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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2021

Futuro objecto de estudo.

Super-Sonic Jazz Festival’21 – Dia 5: lição de novo groove a cargo do mestre Yussef Dayes

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2021

E foi em absoluto delírio, com um Paradiso cheio e de pé em sinal de absoluta rendição a Yussef Dayes, que chegou ao fim a quinta edição do Super-Sonic Jazz Festival, em Amesterdão. Esta foi, convém dizer, a edição possível, sem a original expansividade de um programa que tinha alocado muito mais espaço para talento local, sessões nocturnas de DJing e jam sessions. Uma edição que acabou, devido aos cortes no cartaz forçadas pelas novas restrições impostas pelas medidas decretadas pelo governo neerlandês, por não acolher artistas como Athletic Progression, Fabiano do Nascimento, Dragonfruit ou, entre outros, Arp Frique, mas que ainda assim logrou apresentar um generoso cartaz, com a facção britânica do programa a cumprir com absoluta distinção o seu papel.

E depois de Matthew Halsall e Alabaster de Plume, de Moses Boyd, Ego Ella May, Sons of Kemet e Steam Down, depois de cktrl, Emma-Jean Thackray e Nubya Garcia, anteontem, domingo, foi então dia de Yussef Dayes.

Devido à maior contenção do cartaz na última jornada, e para contornar as impostas limitações em termos de público, as duas bandas programadas para domingo tinham previstos dois sets, com portas a abrirem, respectivamente, às 17h30 e 20h45. A reportagem Rimas e Batidas marcou presença no primeiro set que abriu logo com os holandeses SMANDEM, jovem quarteto formado por Aäron Bouwman (baixo), David Nino van der Grinten (teclados), Rafael Devante Sinay (guitarra) e Kick Woudstra (bateria). 

A biografia oficial reclama, em igual medida, a influência de Herbie Hancock e Drake, mas pese embora Woudstra ter apresentado o kit de bateria mais hip hop de todo o festival (bombo, tarola, hi hats e apenas um timbalão de chão, muito pouco usado), o som geral do grupo, pelo menos nesta formação e nesta ocasião, acaba por ser um pouco mais convencional, aproximando-se, sobretudo, do jazzismo professado por uns BadBadNotGood dando, aliás, razão ao programador Kees Heus que reconhece na ainda imberbe cena de novo jazz local muita competência técnica, mas ainda uma deficiente originalidade.

Ainda assim, os SMANDEM, que editaram já este ano, na Super-Sonic Jazz, o álbum Self Titled, entusiasmaram os presentes, claramente conhecedores do seu material, arrancando efusivos aplausos com um som apoiado num baterismo muito técnico e rápido, mas sobrevoado por desenhos melódicos mais tranquilos, com belíssimos pormenores do piano hancockiano, de facto, e da guitarra que demonstrou nos seus fraseados alguma originalidade, buscando um discurso mais inusitado que encaixa bem na sonoridade geral do grupo.

Mas não se poderá condenar ninguém que ao final da sessão tenha ficado com a memória totalmente preenchida pela actuação absolutamente gigante de Yussef Dayes, acompanhado por um trio de absoluto luxo: Charlie Stacey nos teclados e Rocco Palladino no baixo – a equipa original que gravou Welcome to The Hills –  e ainda um discreto, mas fantástico percussionista de nome Alexander.

O concerto abriu logo com uma lição na arte da síncope, versão escola não matematicamente correcta de J Dilla, com Dayes a explanar os seus amplos recursos estilísticos, exibindo o maior som de bateria de todo o festival. O seu kit é aditivado com vários “periféricos”, incluindo woodblock e timbales, mais um generoso conjunto de diferentes pratos, que trabalha para um profundo efeito cromático. Mas é sobretudo entre o bombo, a tarola e os timbalões que se desenham os seus padrões, de uma precisão absolutamente incrível, com fluidez plena, sem nunca perderem de vista a ideia de groove, mas aqui reinterpretado com gritante complexidade. Na sua sombra, sempre com elegantes complementos, segue o percussionista. 

Dayes, obviamente, toca que se desunha. E percebe-se que adora o que faz porque há um amplo sorriso que não se desfaz nunca do seu rosto e que ilustra bem o deleite que sente por tocar com os seus companheiros: foram várias as vezes em que desarmou para manifestar estupefacção perante o que Rocco Palladino ou Charlie Stacey traziam para a mesa. Mas, ao mesmo tempo, foi sempre também um assertivo líder, dando indicações com a cabeça para os músicos o seguirem ou se retraírem em determinados momentos.

Com carregado sotaque jamaicano – “ya, man”, ouviu-se de cada vez que assomou ao microfone para explicar o quanto gostava de estar ali, como estava a adorar o público ou dando a todos autorização para se levantarem… –, Yussef Dayes demonstrou ser um host irrepreensível, mas um músico que não cede um milímetro expondo no material, sobretudo de Welcome to The Hills, mas também com direito a passagem pelo registo que o lançou quando dividia atenções com Kamaal Williams, uma visão do jazz que parte, sobretudo, do seu atento estudo do hip hop e do continuum caribenho. 

Há lugar para duelos lúdicos com Charlie Stacey, com Dayes a apontar ao teclista o que tocar expondo as suas ideias na bateria, algo que, aliás, experimentará mais tarde com o público, mas sobretudo há amplo espaço para ampliar peças que todos conhecem de cor, como “For My Ladies” tema que o baterista revelou ter sido escrito por Stacey ali mesmo, no palco do Paradiso, numa das suas duas passagens anteriores pelo cartaz do Super-Sonic. “Turn on the red lights. Amesterdam is the city of the red lights, right?”, questionou o líder antes de uma soberba passagem pelo tema que também possibilitou a Rocco Palladino brilhar ainda mais intensamente. Como Dayes ou Stacey, também ele é um músico de elite, dotado de uma expressividade singular, com um melodismo poético e um som altamente personalizado. Filho de peixe, sabe mesmo tocar baixo. No tema seguinte, que soou a reinvenção de “Palladino Sauce”, o baixista voltou a viajar até às estrelas.

O concerto foi, enfim, tremendo, juntando-se às notáveis prestações de Sons of Kemet, cktrl e Nubya Garcia como as mais memoráveis de todo o festival. Apesar do adiantado da hora, e com o segundo “turno” a aproximar-se rapidamente, com a sala a precisar de ser limpa e o palco mudado de novo para os SMANDEM se apresentarem uma vez mais, o público, no entanto, não estava disposto a deixar Yussef Dayes sair, juntou-se num afinado coro chamando por “YUSSEF” a plenos pulmões, trazendo o músico de volta para mais uns 20 minutos de intensidade máxima, com tempo para tudo, até para Charlie Stacey demonstrar que tem chops de pianista clássico (“as in Mozart and shit”, como diria Dayes) e o líder a terminar com um solo de brilhantismo tão intenso que se diria ter explodido por ali uma supernova.

Quando a sala finalmente esvaziou, ao passar junto da multidão, deu para ouvir um dos expectantes fãs que aguardava ao frio a reabertura para a segunda sessão perguntar a quem ia a passar: “How was it? We could hear you scream!”. “Yeah, it was that good”, respondeu outra pessoa que saía de coração absolutamente cheio. Foi mesmo.

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