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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/06/2022

As baquetas enquanto extensão do corpo.

Jas Kayser: “Não podemos ir só na onda, temos de realmente integrar o pelotão”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/06/2022

Em Abril passado, Jas Kayser dava entrada na ilustre série 5ive da jazz re:freshed, juntando-se a nomes como Nubya Garcia, Ashley Henry, Richard Spaven ou Kaidi Tatham. No sucessor de Unforced Rhythm of Grace EP (2020), a baterista lidera uma banda composta por João Caetano, Daisy George, Jamie Leeming, Mark Hurrell, Giacomo Smith, Christos Stylianides, Ava Joseph e Ash Kayser aka Aalvk para se “intrometer” na conversa que gira à volta da importante questão: “quem é que anda a fazer o jazz mais entusiasmante em Londres?”

Antiga aluna da reputada Berklee, companheira de Lenny Kravitz no vídeo para “Low” e arma poderosa e pouco secreta de Alfa Mist e Jorja Smith (se tudo correr bem, poderão vê-la em acção no NOS Alive), Kayser está num caminho que só projecta cenários positivos. Há uns tempos, o Rimas e Batidas ligou-lhe para saber mais sobre o seu ainda curto mas promissor percurso.



Antes de mais, obrigado por atenderes a chamada. Se não te importares, começamos pelo início. Quando é que começaste a sentir que o teu futuro poderia estar umbilicalmente ligado à música?

Oh, não sei, apenas aconteceu gradualmente, de certa forma. Eu comecei a tocar bateria quando tinha 9 anos e depois fui para o piano à volta dos 10. Sentia que era algo muito natural e divertido para mim. Divertia-me a fazê.lo. A escola tinha aulas de música e depois foi a minha família e os meus professores a dizerem, “tens talento, devias levar isto a sério”. E eu fiquei, “o quê?” Estava apenas a tentar desfrutar da vida e, naquela altura, até estava mais interessada em fazer desporto. Eu andava a gostar de tocar e depois fui persuadida a levar isso a sério. Isto numa altura em que ainda era nova.

Que papel tinha a música na tua casa? Os teus pais tinha algum tipo de inclinação musical?

Não… quer dizer, eles gostavam muito de música. Cresci com o meu pai a ouvir Elvis Presley, entre outras coisas, e a minha mãe com um gosto mais ecléctico — Amy Winehouse e coisas desse género. Acho que o meu bisavô tocou orgão numa igreja ou algo do género. E o meu avô do lado da minha mãe cantava um pouco, mas era só isso.

Sabes, quando lemos perfis sobre os protagonistas da cena londrina, vamos sempre encontrar menções a instituições como o Trinity Laban Conservatoire, por exemplo, mas tu decidiste ir para o ensino superior noutro continente, certo? O que te fez escolher a Berklee?

Hum, apenas ler sobre a escola. Li sobre a Berklee e pensei, “isto é incrível”. Eu lembro-me de ler sobre o assunto e mencionar pessoas como o Herbie Hancock, que é basicamente o meu herói, e os Headhunters, músicos que me introduziram ao jazz. “Não é possível que haja um sítio destes no mundo, mas parece tão distante para mim”, pensei. Então, eu fiz uma audição online, enviei um vídeo, e fi-lo por diversão, mas não alimentei grandes expectativas — não queria ficar desapontada no caso de não ser aceite. Mas acabei por ganhar uma bolsa para ir à escola de Verão, um curso de cinco semanas. Quando estás nesse programa, tu podes fazer uma audição para entrares na escola enquanto estudante. Tornou-se uma ambição minha entrar, por isso tentei, não havia grande mal em fazê-lo, e criei o meu próprio arranjo para a “Take Five”. Acabei por ganhar uma bolsa completa para fazer lá o ensino superior, o que foi uma loucura. Nem queria acreditar e liguei à minha mãe a contar e ela também ficou incrédula. Tivemos de perceber o que fazer com os voos e tudo isso, mas era uma oportunidade tão boa que a minha família ajudou-me a que conseguisse aproveitá-la.

Muito bem. E tu dirias que aprendeste mais dentro da sala de aula ou mais com os teus colegas nos clubes e nos concertos? Como era o ambiente por lá?

Sim, aprendi muito em todo o lado, na verdade. Uma coisa engraçada sobre Berklee é que existem tantas aulas diferentes. Não é só focado na performance, também podes aprender a arranjar, a compor ou sobre a indústria musical. E tivemos aulas onde aprendemos a arranjar para sopros ou para big band ou a produzir e o básico sobre o Pro Tools. Eu senti que foi muito fixe poder explorar um pouco mais e não ficar apenas a tocar bateria. Aprendemos a ler música, a usar DAWs para produzir e coisas importantes sobre o negócio que existe associado à música. Mas, claro, tocar com fantásticos músicos de jazz é a parte mais importante.

Fala-me sobre a bateria. As pessoas vêem-na como um dos instrumentos mais exigentes a nível físico, mas é também um dos instrumentos mais antigos da humanidade. Deve ter um profundo peso espiritual associado, não é?

100%. Tanto o ritmo como a voz devem ser os instrumentos originais, já que consegues bater em qualquer lado e cantar em qualquer sítio. Nunca tentei ser a melhor de todos a nível técnico na bateria, mas sempre tentei encontrar uma forma de tocar que parecesse natural. Eu uso baquetas mais curtas porque… quero sentir como se estivesse a bater nas minhas próprias pernas. Não quero sentir que estou a encarar um instrumento gigante. Mas sinto que a bateria é um instrumento com o qual todos se conseguem relacionar. Definitivamente. Todos conseguem compreendê-la, de certa forma. É o efeito do groove.

É verdade. Vamos falar um pouco sobre o conceito de swing. Tu dirias que significa coisas diferentes para pessoas que estão em diferentes do lado do oceano? Eu acho que é algo cultural.

Sim, claro. O ambiente onde te desenvolves tem um enorme impacto na forma como tu tocas. Eu sinto que na música, mas especialmente no jazz, estás sempre a aprender e a estudar, sempre a descobrir mais sobre o que veio antes de ti e coisas do género. E acho que quanto mais aprendes sobre História, mais percebes que está tudo ligado. Suponho que em Portugal tenhas sentimentos diferentes do que aqui em Inglaterra, mas, mesmo assim, Portugal é muito próximo do Brasil e de África. E o mesmo acontece com a música e a cultura inglesa, que derivam do continente africano e beberam dos seus ritmos. Tudo vem do mesmo sítio, mas tu aprendes a partir de perspectivas diferentes, parece-me.

Podes falar-me mais sobre as tuas referências, os teus ídolos, os bateristas que admiravas?

São tantos, mas o meu favorito de sempre é o Tony Allen. Falo sempre sobre ele porque foi o primeiro baterista que ouvi e fiquei, “wow, eu sinto que já tenho a sua forma de tocar em mim”. E nem sabia. Houve logo uma ligação instantânea. Do tipo, “eu quero soar a isto”. Mas passei muito tempo a estudar músicos de jazz e o [Art] Blakey foi, provavelmente, aquele com quem senti mais conectada. O Elvin Jones também, o poder deles… eu sempre quis… a Cindy Blackman, o Tony Williams, quer dizer, todos eles têm tanto poder na forma como tocam e não necessariamente dinâmicas, mas potência. E eu admiro esse tipo de bateristas, gosto especialmente deles no jazz de fusão. Tudo aquilo é insano para mim, o foco e o controlo que eles têm quando tocam bateria.

Quando é que começaste a envolver-te com a cena londrina? Foi logo quando voltaste de Berklee?

Eu andei na escola em Londres quando tinha 16 anos, por isso já desde essa altura que andava a fazer cursos de jazz na cidade. É uma cena relativamente pequena, por isso nós crescemos juntos e depois todos foram embora, mas mantivemo-nos em contacto e a fazer gigs uns com os outros nas férias. Mas, sim, só mergulhei propriamente na cena durante os últimos anos, depois de voltar de Berklee.

E, desde então, pudeste tocar com muitas pessoas diferentes. Tu já mencionaste a Cindy Blackman, com quem tiveste aulas. Ela esteve de alguma forma relacionada com o facto de o Lenny Kravitz te ter convidado para tocar? Deve ter sido fantástico.

Sim, foi óptimo. Mas nunca tive aulas com a Cindy Blackman, na verdade.

Tinha lido isso algures. Bem, não podemos acreditar em tudo o que lemos online, certo?

Exacto. Mas gostava de ter aulas com ela um dia. A ligação com o Lenny Kravitz foi um pouco ao calhas. Quer dizer, pelo menos para mim foi. Aconteceu no meu último ano de universidade e foi aquela história clássica que as pessoas dizem que pode acontecer um dia, mas que tu pensas que nunca vai acontecer. Ligaram-me um dia e disseram que queriam fazer um vídeo comigo na semana seguinte. Eu estava em Boston e disseram, “podes voar para Paris?” E eu fiquei, “deixem-me ver o meu calendário… desculpem, tenho uma aula” [risos]. Foi uma experiência incrível. O Lenny é uma inspiração, toca todos os instrumentos, é talentoso e um gajo fixe. Também é um excelente mentor, alguém que podes seguir.

Certo. Mais recentemente tocaste com o Alfa Mist, músico que já tive oportunidade de ver ao vivo — e ele é fantástico. Também estás com a Jorja Smith. Fala-me sobre esses dois casos, por favor.

O Alfa Mist é uma lenda. Eu sou fã da sua música há muito tempo. Quando estudava, eu costumava ouvi-lo muito, por isso foi fixe quando recebi uma mensagem dele no Instagram. Fizemos uma pequena jam e eu juntei-me à banda dele para alguns concertos. Consegui o gig com a Jorja Smith na mesma altura, e agora estou dedicada e comprometida com ela. Não fiz muitos gigs com o Alfa, mas fizemos uma tour em Novembro, no Reino Unido, e foi incrível. Ele estava a tocar o seu novo álbum, Bring Backs. E fizemos aquele lançamento no Metropolis Studios, que era suposto ter ficado online apenas um dia, mas foi tão bem recebido que acabou por ficar lá. E agora tem mais de um milhão de visualizações.



É brutal.

Nós não estávamos à espera, sabes, foi do tipo, “vamos meter isto para alguns fãs, talvez umas 1000 pessoas, e depois tiramos” [risos].

Mas isso na verdade diz algo sobre o alcance que a actual geração do jazz tem, não achas? Ainda te surpreende? Vemos nomes como a Jorja, a Nubya ou o Shabaka a terem letras maiores nos cartazes dos festivais, o que significa que estão a chegar a cada vez mais gente.

Não diria que me surpreende, mas sim, definitivamente. É o resultado do trabalho que as pessoas têm feito durante os últimos anos, e acho que a história acaba sempre por flutuar e repetir-se a si mesma, por vezes. É a música que já foi bastante popular e depois foi abaixo para qualquer outro estilo tomar conta. E agora está a voltar. Montes de pessoas dizem-me que nos últimos 10/15 anos as pessoas têm tocado afrobeat para uma plateia de 10 pessoas. E, por alguma razão, por estarmos na hora certa e no sítio certo, muitas das bandas tornaram-se populares e muito mais mainstream. Por isso, eu sinto que nós estamos numa posição favorável — as pessoas estão mesmo a gostar de ouvir o que fazemos. Mas também é preciso lembrar e respeitar pessoas como o Shabaka Hutchings e os Sons of Kemet, que andaram a tocar durante 5 ou 6 anos antes das pessoas começarem a demonstrar interesse. Eu olho com respeito para o Shabaka, e trabalhei com ele um pouco mais recentemente, e ver que o seu foco e dedicação é de um pragmatismo total. E ele está a fazer o que verdadeiramente ama. E está a apreciar que as pessoas finalmente compreendam e se liguem a isso. Enquanto novos artistas, nós temos que honrar e respeitar isso, não podemos ir só na onda, temos de realmente integrar o pelotão.

Agora, tu entraste para um catálogo muito especial, o da série da jazz re:freshed. Já estavas a par disso, certo?

Sim, claro. 100%.

Quais são os teus volumes favoritos?

O da Nubya. Eu era amiga dela lá mais para trás, nós fizemos algumas coisas juntas quando éramos adolescentes. E apareceu-me no Spotify quando estava nos Estados Unidos e eu fiquei, “meu Deus, a vida da Nubya está a correr lindamente”. Achei o disco dela tão cool e original, fiquei muito impressionada com a maneira como ela arranjou a música. É do jazz, mas ela incorporou afrobeat, r&b, hip hop, e tudo e mais alguma coisa que lhe queiras chamar. Inspirou-me ver alguém fazê-lo e deu-me a confiança para um dia ser eu mesma a ocupar aquela posição. Antes eu sentia que por ser do jazz tinha de me estrear com algo mais tradicional. Para ter o respeito antes de poder explorar. O Nubya’s 5ive foi, definitivamente, muito especial para mim.

Qual foi a tua abordagem neste disco? Por exemplo, podes falar-me um pouco sobre a banda que juntaste? Tens lá um músico português, o João Caetano. Vi-o a tocar há uns tempos em Lisboa, num restaurante cabo-verdiano. E ele esteve muito bem.

Esse foi o concerto com os Incognito?

Não, foi o aniversário de um cantor português chamado Dino D’Santiago. E o João estava lá a tocar percussão.

Eu gosto muito do João. Nós conhecemo-nos durante o confinamento e depois fizemos alguns concertos juntos com uma banda e eu fiquei, “este gajo é fantástico”. Antes disso, eu em Londres tocava sem percussionista. Era só bateria, baixo, guitarra, trompete e saxofone tenor. Quando vi o João, pensei, “sim, nós precisamos de ti”. E ele aceitou logo. Sinto-me muito afortunada por poder trabalhar com ele. Na banda temos ainda a Daisy George no contrabaixo, mas às vezes toca o baixo eléctrico — descobrimos que em alguns concertos em clubes com um som louco e graves intensos essa era a opção acertada. Nós amamos o som do contrabaixo, mas às vezes pode ser um pesadelo [risos]. E temos ainda o Jamie Leeming na guitarra, o Christos Stylianides no trompete — às vezes quando precisamos de outro instrumento de sopro chamamos o Mark Hurrell. No saxofone tenor temos o Giacomo Smith. Às vezes é mais fácil ter um grupo pequeno em Londres.

Isso é um statement, ter três sopros na banda, não é? É difícil escrever para sopros?

Sim, eu acho difícil. Definitivamente [risos]. Eu tenho dificuldades em escrever melodias, só para começar. Eu consigo apanhar o groove, sem problema. Matar no beat e nas linhas de baixo: eu divirto-me muito a escrevê-las. Mas quando chega à harmonia e melodia, eu tenho dificuldades em focar-me e tentar criar algo que não ache mau ou foleiro.

Voltaste às aulas de piano para fazer isso?

Sim, sempre.

E os vocalistas que aparecem no projecto?

A Eva Joseph, que aparece na “Darkness in the Light”, é uma grande amiga minha. Crescemos juntas, estudámos juntas na Julian Joseph Jazz Academy. Voltei a estar com ela em Londres, sempre adorei a voz dela. Ela inspira-se bastante em cantoras como a Ella Fitzgerald, mas também adora neo-soul, hip hop ou até bossa nova. As coisas boas [risos]. Nós escrevemos a letra juntas. E somos as duas mestiças. Foi divertido. O outro vocalista é o meu irmão gémeo.

Pelo apelido, eu assumi que fossem da mesma família.

[Risos] Exactamente. E ele é novo a fazer spoken word, apesar de escrever poemas há algum tempo. Ele mudou-se para Bristol, há dois anos, e começou a ir a open mics e a ler os seus poemas. E eu pensei, “porque não?” Ele também fez o artwork do meu primeiro EP — também é designer gráfico. Neste álbum, ele está a fazer spoken word, o que é fixe.

Mais um par de questões e deixo-te ir. Podemos falar um pouco sobre o que significa ser mulher no jazz? Existe actualmente um debate em Portugal, com as artistas femininas a começarem a falar da falta de diversidade nas programações. Quando olhamos para o caso britânico com tantas líderes mulheres — a Nubya, Emma-Jean, Yazz Ahmed, Cassie Kinoshi, Tamar Osborn, etc, vocês parecem estar mais avançados nisso. Mas provavelmente vocês ainda acham que não. Ainda há muito para fazer, certo?

Sim, sempre. Acho que ainda há muito para fazer durante uns tempos, porque tem de chegar a um ponto em que normalizámos isso a um ponto em que já não temos de fazer esse trabalho. Mas ainda falta muito para chegarmos aí. A coisa mais pequena e simples de se fazer é diversificar os cartazes e meter mulheres a cabeças de cartaz. Mais mulheres nesse lugar vão convencer jovens a pegar nos instrumentos e querer trabalhar numa área que é dominada por homens.

Tu estás a fazer a tua parte nesse departamento, não é? Tens trabalhado com miúdos.

Sim. Eu gosto mesmo de ensinar. Pode ser muito desafiante, mas, no final, é muito recompensador porque… eu fico muito agradecida pelas aulas que eu tive. A razão para eu estar onde estou é o apoio que tive dos meus professores e da minha família. Um dos maiores factores para alguém acreditar em si mesmo é outra pessoa dizer-lhe que ela pode ser grande e que é boa no que faz. Acho mesmo importante as mulheres terem outras mulheres enquanto modelos.


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