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Fotografia: João Hasselberg
Publicado a: 12/07/2023

Celebrar os mestres.

João Lencastre sobre Free Celebration no gnration: “Neste projecto, procuro os contrastes”

Fotografia: João Hasselberg
Publicado a: 12/07/2023

Não há, percebe-se olhando para a sua agenda de concertos ou para a sua discografia, fronteiras intransponíveis para o baterista João Lencastre: nada separa trabalho composicional ou de improvisação livre, como são óbvias as ligações entre o passado e o presente, entre o presente e o futuro, o que é acústico e o que é electrónico, o que está dentro e o que se coloca fora do jazz. É dessa amplitude de vistas que nasce a sua força criativa.

Com Ricardo Toscano, Nelson Cascais, Pedro Branco, João Bernardo e João Pereira, Lencastre propõe então uma celebração livre em torno da música de Herbie Nichols, Thelonious Monk e Ornette Coleman, três faróis de uma música que teima em não estar estática, que insiste na agitação, na inquietude.

João Lencastre aceitou escolher e falar ao Rimas e Batidas de cinco discos que o guiaram na montagem desta Free Celebration que chega ao gnration em Braga amanhã, dia 13 de Julho pelas 22 horas. E que importa aplaudir e, se possível, gravar e lançar para memória futura.



Este Free Celebration nasce como um espectáculo ou também já está planeado algum disco?

O projecto começou porque eu sou um grande fã do repertório que tocamos — do Herbie Nichols, do Thelonious Monk e do Ornette Coleman. Eu ouço imenso os discos deles e queria mesmo tocar temas deles. Mas queria fugir a tocar o que já foi tocado, evitar usar o mesmo tipo de instrumentação. Pensei numa formação com pessoal com quem gosto muito de tocar. Lembrei-me logo da cena das duas baterias e sou um grande fã do João Pereira — achei porreiro convidá-lo para ficarmos com as duas baterias e tem funcionado muito bem. Havendo o Herbie Nichols e Thelonious Monk, ambos pianistas, pensei elogo em não usar piano. Falei com o pianista João Bernardo, que também toca bem sintetizadores — todo o tipo de teclados, aliás — para dar uma outra abordagem, outras cores, com o Prophet e outro tipo de sintetizadores. Não é tanto para tocar as harmonias, porque isso são coisas que já lá estão marcadas pela guitarra. É, portanto, uma coisa mais textural a nível de sons. Já demos uns cinco ou seis concertos. E a ideia é rodar o mais possível. Agora vamos ao gnration e, brevemente, gostaria de gravar e editar, sim.

Fala-me mais sobre esse ensemble. Já mencionaste aí o Pereira e o Bernardo.

Temos o Ricardo Toscano no saxofone alto, o Nélson Cascais no contrabaixo, o Pedro Branco na guitarra, o João Pereira na bateria e o João Bernardo nos sintetizadores.

Qual foi, digamos assim, a estratégia para montar esta equipa? Foste ter com gente que achavas que compreendia também a linguagem dos autores que tu querias homenagear? Foram questões de amizade que determinaram isso? Veio da tua admiração por eles enquanto músicos?

Foi um pouco de tudo, sem dúvida. Somos todos bons amigos e todos eles são músicos que admiro. E procurei, também, os contrastes… Apesar de todos eles serem bastante versáteis e terem bastante conhecimento da linguagem da tradição, são todos bastante ecléticos e ouvem diferentes géneros musicais. São bons improvisadores e abertos a criar no momento, a deixar a música fluir — o que acontecer, aconteceu. E quis criar contrastes, não só pela questão dos sintetizadores. O Pedro Branco, por exemplo, conhece muito bem a tradição, mas tem uma forma de tocar — de se exprimir – que não é assim tão ligada à tradição. Enquanto que o Ricardo Toscano tem muitas outras coisas, mas tem esse lado mais aprofundado, mais claro na sua linguagem quando se expressa. Eles os dois já tinham tocado no Unlimited Dreams, no octeto. Calha algumas vezes eles coincidirem em duo e eu gosto imenso de como soam os dois, do contraste entre os dois. O Nélson, já toco com ele há quase 20 anos. Já tocámos em todo o tipo de diferentes projectos. Adoro tocar com ele. Para além de um grande amigo, é um grande músico. Eu e o João Bernardo tocamos muitas vezes juntos com o Tiago Bettencourt, fora do contexto de jazz. Mas também já fizemos sessões e concertos a tocar coisas mais jazzísticas. Falamos muito de música quando estamos na estrada. Ele também ouve umas coisas mais electrónicas e eu achei que isso ia funcionar bem. Do João Pereira também sou muito amigo e um grande fã dele há muitos anos — gosto muito de o ouvir tocar. Achei que era bom convidá-lo para integrar o projecto.

Uma última pergunta ainda antes de falarmos dos discos que escolheste: na presente economia — e principalmente depois da pandemia — quanto mais dilatados os ensembles, mais complicado é levá-los para cima de um palco, não é?

É verdade [risos].

Formar um sexteto para um projecto novo é uma ideia assim um bocado maluca, não é?

Concordo plenamente contigo [risos]. E eu venho de um octeto, não é? Agora vou para um sexteto e…

Apesar de tudo, estás a caminhar na direcção “certa”. Ou seja, estás a encolher os recursos.

Pois. Mas não, eu pretendo continuar com o octeto e gravar um futuro disco — não sei ainda para quando. Mas isto tem a ver com o eu ouvir estas músicas e pensar no resultado final. O resultado final é o mais importante. Apesar da logística ser complicada, de facto, acho que todos estes músicos formam o número exacto que eu preciso para realizar o que tenho em mente. Mas mesmo apesar da logística ser complicada, cada concerto que damos é… Sinto que vale mesmo a pena. Se calhar há alguns sítios que não nos conseguem oferecer condições para tocar, porque somos muitos, com duas baterias e um backline alargado. Mas pronto. Acho que faz sentido e, lá está, a música é o mais importante e assim será.

Vamos então passar em revista os discos que tu escolheste, começando desde logo pelo Herbie Nichols. O repertório dele que tu revisitas, foste bebê-lo do Complete Studio Master Takes, é isso?

Exacto. É verdade. Eu comprei este CD há uns 10 anos ou mais. É um dos discos que não me farto de ouvir. Sou um grande fã. Há um pianista checo, um grande amigo meu que é o Vojtech Prochazka, a quem passei estes discos, e ele ficou maluco. “Estes temas são incríveis!” Depois, quando veio a Portugal, tocámos uma data de temas do Herbie Nichols que ele tinha sacado de ouvido. Adorei tocar. A primeira vez que toquei temas dele foi em trio. Nunca mais toquei, mas fui sempre ouvindo o disco, até que chegou o momento em que decidi fazer este projecto e decidi dar-lhes vida novamente.

Quando pegas num tema, pegas nele com a melodia, o tempo e o arranjo original? O que é que tu aproveitas do original para as tuas próprias releituras?

O ponto de partida é sempre o original. Na realidade, é quase tudo do original — a progressão harmónica, as melodias… Matemos a forma do tema. Depois podemos mudar um pouco, que é quando entra o input de cada um. Podemos combinar alguns arranjos, mantendo sempre a estrutura original do tema, especialmente da progressão harmónica e da melodia. Podemos combinar coisas de improvisação sobre isso, sobre mudanças de tempo — tocar mais lento ou mais rápido. E há a essência do jazz, que é a interpretação, não é? E por isso é que os músicos são escolhidos, pelo que eles podem dar a cada interpretação, a cada vez que se toca. Essa é a grande beleza desta música, do jazz: cada vez que tocamos surpreendemo-nos uns aos outros. Por isso, não há assim um grande trabalho de arranjos nem nada. Os arranjos que fazemos até são de boca, são coisas que vamos combinando nos ensaios. Mas, basicamente, é tentar interpretar os temas como eles são, mas com o nosso input.

Sobre o Thelonious Monk, o que é que me podes dizer sobre este trabalho específico? E sei que tens um outro grande fã dele na banda, que é o Toscano. Mas se calhar, todos os outros…

Partilhamos todos desse gosto, sim [risos].

Quando é que descobriste este disco?

Eu pus esse disco como podia ter metido outro qualquer, porque eu sou mesmo fã. Como eram cinco e eu quis escolher um de cada, escolhi esse. Tem o “Skippy”, que é um tema que eu adoro e que tocamos ao vivo. Mas sou fã de todos os temas. Não dá é para tocar todos. Também escolhi esse disco porque foi o primeiro… Há quanto tempo é que conheço este disco? Já há mais de 20 e tal, quase 30 anos, que eu ouvi o Genius of Modern Music: Volume 2 pela primeira vez – e acho que foi a primeira vez que ouvi Thelonious Monk. Daí fui comprar o Monk’s Dream e os outros todos. Não tenho todos, obviamente, porque são imensos, mas devo ter uns 10, 15 ou 20 discos do Monk. Escolhi esse porque tem temas que fazem parte do repertório e por ter sido o primeiro disco que ouvi dele.

O terceiro que mencionas é o The Complete Science Fiction Sessions do Ornette Coleman. Que tens a dizer-me sobre este?

Eu sou um grande fã do trabalho do Ornette dos anos 60, daqueles discos como o The Shape Of Jazz To Come ou o Change Of The Century. Nessa altura ele já tem duas baterias em alguns temas, já existe um contraste, algum experimentalismo que os outros discos iniciais não têm. Em termos sónicos para esta banda — e já vamos chegar a um outro disco que eu também escolhi para essa lista — acho que estes álbuns mostram todos um pouco um certo acréscimo, uma inovação àquelas melodias e à abordagem que o Ornette tinha. Havia uma abertura extra ao nível da interpretação e da improvisação. Eu há bocado estava a falar-te na questão dos sintetizadores como forma de dar uma roupagem nova. o The Complete Science Fiction Sessions não tem isso, mas tem esse lado inovador. Ou seja, em relação aos outros discos — e muitos dos temas que nós tocamos são dos anos 60 — o Science Fiction faz isso, porque o Ornette já está a dar uma roupagem nova ao nível da interpretação e da expressividade dele. Vê-se claramente uma evolução entre o que ele fez nos anos 60 e esse disco. Escolhi-o para mostrar o que eu tinha em mente ao nível do som da banda e do conceito.

A escolha do Bitches Brew é curiosa a vários títulos. Em primeiro lugar, porque parece que é um disco que tocou num nervo geracional qualquer — já são duas ou três homenagens recentes que eu vejo ao Bitches Brew. Depois, porque é um daqueles discos que os puristas do jazz dizem que assinala o momento em que o Miles deixou de tocar jazz…

Não concordo, mas pronto [risos]. O Bitches Brew tem a ver com a tal coisa do conceito que te estava a dizer. Esse disco tem três baterias a tocar ao mesmo tempo, às vezes. Neste caso, são só duas — eu e o João Pereira. Tem uma data de sintetizadores, de teclados e isso. Sem querer copiar fórmulas nem nada, pensei que esta mistura entre a tradição e a cena dos sintetizadores, das duas baterias… Isso traz-me à cabeça o Bitches Brew e o Science Fiction. Basicamente, se fosse para definir o projecto em cinco discos, eram esses. O psicadelismo e a espontaneidade do Bitches Brew, o approach do Science Fiction, com a tradição do Herbie Nichols e do Thelonious Monk, com a energia do Charles Mingus no Town Hall Concert, um dos meus discos favoritos dele. São esses os adjectivos que uso para descrever o projecto.

Em relação ao Charles Mingus, dizes que o Town Hall Concert é um dos teus projectos favoritos dele. É um disco que está aqui um bocadinho no meio. O Herbie e o Thelonious estão mais centrados na tradição, depois o Ornette e o Miles a atirar mais para o futuro. O Mingus está ali pelo meio, não é?

Completamente. Eu gosto particularmente do Town Hall Concert pelo risco e pela energia que houve nesse concerto. Aquilo são só dois temas, mas a banda desenvolve aquilo e… A energia da banda é contagiante. É das coisas mais impressionantes que eu já ouvi do Charles Mingus. Há um outro bootleg com a mesma banda, em que também tocam alguns desses temas, mas eu acho que o Town Hall Concert é mais impressionante pela energia. É algo que esta banda também tem: energia e risco. É uma questão de ser mais emocional do que propriamente racional. É deixar a coisa ir e não pensar para onde vai. É completamente a deixar fluir.

Não te passou pela cabeça que, se calhar, o sítio indicado para gravar esse disco é propriamente o palco? Este concerto vai ser gravado?

Este concerto acho que não vai ser gravado. Mas nós já falámos todos que tínhamos de gravar este projecto ao vivo. É giro estares a dizer isso [risos]. Fizemos um fim-de-semana no Hot Clube, que foi incrível. Os dias correram todos bem e nós pensámos: “Se estes concertos tivessem ficado gravados, tínhamos ficado já com um grande disco.” Na SMUP também correu muito bem. Todos correram bem e têm vindo a melhorar. Estou com grandes expectativas em ralação a este concerto no gnration. Tenho de perguntar se dá para gravar. Seria bom, mas não sei se dá. Mas o ideal seria fazer dois ou três concertos de seguida no mesmo espaço. É pena que o Hot Clube agora está fechado.


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