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Fotografia: Marc Monaghan
Publicado a: 28/03/2023

Uma ferida que custa a sarar.

Angel Bat Dawid: “Estou aqui para vos destruir”

Fotografia: Marc Monaghan
Publicado a: 28/03/2023

Quando questionei Angel Bat Dawid sobre a notação da experiência negra – e essa foi basicamente a segunda ou terceira pergunta da entrevista que aqui se publica – deixei de lado uma série de outras perguntas que queria colocar-lhe – nomeadamente como o seu trabalho de pós-produção em cima das gravações originais das diferentes peças do seu Requiem for Jazz poderia, ou não, ser entendido como uma forma radical de reinterpretar a ideia do presente – porque percebi que a artista tinha uma agenda bem definida de confrontação ideológica com quem se encontrava do lado de cá da chamada zoom. Quando mencionei a impossibilidade de notar a experiência negra, tentei, na verdade, sublinhar como essa condição marca de forma profunda a música que gera e que, mesmo com pautas com instruções detalhadas, talvez um músico branco não seja nunca capaz de reproduzir o sentimento singular, por ser algo culturalmente definido ao longo de gerações, com que o compositor de tal peça a imbuiu. Mas a artista americana não hesita e faz do seu justificado anti-racismo uma arma de arremesso capaz de ferir até mesmo os ouvidos mais preparados e que se entendem como aliados dessas lutas.



Não compete a quem assina estas linhas a análise do carácter justo ou injusto de tais palavras, tão somente o seu registo. E ainda que fossem injustas, seria sempre possível concordar que este combate é necessário, urgente até. E Requiem For Jazz, o novo álbum que a compositora e clarinetista lança através da International Anthem seguindo inspiração do filme de 1959 The Cry of Jazz, pretende ser essa arma de destruição. Deste lado acredita-se que a destruição de que fala Bat Dawid é em tudo semelhante à que há algum tempo Mamadou Ba por cá mencionou e que tanta celeuma gerou: “Nós temos é que matar o homem branco como sugeria o [Frantz] Fanon. O homem branco que nos trouxe até aqui tem de ser morto. Para evitarmos – como dizia Orlando Patterson – a morte social do sujeito político negro é preciso matar o homem branco, assassino, colonial e racista”. A declaração, proferida no âmbito de um aceso debate transmitido no YouTube, foi alvo de análise no Polígrafo, plataforma de fact checking a que o próprio dirigente do SOS Racismo depois teve oportunidade de a explicar: “O que quis dizer foi que, para combater o racismo, é necessário combater a ideologia da supremacia branca, o subconsciente coletivo das sociedades marcadas pelo processo colonial e a ideia de superioridade da raça. A ideia de que o homem branco é superior a outras raças e outras culturas”. Palavras claras e que parecem ir de encontro ao discurso de Angel Bat Dawid.

A artista norte-americana, que por vezes transforma apresentações ao vivo em verdadeiras palestras sobre estas questões, apresenta-se em concerto no Teatro Micaelese no próximo dia 1 de Abril respondendo a um convite do Tremor. É natural, realmente, que a terra trema um pouco nesse dia porque as convicções de Angel Bat Dawid e a força da sua música são bem capazes de gerar agitação profunda.


https://youtu.be/uaL-ECKKmRk

Olá, obrigado por atender esta chamada…

Uau, tantos discos. É como eu… Mas você tem mais discos do que eu. São mesmo muitos… Como está?

Estou bem, obrigado. E que belo fundo que você escolheu…

Reconheceu? Sim, estou no meio do Bitches Brew

Bem, deixe-me começar por lhe agradecer por me ter apontado na direcção do The Cry of Jazz, filme que acabei de ver pela primeira vez. E acho mesmo que este foi apenas o primeiro de muitos visionamentos, porque as questões que o filme levanta são muito complexas e muito pertinentes para o momento presente…

Sim, são muito relevantes, de facto. Se googlar o filme vai encontrar um pequeno cartão, como um cartão de visita ou um flyer, em que se pode ler: “The Cry of Jazz, o filme mais controverso desde Birth of a Nation. Não sei se conhece este filme, mas é um dos primeiros filmes americanos que… Bem, a fundação da indústria cinematográfica americana é basicamente racista.

Sim, conheço bem o filme do D.W. Griffith, uma apologia do Ku Klux Klan, etc.

Exacto. E esse é um dos primeiros grandes filmes de longa metragem, uma grande produção. E se a indústria cinematográfica começou com algo assim, a verdade é que ainda se mantém assim… Bem, tudo isto para dizer que Edward O. Bland lançou um filme para contrabalançar isso… A verdade é que o filme estreou num centro cultural, na zona sul de Chicago, bem próximo do meu estúdio e espaço de ensaio. Eu descobri o filme por volta de 2007. Foi numa loja de discos, a Jazz Record Mart, que já não existe. Encontrei lá este DVD que mencionava na capa o nome de Sun Ra e eu pensei que era a gravação de um concerto e comprei-o. Cheguei a casa, comecei a ver e pensei: “Que é isto?”. O Sun Ra fez boa parte da banda sonora… De qualquer maneira, avancemos em modo rápido para 2019, uma altura em que eu já conhecia o filme há uma boa dúzia de anos. Nesse período, eu passei a estar mesmo muito ligada ao filme. Mesmo muito. A tese do filme assenta na ideia de que o jazz está morto. E tenho a certeza de que já ouviu essa frase por aí: o Adrian Younge tem toda esta teoria em que baseou a sua editora [Jazz Is Dead], o Nicholas Payton também fala sobre isso, sobre a morte do jazz. Bem, podemos falar de que nem se trata de jazz, mas de Música Clássica Negra Americana. Porque Duke Ellington, Charles Mingus, todos eles tiveram problemas com essa palavra, porque tinha desde o início uma conotação negativa. A verdade é que as pessoas negras norte-americanas têm toda uma história de apropriação de palavras negativas – como a palavra “n****r”, que eu posso dizer, mas você não… -, que usamos de uma forma benigna exclusivamente entre nós. E essencialmente é disso que trata este filme e este disco que acabo de lançar, mais uma entrada nessa longa conversa. No filme, que data de 1959, uma pessoa negra aparece a dizer a uma pessoa branca “sim, esta música é música negra”… É algo estranho que um filme assim não tenha ido mais longe, algo estranho que uma pessoa como você, com tantos discos, nunca tenha ouvido falar no filme antes… E isso é um resultado do racismo. Nenhum programa académico sério que eu conheça inclui o visionamento deste filme e isso quer dizer alguma coisa…

Eu ia perguntar-lhe sobre isso: assumi que tivesse descoberto este filme na escola, mas não foi nada disso…

Não, foi numa loja de discos e eu só o comprei porque pensava tratar-se de um concerto de Sun Ra. Bem, em 2019 recebi uma encomenda de um festival de jazz aqui em Chicago, o Hyde Park Jazz Festival, e enquanto pensava no que deveria escrever decidi rever o filme The Cry of Jazz. E pensei: “bem, a personagem principal afirma que o jazz está morto”. ”Bem, se o jazz morreu, porque é que não lhe fizeram um funeral?” Isso levou-me a pensar em música fúnebre e daí cheguei à ideia de requiem. Embora eu toque muitos tipos de música devo dizer que, ironicamente, a minha primeira grande paixão foi a música clássica. Lembro-me de ser algo de que me envergonhava, porque não era cool, e eu andava sempre de auscultadores em miúda a ouvir Mozart e Beethoven — os miúdos na escola perguntavam-me o que estava eu a ouvir e eu respondia “MC Hammer” tentando ser cool [risos]. 

Eu sou uma compositora, toco vários instrumentos e tenho uma mente “composicional”, algo que pensei que toda a gente tinha: quando eu ouço uma peça de música consigo escutar todas as partes, a forma como o arranjo trabalha, o que está cada instrumento a fazer. E pensei que era assim que toda a gente ouvia música. E eu não só consigo ouvir assim, como sou também capaz de escrever todas essas partes e comunicá-las a um ensemble. E isso significa que sou uma compositora. Ora bem, eu sempre adorei o Requiem de Mozart. Um dos meus filmes favoritos é o Amadeus, não sei se o viu, mas há uma cena em que ele está no seu leito de morte a escrever o Requiem, ele diz o que quer e o Salieri está a escrever. E eu sempre pensei que quando crescesse queria ser capaz de escrever música também, pensar em notas e metê-las no papel.

Tudo isso levou-me a pensar: “vou escrever um requiem para o jazz”. O requiem é uma missa, uma peça litúrgica que obedece a um conjunto de regras: há o Introito, Kyrie, etc. São 12 partes. Eu peguei no filme e percebi que havia um certo paralelismo. Foquei-me em certas partes dos diálogos e percebi que tinham ligações a essas secções da missa. É assim que a minha mente composicional funciona: eu começo sempre com um conceito, porque a parte de escrever música, essa é de facto a parte fácil.

E uma coisa importante: este álbum não foi pensado para “dar prazer na audição”. Quero deixar isto muito claro: qualquer pessoa branca deveria sentir-se muito pouco confortável a ouvir este álbum. Se isso não acontece é porque de facto não estarão a ouvir. Deverão ficar desconfortáveis ao dizer os títulos. Entre as peças há interlúdios e o que eu fiz foi usar o meu background hip hop e samplei partes do espectáculo que fizemos em 2019, criando pequenas variações de cada uma das partes. Outra das coisas com que eu tive um cuidado extremo foi em fazer deste um projecto muito negro, no sentido em que fiz questão de que não houvesse mãos brancas em nenhuma parte do processo, porque o assunto é tão delicado que não me pareceu que um músico branco ou um engenheiro de som branco tivessem a capacidade de compreender o que se pretendia, porque iriam só prestar atenção ao lado técnico. E essa parte não existe aqui. Aliás, penso que é a isso que o filme se refere, quando se explica que jazz não é rock and roll, jazz não existe para o deleite das pessoas, mas para explicar como sobrevivemos a todos estes anos de opressão – que, aliás, continua a fazer-se sentir. A supremacia branca não desapareceu. Continuam a existir estas pessoas brancas – como você – que têm muitos discos, discos em que artistas negros investiram todas as suas almas, e vocês pegam neles para… eu chamo-lhes “abutres da cultura”. Vocês pegam nesses discos e dizem “oh, esta é a minha colecção, tenho toda esta incrível música negra, esta colecção é minha”. Mas as coisas não são assim. Isso não são discos, é a minha vida, foi a maneira que encontrámos para sobreviver. Há que compreender que o racismo não é acerca de pessoas más por oposição a pessoas boas: todas as pessoas brancas são racistas. Ponto final. Quer queiram, quer não. Porquê? Porque é algo que todas as pessoas brancas aprendem com as gerações anteriores, dos pais. E nem é o que os pais dizem, mas o que eles mostram. Vivem em bairros onde não há um único rosto negro: isso é propositado. É algo que cada pessoa branca carrega. E a melhor maneira que eu tenho de descrever isso é que isso é como a pandemia: vocês foram todos infectados com o vírus do racismo e por vezes nós, as pessoas negras, precisamos de fazer um confinamento e estar afastados de vocês. Por isso eu concluí que neste projecto não poderiam estar pessoas brancas envolvidas. Eu misturei o álbum. Já estive em tantos estúdios em que o jovem engenheiro de som, quase sempre um branco que esteve numa universidade, pensa que me pode dizer como deve soar a linha de baixo. Não. “Tu não sabes a que deve soar esta linha de baixo porque tu não viveste como nós vivemos e tens que respeitar isso”.

Portanto, as coisas de que se fala no filme eu senti durante a produção deste álbum. Percebi que esta conversa não terminou em 1959. O filme tem apenas 30 minutos e essa conversa não se resolve ali. E por isso cá estamos nós, mais de 60 anos depois, e eu penso: “sim, este filme ainda é relevante”. E é curioso porque na altura nem mesmo os críticos de jazz gostaram do filme. Mesmo os músicos negros que eu adoro não gostaram do filme, não gostaram que ele dissesse que o jazz estava morto. O Sun Ra não gostou, por exemplo. E eu pergunto-me: “Então, mas porque é que eu gosto do filme?” Talvez porque aquela mensagem fosse para o futuro e não para aquele tempo. O meu tempo é pós-Segunda Reconstrução, o período que se seguiu nas décadas de 60 e 70 do século passado. Se reparar na música desse tempo, vai escutar as pessoas a dizerem “I am black and I am proud”. Nessa altura algo rebentou. Depois disso veio a grande epidemia do crack que arrasou muitas comunidades. Logo de seguida veio o hip hop, uma era em que as pessoas não tinham acesso a instrumentos e ainda assim arranjaram maneira de fazer música, pegando em discos e fazendo loops. E isso também se alinha bastante com o filme, quando ele fala do jazz e há esta ideia recorrente de um racismo continuado, que se repete, que não desaparece. E é isso. A maior parte das pessoas negras não fala sobre isso. Mas eu não sou o tipo de pessoa negra que vai ficar calada. Eu vou dizer às pessoas brancas que elas são racistas e quando eu o faço elas reagem. E uma coisa boa de vocês serem brancos é que eu consigo ver que vocês estão incomodados, porque ficam com a pele ruborizada. E o que eu digo é, “não se retraiam, deixem o racismo sair e aceitem que são racistas, porque só depois disso podemos começar a conversar sobre como corrigir isso”. Porque se vocês não fossem racistas as coisas não seriam como são, nós não teríamos uma Casa Branca. Sim, esse é o nome da casa do nosso presidente: uma Casa Branca. Se vocês não fossem racistas, eu não pegaria numa nota de dólar para ver lá a cara de um homem que foi dono de escravos. É com essas notas que eu tenho que pagar a minha renda de casa. Se não houvesse racismo, eu não seria a única clarinetista negra numa orquestra. Estas são discussões que precisamos de ter. Precisamos de ficar mesmo desconfortáveis. E o objectivo deste disco é destruir-vos a todos. Eu quero terminar a vossa existência. Isso tem que acabar: a vossa obsessão com a nossa cultura tem que acabar. Mas como é que vou destruir-vos? É que não estou a falar em pegar em armas. Nada disso. Os Panteras Negras já tentaram isso e não resultou. Não. Não temos esse poder, mas temos um outro poder que vocês desconhecem. Não vou dizer qual é, mas vocês vão ser destruídos, vocês e as vossas colecções de discos. Vocês e a vossa vontade de me quererem entrevistar. Isso tem que acabar… Por favor, escreva isto: estou aqui para vos destruir. É disso que trata este disco. Quando ouvirem o disco não comecem “ah, que música tão bonita, tão…” Nada disso: não estou aqui para vos curar, estou aqui para vos destruir. Mas tudo isso vem de um lugar de amor. As pessoas pensam que a destruição é fruto do ódio, mas não é necessariamente assim. Eu não vos odeio, eu amo-vos, mas isso não significa que vocês não tenham que desaparecer. É disso que o Requiem trata, de enterrar o jazz. Ele morreu em 1959, o seu espírito, e o corpo já não consegue ir a lado nenhum. Vocês nem podem dizer os títulos porque têm a palavra “negro” e eu fiz isso de propósito. Quero que os títulos vos façam sentirem-se desconfortáveis porque quero que o racismo vos faça sentirem-se mal. É para isso que cá estou e isso é amor. É amor.

Amiri Baraka, que assinava LeRoi Jones no início, começou a escrever este livro, Black Music, mais ou menos ao mesmo tempo – 1959 – em que o filme de Edward O. Bland, Cry of Jazz, foi lançado…

Esse é o meu livro favorito…

Eu também gosto muito e aprendi muito com ele. No prefácio do livro, ele escreveu que “um exemplo musical impresso de um solo de Armstrong ou de um solo de Thelonious Monk não nos diz quase nada excepto sobre a futilidade da musicologia formal quando se trata de lidar com o jazz”. O filme parece apontar na mesma direcção ideológica e as imagens de arquivo dos bairros negros parecem sublinhar esse argumento: é impossível inscrever a experiência negra numa pauta de música, não é?

Será impossível de notar de acordo com um supremacista branco, de facto. A música negra sempre foi escrita, isso sempre existiu, só é impossível no vosso mundo porque o vosso mundo é racista. Eu tenho um livro de espirituais, uma antologia de “canções de escravos”, porque quando os meus antepassados escravizados andavam nos campos eles começaram a cantar como forma de expressarem o que sentiam. E eis que algumas “pessoas brancas boas” que ali passavam pensaram [adopta tom jocoso]: “ah, que canções tão bonitas, temos que as escrever para que possam ser lembradas”. E eu sempre pensei: “ah, vocês vão tomar nota das canções em vez de tentarem ajudar essas pessoas?” Isso é inumano. E essa tem sido a estratégia branca desde sempre: ouvem a nossa canção, o nosso lamento, a nossa oração, a nossa dor, algo que fazemos através da nossa cultura, da nossa música. E tomam isso. Nós somos os originadores de culturas que geram biliões de dólares. Nós criamos novas linguagens, novas formas de comunicar. Esta música a que chamam jazz e de que vocês tanto gostam era a forma que encontrámos para sobreviver à situação em que vocês nos puseram. Mas vocês em vez de dizerem “vamos ajudá-los” preferiram fazer um género e vendê-lo. E isso é apenas outra forma de escravatura. Por isso a cultura branca tem que ser destruída. As vossas editoras, universidades, companhias, revistas – incluindo esta – têm todas que ser destruídas.

Eu gosto mesmo muito desse livro e há uma parte em que ele fala com o Pharoah Sanders sobre jazz espiritual. Costumam dizer que a minha música deve ser classificada como “jazz espiritual”. Isso é um disparate: toda a música negra é espiritual. Não há distinção entre música e espírito. O espírito é a respiração. E a sua cultura não tem espírito. Simplesmente não tem. Por isso é que não podem notar a nossa cultura, não saberiam captar as nuances porque não são negros. Vocês nem sabem o que é um ferro quente para o cabelo, não sabem a que cheira.

A nossa cultura gera tanto dinheiro, mas em vez de nos deixarem em paz – e isso seria bom, simplesmente deixarem-nos em paz – vocês estão sempre em cima. E eu sinceramente preciso de uma pausa de tanta gente branca. Estou farta dos vossos filmes: o homem branco é sempre o herói e a mulher branca o símbolo máximo da beleza. Na verdade, não gosto do vosso aspecto. Mas gosto do meu aspecto. Mas a mim não me vêem numa revista…

Hão-de, pelo menos, vê-la nesta, ainda que você também a queira destruir…

Vocês só estão interessados em impor a vossa narrativa porque é lucrativa e vocês são gananciosos, querem dinheiro, coleccionar coisas para poderem dizer: “é meu”. Foi o que fizeram com África [continua com tom jocoso]: “Vamos ali, tomamos aquilo e dividimos o território, tu ficas com aquela parte, eu com esta”. E tudo isso sem ligarem ao facto de que havia gente a viver ali… Na verdade, vocês também vieram dali. Aquela também é a vossa terra-mãe. Vocês são africanos cor-de-rosa. Emigraram para a Europa e por causa do tempo frio perderam a pigmentação e ficaram malucos. E depois olharam para África e dividiram-na. E em 1492 disseram, “vamos a este continente e dividimo-lo também, não se passa nada ali”. Não sei bem o que vamos fazer sobre isto, mas o que eu sei é que toda esta história me deixa desconfortável, então eu vou fazer tudo para vocês também se sentirem desconfortáveis. E vou aproveitar cada oportunidade para o fazer.

Estou a ver que sim… Bem, este novo álbum foi tocado por um dilatado ensemble e deve ser uma arte em si mesmo ser capaz de gerir tantas mentes criativas, juntá-las num mesmo espaço, conduzi-las. Pode falar-me sobre o aspecto comunitário deste projecto?

Sim, foi muito intencional, porque eu conheço tantos músicos negros incríveis. Conheço, na boa, uns 10 músicos de cordas negros, conheço uma boa meia dúzia de fagotistas… Essa ideia de que não se vêem músicos negros nas grandes orquestras não é verdadeira: estamos lá, sempre estivemos. Fico sempre chateada quando leio [adopta tom jocoso mais uma vez]: “Fulano de tal é o primeiro clarinetista negro na orquestra desde que foi criada há 200 anos”. E eles pensam que isso é algo de espantoso, que os honra. Eu penso sempre: “vocês são horríveis. Sabem quantos clarinetistas negros eu conheço? E agora enchem o peito porque descobriram um? Vocês metem nojo porque deveriam ter mais músicos assim”. Portanto, quando penso nisso, concluo, “mas por que raio haveria eu de convidar um baixista branco para o meu projecto negro?” Ou “porque tenho eu que usar um técnico de som branco?” Que, de facto, são a maioria nessa indústria… Claro que eu ser uma mulher negra só adiciona complexidade a esta questão. E a questão do “master”? Só a palavra… “Entreguei a minha música negra a um homem branco para ele a ‘masterizar’”. Esta palavra deveria mudar-se: “Master” tem um significado diferente para nós por causa dos “masters” nas plantações. As coisas têm que mudar, as palavras têm que mudar. Eu não deixaria um engenheiro de som branco fazer isso. Por acaso, tenho a sorte do meu manager ser também engenheiro de som e ele é um “brother”, um homem negro, por isso pedi-lhe a ele.

Quanto ao ensemble, a minha comunidade aqui, em Chicago, é tão vasta que eu sabia que era possível fazer isto. Esta foi a primeira vez que eu de facto conduzi a peça inteira, porque normalmente eu toco nas minhas peças. Mas pensei que era algo demasiado enorme para eu conduzir e tocar em simultâneo e concluí que precisava de um clarinetista. Na altura estava a dar aulas numa pequena escola particular em Chicago, a ensinar piano, mas também tinha um estudante de clarinete. E eis outra coisa racista: esta escola existe porque muitos dos programas de ensino público de música em Chicago são eliminados e, por causa disso, muitos jovens e brilhantes músicos não têm onde estudar nem a oportunidade para estarem num ensemble. Eu sou boa no que faço porque cresci num bairro em que a escola tinha uma banda e eu pude aprender: sou um produto desse sistema. Por isso, peguei nessa jovem clarinetista, ela tinha apenas 12 anos na altura, mas eu perguntei: “queres tocar?” As lições dela passaram a ser no sentido dela aprender a música que tinha que tocar neste projecto. Há mais gente: a pessoa mais velha no álbum é o Vincent Davis, percussionista que tocou com Roscoe Mitchell, que fez parte do AACM e que é um verdadeiro ancião. Posso dizer que tive a comunidade negra em peso no disco, as diferentes gerações: dois dos violinistas teriam 16 anos quando gravámos, ainda no liceu. Já percebeu o quão mais importante é isto? Muito melhor do que contratar uma rapariga branca qualquer que tenha ido aprender violino em Julliard. Nada disso. Ela vai safar-se bem, não tenho dúvidas. Ela vai ser primeira-violinista numa orquestra qualquer, mas estes jovens músicos, que são tão bons ou melhores do que ela, não vão ter essas oportunidades. Por isso, eu penso sempre que as pessoas negras são as que precisam de trabalho, as brancas não precisam da minha ajuda. E penso o mesmo em relação ao ensino: não vou aceitar estudantes brancos, esses têm muito onde aprender e vai tudo correr bem para eles, vão ter oportunidades excelentes, uma óptima educação. O problema são as crianças negras, que não vão ser apoiadas porque este é um mundo racista. Por isso, e no longo prazo, posso dizer que o meu principal objectivo nem é andar sempre na estrada, não é editar muitos álbuns. Eu tenho um longo percurso no ensino e o que quero fazer é trazer a nossa comunidade de volta a esta música. E quero ser uma guardiã, uma gatekeeper, poder dizer que não é certo haver um programa de jazz na vossa escola e não se mostrar o The Cry of Jazz. Não pode haver um programa de ensino de jazz e ter um branco à frente: isso é racista, é problemático.

Eu sei que você vai voltar à sua vidinha branca depois desta conversa e que nada lhe vai acontecer, estas palavras não o magoam. Mas pelo menos durante 5 minutos vou fazê-lo sentir-se desconfortável, fazê-lo pensar nestas questões. E quem sabe se isto não trará alguma mudança.

Por falar em anciãos: conseguiu ter no álbum um contributo de Marshall Allen e de Knoel Scott, dois membros da Arkestra de Sun Ra. Como aconteceu isso?

Sim, isso foi mesmo a realização de um sonho. Eu podia ter lançado o álbum em 2019, mas depois veio a pandemia, o que foi interessante, porque as pessoas falam sempre de que Sun Ra se descrevia a si mesmo como “a myth scientist”.  Eu sempre adorei mitologia e as pessoas tendem a olhar para essas histórias como verdades ou mentiras, mas não é disso que se trata: os mitos são histórias que apontam para importantes verdades acerca das coisas. É por isso que estudamos a mitologia grega.

Bem, a razão por que refiro isto é porque, em 2019, declaramos que o jazz estava morto e depois o mundo fechou e ninguém podia tocar nada. Veio um grande religar, um “great reset”. E esse é o mito que estou a contar. Eu perdi todos os meus gigs, toda a gente perdeu. E foi nesse período que me meti a misturar o álbum, porque originalmente pensei que ia mesmo ser um álbum ao vivo normal, com a gravação do concerto, mas depois pensei que podia levar essa gravação para estúdio, cortá-la, samplar partes. Foi isso que me permitiu aguentar o trauma da pandemia.

Depois cheguei ao último tema. E quero clarificar isto: eu transcrevi o tema principal da banda sonora de The Cry of Jazz e, por isso, preciso de apresentar um pedido de desculpas público. Eu pensava que o tema era de Sun Ra, foi a informação que dei, mas a International Anthem não conferiu isso, meteu a informação assim, e os discos foram impressos. Mas o meu manager foi investigar e percebeu que o Sun Ra não escreveu essa peça. E eis a ironia disto tudo: é de dois compositores brancos, uma belíssima peça chamada “My Rhapsody” da dupla Severson-Leist. Eu não estava disposta a deixar o tema ser mal creditado, insisti que se contactassem as famílias herdeiras dos compositores originais, que se dividissem os resultados do publishing, etc. Por isso na primeira edição, lista-se Sun Ra como compositor, mas eu fiz com que a editora adicionasse um insert com os créditos correctos e um pedido de desculpas. Isso aconteceu imenso no passado, com gente a apropriar-se de música negra e a ficar com os créditos. Mas não aqui e não comigo.

Finalmente, posso pedir-lhe que me fale dos músicos que vai ter consigo em palco na apresentação no Tremor e no reportório que vão executar?

Sim, claro, e ainda bem que falou nisso, porque é um assunto delicado para mim. Se um ensemble de brancos me convidar para eu ir tocar a sua música, eu vou aceitar. Mas músicos brancos não podem tocar a minha música agora… Por isso, vai ser complicado gerir esta questão, já que eu tenho uma residência no Tremor e eles puseram-me a trabalhar com uma orquestra de 50 elementos. Portugueses. Brancos. E eu tenho estado a pensar: como vão eles conseguir tocar a minha música? Bem, o que resolvi foi escrever uma peça baseada nos escritos de Gomes Eanes Azurara que foi um cronista no século XV – não sei se já terá ouvido falar nele.

(…)

Mas ele escreveu sobre o tráfico de escravos e escreveu coisas absolutamente repulsivas. Foi a maneira que encontrei de negociar esta situação: sim, vão tocar a minha música, mas vão sentir-se muito desconfortáveis com isso. Estou entusiasmada porque nunca escrevi para um conjunto de músicos tão dilatado, o concerto vai ter uma componente visual. Vai ser bom. Estou muito entusiasmada.


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