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Fotografia: Márcia Lessa / Funchal Jazz
Publicado a: 07/07/2023

Lições musicais de Emmet Cohen e Kurt Elling.

Funchal Jazz’23 — Dia 1: tudo passa pelo Atlântico

Fotografia: Márcia Lessa / Funchal Jazz
Publicado a: 07/07/2023

Funchal. Jazz. Duas palavras cujo sentido, quando tomadas individualmente, é claro: pedaço de terra plantado no meio do Atlântico, no primeiro caso, ou, no segundo, cultura legada ao mundo por quem, há muitos anos (mas não tantos que nos esqueçamos que aconteceu…), foi forçado a cruzar esse mesmo Atlântico. Simplificar assim coisas tão complexas é sempre problemático, mas entendam que abrir um texto pegando nessas duas palavras pelo seu valor intrínseco é importante para que se perceba que, em 2023, tudo é possível. Escutar no curto espaço de uma noite o gigantesco caminho que separa Charlie Parker dos Roots (esses mesmo, os de Questlove) é testemunhar o continuum de uma história que já vai longa, mas de que não se avizinha – felizmente – o desfecho. Jazz e Funchal são lugares vivos, forças tremendas que parecem ser puxadas pelo futuro. E isso é bom. Para o Funchal. E para o Jazz. E para nós, os que aqui estamos.

Funchal Jazz, portanto. O Festival está mais do que estabelecido e isso fica evidente quando ao cair do dia no belíssimo Parque de Santa Catarina, com o Atlântico em pano de fundo, a plateia que se prepara para receber o pianista Emmet Cohen é em primeiro lugar saudada com as habituais mensagens institucionais: da autarquia, claro, que tem justificado orgulho na obra feita e que está presente em peso nesta verdadeira festa; e dos patrocinadores, que querem também passar a sua mensagem às muitas centenas que se acomodam na desafogada plateia disposta no relvado.

Este certame arrancou no passado dia 1 e teve direito a apresentações de artistas como Laura Silva, André Santos, do Quarteto de Madalena Caldeira ou ainda de Francisco Lopes e Luís Caldeira. Ontem, porém, teve início a parte mais aguardada de um programa que, em boa verdade, não se esgota no palco de Santa Catarina: há masterclasses, animações nas ruas do Funchal, as inevitáveis jam sessions que decorrem no espaço do Qasbah e que são agitadas por pesos pesados como Nuno Ferreira, Ricardo Toscano, Luís Candeia e Nelson Cascais e uma exposição de fotografia de Márcia Lessa visitável no átrio do belíssimo Teatro Municipal Baltazar Dias (e sobre esta exposição a cargo da fotógrafa que também está incumbida de documentar todos os momentos do Funchal Jazz 2023 haveremos de nos debruçar noutro momento).

Há que entender, em primeiro lugar, que o Funchal Jazz é um festival que quer oferecer música séria a quem entende esta cultura, como é facilmente compreensível, mas que ao mesmo tempo não esquece ter por missão servir a população deste lugar que Kurt Elling não se coibiu de descrever como um paraíso. A população que aqui reside em permanência, mas também aquela que vai flutuando consoante os fluxos turísticos. O Funchal Jazz é importante contributo num desejavelmente mais amplo cartaz cultural da ilha, mas também é argumento de peso para que quem visita este lugar queira voltar. É, por isso mesmo, um programa desenhado com cuidado para ser inclusivo, em todas as dimensões da palavra, e não exclusivo. E esse desígnio parece ser cumprido com brilhantismo.

A música que ontem se escutou no Parque de Santa Catarina teve a sua dose de fogo de artifício, caminhou de forma segura sobre a delicada corda bamba que une a arte e o entretenimento e nem por isso foi desprovida de real vibração, de momentos de genuína criatividade, de qualidade inegável. Ainda que à ideia de “fogo de artifício”, nas notas da noite, se tenham somado palavras como “confettis” ou “algodão doce”. Nada de mal. Como o sol, o jazz também pode (e deve…) ser para todos.

As duas mãos de Emmet Cohen são preciosas: a esquerda segura tudo e parece ter um século de história nos seus tendões, cruzando arremedos de ragtime ou swing como se fosse de outro tempo, enquanto a direita, que também é conhecedora da história, conjuga ecos dos mestres com ideias novas. Tudo com uma técnica irrepreensível e uma alma gigante, plena de uma vivacidade que facilmente arrebata a audiência. Percebe-se porque é que o músico que recebeu o American Pianists Award em 2019 tem o mundo a seus pés enquanto vai de peças da Broadway a standards de Charlie Parker, Thelonious Monk e Billy Strayhorn sem nunca perder a compostura e o amplo sorriso no rosto que traduz infinito deleite na performance.

Ao seu lado estão dois mestres: o contrabaixista Philip Norris é um portento, capaz de injectar subtis citações aos clássicos nos seus elegantes solos, um mestre absoluto do tempo e do sombreado. E Kyle Poole, na bateria, equilibra, como poucos, força e subtileza, pulso firme e o mais leve dos toques nas vassouras, sendo trovão ou brisa com igual facilidade. E como se isso não bastasse, ao trio juntou-se uma estrela – ou talvez devêssemos escrever “cometa”: Ricardo Toscano. 

Durante o jantar, o saxofonista português confidenciava que conhece Cohen de Nova Iorque e que o desejo de tocarem juntos já vinha de há muito tempo. O que ontem aconteceu foi, definitivamente, um encontro de estrelas. Toscano está no topo da sua forma e só sabe mesmo soprar com a alma toda: sola com uma autoridade colossal que até induz a ilusão, ajudada pela criativa iluminação, de que por um momento apenas deixamos esta ilha para aterrarmos de alguma maneira na Nova Iorque de um outro tempo, aquela que o cinema romantizou e que o jazz imortalizou, talvez. Ricardo Toscano é mesmo capaz de tocar qualquer coisa: Monk e Cole Porter, a Capela Sistina, o teorema de Pitágoras ou os mais requintados taninos do melhor tinto do Douro. Nada parece fora do seu extraordinário alcance. E o final improvisado com o clássico “Let’s Do It (Let’s Fall In Love)” é suficiente para conquistar aplausos de pé de toda a plateia. Escrever “impressionante”, muito sinceramente, é escrever pouco.



E o final de noite, escreva-se, foi igualmente entusiasmante: Kurt Elling voltou a uma ilha onde não escondeu já ter sido muito feliz, mas desta feita com o projecto Superblue que criou com o incrível guitarrista Charlie Hunter e com o teclista e baterista dos enormes Butcher Brown – DJ Harrison e Corey Fonville. E, qual chantilly em cima do bolo (cereja seria imagem demasiado frugal), os Huntertones Horns – Marcus Tenney no trompete, Chris Ott no trombone e Dan White no saxofone – fizeram escorrer funk para cima do groove como geleia em panqueca quente. 

Elling é entertainer de corpo inteiro, um showman sabedor – dos elogios ao público até aos efusivos agradecimentos ao “Mayor”, nada falha… – que domina a arte de agarrar numa plateia diversa, conquistá-la sem apelo nem agravo e metê-la no bolso com desarmante facilidade. E faz isso com afinação perfeita, dicção clara e um reportório que vai de Carla Bley a Bob Dorough (não se atirou a “Three is a Magic Number”, o mais conhecido número do seu clássico Multiplication Rock, mas antes ao divertidíssimo “Naughty Number Nine”), de Freddie Hubbard aos Roots/Cody ChesnuTT, mantendo-se sempre do lado certo do funk (não que haja um errado, mas pronto…), alternando scat carregado de swing com um tom grave e ainda assim transparente. Disse ele, com conhecimento de causa, que “a menos que te chames Miles Davis há sempre alguém mais suave do que tu”, mas ontem não parece que alguém fosse capaz de encontrar assim de repente alguém mais elegante do que Kurt Elling que deve ser um estrondo num clube que facilite uma maior intimidade com a sua performance.

A ombrear com Elling esteve o impressionante Charlie Hunter que com a sua “guitarra híbrida” assegurou as linhas de baixo e as faíscas eléctricas carregadas de blues que iluminaram a noite. E depois, DJ Harrison envolveu com algodão doce a voz de Elling enquanto o gigante Corey Fonville ofereceu aos presentes uma monumental lição de groove contido, alternando entre as suas duas tarolas para acentuar com tonalidades diferentes o seu absoluto domínio do tempo – posicionando-se algures entre o swing e o hip hop, entre Clyde Stubblefield e J Dilla. Mestre. A este concerto só faltou mesmo uma pista de dança.

E hoje há mais: Bernardo Moreira vai mostrar-se Entre Paredes e Samara Joy vai expor a alma. Não há nuvens no céu, a noite será certamente de arromba aqui no Funchal. Aqui no Jazz. No Funchal Jazz.


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