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Fotografia: Carlos Quitério
Publicado a: 21/10/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #125: Kofi Flexxx

Fotografia: Carlos Quitério
Publicado a: 21/10/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Kofi Flexxx] Flowers In The Dark (Native Rebel Recordings)

Como tão bem provaram os SAULT em tempos recentes, a redução de um colectivo a uma singular entidade anónima tem o mérito de concentrar na música todas as atenções relembrando a quem escuta que esse é, afinal de contas, o mais essencial valor de qualquer projecto, não o eventual star power de quem quer que possa estar envolvido. Essa é, definitivamente, uma maneira de encarar Kofi Flexxx, projecto que se auto-descreve como “princípio criativo”, forma vaga de sugerir que a lista de recursos humanos poderá transformar-se consoante a ocasião. O lançamento do álbum Flowers In The Dark na etiqueta fundada e dirigida por Shabaka Hutchings deixa claro que este é, também, um seu alter-ego. 

O ano passado, uma colaboração com Carlos Niño disponibilizada apenas em formatos digitais, In The Moment, Part 3, resultava de um encontro que o percussionista americano nos tinha relatado em 2021 quando com ele falámos a propósito de More Energy Fields, Current: “E quando o Shabaka regressou a L.A. nós gravámos, de facto, esses duetos. Esses transformaram-se naquilo que são a primeira e última faixas deste meu novo álbum. E há muita música proveniente desses duetos que não vai sair já”. Parte dela foi então lançada em In The Moment, Part 3, um improviso de 22 minutos e 22 segundos (duração, certamente, resultante de um edit propositado, já que Niño presta demasiada atenção à numerologia para que tal facto seja mero acidente cósmico) em que o distinto saxofonismo de Shabaka surge em todo o seu fulgor espiritual e exploratório. Acontece, no entanto, que essa peça é creditada a Carlos Niño & Kofi Flexxx. Talvez porque o contrato do músico britânico com a Impulse! a isso obrigue? Só Shabaka poderia responder a tal questão, mas essa é, definitivamente, outra forma de entender a opção por lançar este álbum com essa “máscara” colocada (aliás, como a capa tão bem insinua). Importa, ainda assim, referir que noutras plataformas de streaming, como o Spotify, o nome de Shabaka Hutchings surge claramente nos créditos das autorias das composições.

Não há, pelo menos na página bandcamp de Flowers in The Dark (e a cópia em vinil encomendada em pré-venda ainda não chegou aqui a casa para desfazer essa dúvida), qualquer informação relativa aos músicos que se escutam neste trabalho em que só as vozes merecem créditos: os rappers billy woods e E L U C I D surgem em dois temas, certamente retribuindo a participação que Shabaka registou em We Buy Diabetic Test Strips, o mais recente e extraordinário trabalho do projecto que reúne os amplos talentos desses dois MCs, os Armand Hammer. Há ainda indicação de participações do poeta-declamador Anthony Joseph e de Confucius MC, ambos artistas londrinos, da cantora e multi-instrumentista indo-americana ganavya, e do vocalista-griot sul-africano Siyabonga Mthembu, fundador dos The Brother Moves On e membro do colectivo Shabaka & The Ancestors

Na breve peça que o Guardian dedicou a Flowers in the Dark, tendo certamente tido acesso a mais informação, revela-se que os músicos Alex Hawkins (pianista com longa carreira, colaborador regular de Evan Parker, por exemplo, e que também tem um crédito no álbum da dupla CoN+KwAkE lançado igualmente na Native Rebel Recordings), Ross Harris (flautista e membro do Speakers Corner Quartet com quem Confucius MC e Shabaka também já colaboraram), Jas Kayser (baterista que já falou ao Rimas e Batidas e que toca igualmente com Raquel Martins) e Daisy George (baixista londrina que o ano passado se estreou a solo com See Me Now) formam o núcleo duro das sessões em que foi registado o material deste trabalho de Kofi Flexxx. E por cima de tudo isto sobrevoam os drones de Shabaka Hutchings em clarinete baixo e sentem-se as reflexivas brisas ou mais intempestivas rajadas das suas recentemente adoptadas flautas africanas e orientais, novas ferramentas com que pretende substituir o saxofone tenor em que se notabilizou à frente dos já mencionados Ancestors, mas também dos Sons of Kemet e The Comet is Coming.

O primeiro tema, em que se escutam as apocalípticas rimas de billy woods, que soa como se estivesse a ler em tom muito sério um qualquer documento arcano, é uma névoa densa feita de camadas de instrumentos de sopro sobre quinquilharia rítmica cadenciada, uma espécie de hip hop de tendência cinemática e soturna. Em “It Was All a Dream”, a bateria frenética e o baixo pulsante acomodam o piano de Hawkins e os sopros espraiados em multi-pistas do rei Shabaka, com solo em flauta a deixar claro que não vai abdicar da visceralidade com que se sempre se entregou ao saxofone. É no contrabaixo que nasce depois “By Now”, a peça em que se escuta o “sermão” de palavra falada e cadenciada de Anthony Joseph a expressar o desapontamento com o rumo da sociedade moderna: “by now we should be reconstituted”, diz ele com pragmática e lacónica voz.

O tema que dá título ao álbum e em que Confucius MC larga sábias barras que falam da fé, da raiva, da perda e das escolhas com que cada um navega esta coisa a que chamamos vida é apoiado em ritmo quebrado que bem poderia ter sido subtraído a uma sobra de sessões dos já referidos SAULT. E em cima disso, as flautas de Shabaka soam reflexivas, como se o músico estivesse a traduzir o pensamento que sustenta as palavras debitadas. A peça com E L U C I D, por outro lado, é mais claramente hip hop, com beat programado e toada ambiental a envolverem o flow sombrio do rapper americano. Essa vertente cinemática e evocativa parece aliás atravessar todo o álbum, mas talvez não se sinta tanto quanto em “Babylon Dun Topple”, peça em que não há vozes e em que o grupo se envolve num intenso mergulho em improviso meditativo que vai ganhando nervo crescente na flauta que traça o caminho enquanto o comping abstracto de Hawkins atira a composição para os domínios da música contemporânea. Há mais uma peça instrumental, “Fire”, remate deste belíssimo álbum, de toada bem mais melancólica que nos mostra, com a flauta em primeiro plano, a que poderá soar o futuro de Shabaka Hutchings, que neste trabalho prova ser capaz de derivar entre tradições – do jazz à clássica, da música contemporânea ao hip hop — e geografias — de África à Ásia e daí até às profundezas do cosmos.

Os restantes temas vocais — “Increase Awareness” com “Ganavya” e “Aim” com Siyabonga Mthembu — são lamentos que parecem arrancados às profundezas da alma, com a peça em que se escuta o cantor sul-africano a destacar-se pela sua tocante espiritualidade e pelo belíssimo solo de piano que se desprende da teia de percussões e de sopros para afirmar uma poética vincada, inspirada certamente na prestação de Mthembu. Material impressionante que mereceria desenvolvimento em mais registos em que estas mesmas pessoas se pudessem voltar a cruzar. E palco, claro. Que esta música soa viva e capaz de crescer.

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