Julho, o jardim-museu voltou à carga, em dose dupla, primeiro com uma atuação a solo de Susana Santos Silva, e logo depois com concerto dos João Lencastre’s Communion 3. Já no domingo, 9 de Julho, houve sessão única protagonizada por Sofia Borges e Camila Nebbia. O Rimas e Batidas esteve por lá e conta-vos como aconteceu.



O trompete e um universo de possibilidades

Foi no Auditório de Serralves que Susana Santos Silva, já há muito radicada na Escandinávia, demonstrou o porquê de ser umas das figuras de proa, tanto na Europa como nos Estados Unido da América, da improvisação e experimentação de vanguarda. O que, durante pouco menos de 1 hora, se testemunhou naquela sala — relativamente a conteúdo musical, sónico, performativo e filosófico — compensou as dezenas de atos em que, por esse mundo fora, diariamente se faz música de forma acrítica. Esta não foi certamente uma atuação ortodoxa — tal como expectável —, em termos de abordagem e desenvolvimento, já que a trompetista parece responder muito mais à pergunta do “porque não?” do que propriamente à questão do “porquê?”, fazendo-o com uma atitude criativa profundamente imbuída na pós-contemporaneidade.

Ao mesmo tempo, também não parece ter sido uma atuação pensada com o objetivo de expressar um statement experimental que recorre à problematização como fim em si mesmo. A naturalidade com que Susana surge em palco e nele age aponta mais para uma oportunidade de transmitir um conjunto de resultados, desenvolvidos por via de uma prática contínua, em que a vida, o ser e o estar — mais do que a música ou a performance —, são os veículos de comunicação de uma ontologia singular. Isto porque tanto não é justo restringir a atuação da trompetista a uma esfera puramente musical como confiná-la a uma dimensão tão somente performativa. Mais do que música, o que Susana faz é arte em sentido lato. E mais do que arte, o que a trompetista faz é desvendar os mundos que emergem quando se age de acordo com um modus operandi que acolhe como possíveis as infinitas possibilidades da realidade.

Sob o olhar de uma plateia atenta que rapidamente imergiu nos tempos e modos da trompetista, Susana Santos Silva apresentou-se no centro do palco, a meia-luz, acompanhada por uma parafernália de instrumentos que usaria ao longo do concerto. Além do trompete — claro está, o seu instrumento principal —, aquilo que pareceu ser um telemóvel prontamente se revelou como a principal fonte de efeitos, field recodings e samples da atuação. Através de sopros sustentados, escutados sobrepostos a eletrónica, a trompetista iniciou o concerto próxima do seu Sometimes It’s Raining A Lot, trabalho editado em 2020 pela etiqueta belga Matière Mémoir. Este início lento, sem pressa, foi o portal de entrada para um universo em que frequências múltiplas da fundamental se embrulharam em drones prolongados, desembocando em quasi-melodias e fragmentos melódicos que conferiram uma melifluidade pontual a um ato de aventura sónica com poucos momentos de brandura musical.

Seguiram-se segmentos em que Susana testou os limites existentes e inexistentes do seu trompete, tocando-o sob as mais variadas formas e perspetivas. Fê-lo não só através do uso de técnicas extensivas e da surdina mas também através da exploração do espaço e do tempo, dos ângulos em que o seu instrumento é tocado e da direção para onde é tocado. Todos os elementos à sua disposição passíveis de serem tornado parâmetros e consequentemente variados de forma contínua ou descontínua foram explorados. De repente, escutaram-se vozes, paisagens urbanas, a natureza e o Homem; excertos de gravações de campo, amiúde mesclados com efeitos. Num constante loop de retroalimentação entre o trompete, os processamentos a e eletrónica, continuou-se a navegar num mar aberto de possibilidades, com a trompetista a optar, em tempo real, por aquelas que mais lhe interessavam. O equilíbrio entre o analógico e o digital revelou-se ora ténue, ora consolidado; a relação simbiótica entre ambos ora a culminar em pontos de rutura, ora a mergulhar em regime de consonância.

Depois, o spoken word, a poesia. Ter pressa. Sem pressa. O tempo investigado em vários planos e dimensões. Agora, a filosofia, a palavra. Estudos horológios acompanhados por uma estrutura sónica que Susana Santos Silva certificava nunca sair da engrenagem. Novamente, ecos melódicos processados, ideias temáticas referentes a um tempo ancestral. “Life is a mistery / Sometimes it’s raining a lot / Sometimes it’s not”… e escutou-se mais spoken work referenciador do álbum de 2020 da trompetista. O acaso, a imprevisibilidade. Toca um telemóvel, e Susana repete “Life is a mistery / Sometimes it’s raining a lot / Sometimes it’s not”. A incorporação do que acontece e a sua aceitação, apesar da legitimidade de se perguntar se há mesmo quem ainda se esqueça de pôr em silêncio/desligar os telemóveis em 2023?

Envergando pulseiras percussivas, a música fez-se de forma física, e o movimento modelou os avanços temporais e as estruturas rítmicas, fundindo-se com melodias provenientes dos vários instrumentos que a artista tinha à sua disposição. No fim, as notas do trompete a serem transmutadas em proto-arpejos pelos processamentos de som. E a natureza, o canto dos pássaros a surgirem lá ao fundo. Susana Santos Silva com eles comunicar com apitos de águas, flautas ou misturando água no seu trompete. O borbulhar, aquoso, de um sopro pleno de vitalidade e informação. Texturas que teimam em não cessar. Sinestesia auditiva-tátil e uma aproximação ao natural que acompanhou a trompetista na saída de cena, feita paulatinamente. Fechou-se assim o pano de uma atuação que foi excecionalmente estimulante.



A arte da precisão na música livre

Logo a seguir ao concerto da trompetista portuense no auditório climatizado, foi a vez do Ténis do Parque de Serralves acolher a segunda e última formação de sábado num final de tarde pleno de sol. O baterista João Lencastre e o contrabaixista Michael Formanek — os únicos músicos a estarem presentes em ambos os fim-de-semana do festival — juntaram-se então ao pianista Jacob Sacks para juntos darem vida às composições de João Lencastre escritas para o seu Communion 3. As formações Communion do baterista já produziram álbuns que foram recebidos com louvores generalizados por parte da crítica especializada. De memória recente é Unlimited Dreams (Clean Feed Records), gravado em octeto com alguns dos melhores músicos da cena de jazz e improvisação lisboeta, que em 2021 arrecadou vários prémios. Antecederam-lhe dois discos, também eles lançados pela Clean Feed Records: Song(s) of Hope (2019) e Movements in Freedom (2017). Estes trabalhos, que estiveram em grande plano neste concerto dos João Lencastre’s Communion 3, foram ambos gravados em trio e com uma formação muito próxima à que presenciámos em Serralves, apenas com Formanek a substituir Eivind Opsvik no contrabaixo.

O concerto iniciou-se numa atmosfera lânguida e misteriosa: Lencastre a arrancar texturas dos pratos; melodismo saído do piano de Sacks; e o mestre Formanek concentrado no acompanhamento com um som limpo e definido. Foi do contrabaixo, inclusive, que surgiu o primeiro dos vários solos da noite, sempre tocados com grande alinhamento com as ideias gerais da música de Lencastre, música essa que vive tanto de sons como de silêncios, transmite uma sensação de grande amplitude de espaço e tempo, e que é generosa quantos aos momentos que oferece para se respirar fundo e recuperar fôlego. Além disso, verdade seja dita, a música deste João Lencastre’s Communion 3, sendo jazz e livre, desafia, contudo, várias premissas que habitualmente se associam ao free jazz. Não há nela necessidade de caos ou intensidade desmedida, características preteridas em favor do rigor, da subtileza e da nuance. Os solos são certamente prova-viva desse facto, pois não vivem de contínuos de notas debitadas de forma torrencial, antes de precisão métrica, peculiaridades rítmicas e concisão melódica. E apesar de se ter maioritariamente viajado ao som de temas retirados de discos já editados do projeto Communion 3 de Lencastre, houve também oportunidade para ouvir novas composições do baterista lisboeta, como por exemplo “Slick”. 

Também o virtuosismo dos músicos pôde ser apreciado em pleno ao longo de aproximadamente uma hora que foi conduzida com atenção às dinâmicas: não houve nem saturação nos momentos de intensidade nem aborrecimento nas fases de acalmia. O baterismo de Lencastre, sempre muito subtil, dispensou um protagonismo óbvio, gratuito, concentrando-se ao invés em prover exatamente aquilo que o trio necessitava em termos estéticos e funcionais. Contudo, sempre que a música assim o pediu, Lencastre souber impor com toda a classe a energia certa, fazendo uso total da sua palete percussiva. Já o pianismo de Sacks caracterizou-se por uma grande independência de mãos. Tocou quase sempre afastado do típico cenário em que os acordes são tocados com a mão esquerda e as melodias com a direita. A escrita de Lencastre, que acabou por influenciar não só a interpretação como a improvisação de Sacks, vive de simetrias reflexivas, clusters tonais seguidos de cascatas melódicas e de motivos minimalistas repetidos em padrões rítmicos imprevisíveis. Tirássemos o baixo e a bateria, e ficaríamos com o impressionismo de um Debussy arrojado, o dramatismo operático de um Feinberg e a densidade de um Cecil Taylor. Já Formanek, no contrabaixo, demonstrou o porquê de ser um mestre de excelência, tocando com clareza e intenção e acompanhando o resto do trio com distinção. É um motivo de honra podermos tê-lo aqui por perto, em Portugal, e torcemos para vê-lo envolvido em muitos mais projetos nacionais. Ora aqui está um trio que, com excelência, explora o jazz e a improvisação com régua e esquadro. E ainda dizem que a música livre carece de precisão…



Movimentos pendulares: da escrita à improvisação 

Coube a Sofia Borges e Camila Nebbia o ónus de encerrar a 32ª edição do Jazz no Parque. Benditos sejam estes tempos em que há festivais de jazz, improvisação e experimentação que reconhecem a música que se faz no feminino. Borges, natural de Portugal, e Nebbia, natural da Argentina, desenvolvem a sua atividade na música, artes visuais e performativas a partir de Berlim, cidade onde se conheceram e residem. Esta é, portanto, uma ligação transatlântica, mas que vive de uma proximidade geográfica inserida num contexto cultural muito particular.

Lê-se no programa do festival, que Borges e Nebbia “exploram novas formas de combinar improvisação e composição escrita, experimentando e investigando as relações entre tempo e espaço, lidando com fatores como a memória, a identidade e a expansão das linguagens já estabelecidas.” E foi precisamente este contínuo musical que se espraia da improvisação à composição que foi percorrido neste último concerto do festival, no qual a dupla entrou explosiva e a improvisar em tempo real. Borges, na bateria e objectos sonoros, instrumentista muito ativa e versátil, comunicou com o foco mais direcionado para o ritmo do que para as texturas, ainda que também tenha dado preponderância às últimas em vários momentos do concerto. Nebbia, no saxofone tenor, esteve quase sempre ligada ao núcleo da terra, lugar de onde extrai todo fervor que caracteriza o seu som possante e dominante. É uma instrumentista de dinâmica invulgar, que tanto sabe ser melíflua como growler e com um tocar abundante em multifónicos e outras técnicas.

Depois da improvisação inicial, plena de fulgor, a qual prontamente definiu a fibra das artistas com que estávamos a lidar, seguiram-se várias composições, entre as quais “Pássaros livros e perdidos”, escrita por Sofia Borges, tema em que a percussionista solou com brilho. Reminiscências de música pós-Echtzeitmusik definiram uma homenagem a Yoko Ono da autoria de Nebbia, em que a saxofonista manipulou as saídas de ar da campana com surdinas e objetos, produzindo reverberações e outros padrões texturais. Seguiram-se encadeamentos de texturas e ideias em “Chain”. A dupla dialogou com eficiência e criatividade e, por fim, terminou com um último momento, repleto da intensidade que caracterizou toda a atuação. Aplaudiu-se vigorosamente, e muitos dos presentes levantarem-se para o fazer. De referir que, entre temas, houve repetidos agradecimentos por parte de Nebbia e Borges aos técnicos de som, à equipa de Serralves e a Rodrigo Amado. Também nós aqui os deixamos, com votos de continuação de uma longa vida para este festival que é peça fundamental para as gentes do Norte.


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