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Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 15/07/2023

Oposições que nunca chocam entre si.

“Free Celebration” de João Lencastre no gnration: celebrar livremente é preciso, desligar da corrente nem por isso

Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 15/07/2023

O pátio exterior do gnration é um espaço fantástico para se verem concertos. As “erupções” geométricas em concreto podem à partida parecer desconfortáveis e pouco convidativas para as pessoas se sentarem no chão, mas a gente sabedora da sala bracarense trata sempre de distribuir almofadas que resolvem esse inconveniente. Foi portanto perante uma plateia bem composta de pessoas sentadas ou deitadas no chão que o baterista João Lencastre promoveu a sua celebração livre convocando para a “festa” o guitarrista (e dançarino interpretativo) Pedro Branco, o saxofonista alto Ricardo Toscano, o contrabaixista Nelson Cascais, o teclista João Bernardo e o também baterista João Pereira. O mote da celebração? A música de Herbie Nichols, Ornette Coleman e Thelonious Monk

Na entrevista que nos concedeu, Lencastre explicou que este é um projecto em que busca os contrastes. Ouvindo o concerto, fica claro que os encontrou e que arranjou uma forma de os usar em seu proveito. Há o contraste imediato entre seu baterismo e o de João Pereira, por exemplo: o líder é mais contido, o seu convidado mais expansivo, mas ambos conseguem — quando querem — encaixar-se um no outro soando como um só… quer dizer, como um único baterista que tenha as invulgares capacidades do Dr. Octopus… Mas há mais contrastes: entre o que é acústico e o que está ligado à corrente, entre o drama expansivo que se solta do saxofone de Toscano e a intrincada e algo discreta filigrana da guitarra de Branco. Essas oposições, no entanto, nunca chocam, antes vão contribuindo para que, a espaços, haja palpável tensão cinemática, como se esta fosse música de um qualquer policial americano dos anos 70.

Ouvimos Ricardo Toscano a tocar com o trio de Emmet Cohen há dias, no Funchal, e voltar a escutá-lo neste contexto é bem ilustrativo do quão longe este músico é capaz de se deslocar nunca trocando o seu “veículo”. Certamente que a mesma destreza em diferentes contextos é passível de ser encontrada nos outros músicos deste sexteto, mas o seu caso é realmente paradigmático: nunca se afastando do “jazz”, o saxofonista tanto se encaixa na tradição como na mais disruptiva aventura e nesta Free Celebration promovida por Lencastre ele é, de facto, mais valia.

Entre peças de Ornette Coleman (“Gigging”, o primeiro tema do alinhamento, e ainda “Congeniality”, “Kathelin Kay” e “Forerunner” e “Toy Dance”, que fechou a noite), Herbie Nichols (“The Gig”, “Third World”) e Thelonious Monk (“Skippy”, “Hump”), este colectivo forjou um mapa original para um jazz que se contamina de energia rock, que não teme a declinação espiritual do blues e do gospel, que se abre a uma desenfreada invenção e que também se sabe retrair até bem perto do silêncio. Nelson Cascais chega a soar bem churchy na belíssima e dolente versão em tons de azul do clássico “Toy Dance” de Ornette, mas houve momentos em que talvez tivesse levado a música para outro lado se estivesse ligado à corrente.

Realmente entusiasmente este grupo, um exemplo de classe celebratória que sabe viver entre a verdade dos sons acústicos e a qualidade inebriante que advém da electricidade que alimenta a guitarra e o Rhodes e outros teclados que João Bernardo desencantou lá nas entranhas do seu Nord Lead. Sabendo perfeitamente o cânone que os inspira, estes músicos nunca se vergam no entanto a esse considerável peso, nunca se deixam ofuscar pelo brilho intenso da história, mas partem no seu próprio caminho com a confiança de quem sabe que o que está a fazer é válido e até necessário. Assim, sim.


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