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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 05/12/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #126: Yussef Dayes

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 05/12/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Yussef Dayes] Black Classical Music (Brownswood Recordings)

Há, sem dúvida, uma intenção por trás da escolha do título daquele que é, formalmente, o álbum de estreia em nome próprio do prodigioso baterista britânico Yussef DayesBlack Classical Music. Trata-se de repensar o mais profundo significado do termo “jazz” à luz de um complexo presente que precisa de se debater com a natural tensão que é gerada pelo significativo peso do passado e pela inexorável força gravitacional do futuro. Yussef não tem dúvidas: senta-se por trás da bateria desde sempre e aquilo que faz tem um nome — música clássica negra.

Haverá, naturalmente, a tentação de se pensar em Dayes como alguém que, contando apenas 30 anos, tem ainda tudo para provar. Mas, o jovem Yussef tinha apenas 10 anos quando frequentou um curso universitário de Verão em Bath ministrado pelo lendário Billy Cobham, nome que, de imediato, o ligou a uma muito funda tradição — entre tantos outros nomes de referência, o baterista que nos deu Spectrum duas décadas antes de Dayes vir ao mundo tocou com Miles Davis, por exemplo. Na adolescência, Yussef Dayes afinou os seus então já muito consideráveis skills com o fundador do colectivo Steam Down, Wayne Francis, e, aos 18 anos, estreou-se com vários dos seus irmãos no projecto United Vibrations que então lançou o fantástico Galaxies Not Ghettos. Integrou ainda o Paradox Ensemble ao lado do trompetista Nick Walters e passou pelas formações de Emanative (de Nick Woodmansey) e Ruby Rushton (de Tenderlonious) antes de ter encetado a breve parceria que, de certa forma, representou um momento-chave na reclamação de modernidade por parte de uma então ainda em formativa ebulição cena londrina — a dupla Yussef Kamaal que criou com o teclista Kamaal Williams e que em 2016 lançou o seminal Black Focus.

Desde então, ouvimos Yussef Dayes em registos de Binker & Moses, do Toshio Matsuura Group, de Tenderlonious, Swindle e Loyle Carner antes da sua outra muito visível parceria, a que estabeleceu com Tom Misch. Juntos, o baterista e o produtor/vocalista lançaram na vetusta Blue Note um álbum que também usava o título para questionar a natureza do jazz — What Kinda Music. O que se seguiu foram ensaios para o statement que temos agora em mãos, exercícios de (grande) estilo, sempre enunciados em palco, com o Yussef Dayes Trio — com o baixista Rocco Palladino e o pianista Charlie Stacey — ou com a Yussef Dayes Experience — com Palladino e o saxofonista Venna

Em finais de 2021, vimos mesmo Dayes — ladeado por Palladino, Stacey e pelo percussionista Alexander Bourt — a mostrar no palco do Paradiso de Amesterdão toda a amplitude do seu génio bateristico. Na altura, escreveu-se no report que deu conta dos concertos do último dia da edição desse ano do Super Sonic Jazz: 

“O concerto abriu logo com uma lição na arte da síncope, versão escola não matematicamente correcta de J Dilla, com Dayes a explanar os seus amplos recursos estilísticos, exibindo o maior som de bateria de todo o festival. O seu kit é aditivado com vários ‘periféricos’, incluindo woodblock e timbales, mais um generoso conjunto de diferentes pratos, que trabalha para um profundo efeito cromático. Mas é sobretudo entre o bombo, a tarola e os timbalões que se desenham os seus padrões, de uma precisão absolutamente incrível, com fluidez plena, sem nunca perderem de vista a ideia de groove, mas aqui reinterpretado com gritante complexidade. Na sua sombra, sempre com elegantes complementos, segue o percussionista.

Dayes, obviamente, toca que se desunha. E percebe-se que adora o que faz porque há um amplo sorriso que não se desfaz nunca do seu rosto e que ilustra bem o deleite que sente por tocar com os seus companheiros: foram várias as vezes em que desarmou para manifestar estupefacção perante o que Rocco Palladino ou Charlie Stacey traziam para a mesa. Mas, ao mesmo tempo, foi sempre também um assertivo líder, dando indicações com a cabeça para os músicos o seguirem ou se retraírem em determinados momentos.

Com carregado sotaque jamaicano — “ya, man”, ouviu-se de cada vez que assomou ao microfone para explicar o quanto gostava de estar ali, como estava a adorar o público ou dando a todos autorização para se levantarem… —, Yussef Dayes demonstrou ser um host irrepreensível, mas um músico que não cede um milímetro expondo no material, sobretudo de Welcome to The Hills, mas também com direito a passagem pelo registo que o lançou quando dividia atenções com Kamaal Williams, uma visão do jazz que parte, sobretudo, do seu atento estudo do hip hop e do continuum caribenho”. 

Black Classical Music não é, portanto, produto de uma qualquer inexplicável geração espontânea, antes o resultado de uma longa, variada e muito ponderada gestação. À edição australiana da Rolling Stone, Yussef deu mais explicações sobre o lugar de onde emana a sua arte:

“Não andei numa escola de música. Tive a oportunidade de estudar com o Billy Cobham, o que foi fantástico; tive professores de bateria, mas a minha formação musical não fez necessariamente parte da academia. Aconteceu fora dela. E não estou a dizer que uma forma de o fazer é certa ou errada, só queria partilhar que há outras formas de fazer as coisas acontecerem. Quando se é adolescente, dizem-nos que temos de ter as melhores notas na escola e que temos de fazer certas coisas para ter sucesso. Penso que há alguma verdade nisso, mas, para mim, foi o facto de fazer o que estava a fazer fora da academia que me permitiu chegar onde estou agora”.

E o lugar a que Yussef Dayes chega com Black Classical Music é de absoluto requinte, um espaço que existe suspenso entre o tal historial longo do passado e as possibilidades ainda inexploradas do futuro, um espaço que é novo porque equilibra dogma e ruptura, tradição e invenção. E com a honestidade da genuína procura como garante da qualidade de que nunca se abdica. Dayes não alcança, compreensivelmente, esse espaço sozinho e neste disco — que é, indubitavelmente uma criação de estúdio, com tudo o que isso tecnicamente implica — reúne os consideráveis talentos dos já mencionados Misch, Venna, Bourt, Palladino e Stacey e ainda do saxofonista Shabaka Hutchings, do guitarrista Miles James, da teclista Laurie Blundell, do trombonista Nathaniel Cross e do seu irmão tubista Theon Cross, da trompetista Sheila Maurice-Grey, de elementos da Chineke! Orchestra e ainda, em vozes, de, entre outros artistas, Masego ou, via sampling, da lenda Leon Thomas, a voz da icónica “The Creator Has a Master Plan” de Pharoah Sanders.

O impressionante acerca de Black Classical Music é o seu constante estado de fluxo, o facto de apresentar a música não como um retrato estático, antes como um filme ou uma viagem, como uma narrativa em que várias vozes, paisagens, cores e sons surgem em constante debate. Pressentem-se colorações latinas de natureza fusionista, mas há igualmente veementes acenos de cabeça aos sons com que Dayes cresceu na Londres moderna e agitada, do hip hop ao drum & bass, do b&b ao dub. E tudo é pautado por uma naturalidade extrema e uma fluidez que nunca permite que da colisão de forças estéticas contrárias resulte algum choque. A bateria de Dayes é central neste edifício, assumindo-se o seu constante diálogo com o baixo como uma espécie de pilar para a construção sonora geral, sempre pautada pela liberdade, pela excelência dos contributos individuais, mas, sobretudo pela harmonia colectiva que é, certamente, o corolário de um delicado trabalho de tapeçaria sonora criada no estúdio.

“Quero que as pessoas tirem o que quiserem deste álbum”, explicou ainda Dayes à Rolling Stone australiana. “Não há certo ou errado aqui. Nem todas as faixas são instrumentais, mas com a música instrumental, podes encontrar a tua própria narrativa, história ou visão através dela. Eu tinha isso quando estava a crescer, se ouvisse Herbie Hancock ou Miles Davis, isso fazia-me sentir de uma certa maneira. Podia não ser o que o Miles ou o Herbie estavam a sentir na altura, mas a música é assim. Podem ser certas notas, certos ritmos que nos dão uma sensação. Estou a tentar continuar essa linhagem”. Esta é, portanto, música que avança, que nos puxa para o futuro. Música clássica negra contemporânea, urgente e absolutamente necessária.


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