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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 20/06/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #121: Asher Gamedze / EABS meets Jaubi

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 20/06/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Asher Gamedze] Turbulence and Pulse (International Anthem/Mushroom Hour Half Hour)

“Uma das ideias que tenho há muito tempo passa por questionar a forma como as pessoas pensam sobre a cultura como algo estático ou como algo fixo. Há esta tensão em África, devido à forma como os colonizadores construíram visões da cultura africana, em que as pessoas falam da necessidade de conservar a cultura e de a documentar. Penso que isso é importante, mas também temos de compreender que estas coisas estão em movimento. E nós somos as pessoas que têm de participar nesse movimento”.

Asher Gamedze, baterista, compositor, historiador e agitador político, refere-se ao fluxo histórico, sobretudo aquele em que especificamente se insere – o da África do Sul –, mas poderia igualmente estar a discutir o jazz e a forma como, academicamente, por exemplo, é tantas vezes visto como um corpo cristalizado, um legado que importa proteger e preservar, como qualquer artefacto resguardado dos efeitos do tempo por uma redoma num museu. Gamedze prefere encarar a música como o reflexo de um continuum histórico, um corpo em constante evolução, em permanente mutação – um processo complexo e comunal em que se vê como um interveniente activo. Quando lançou Dialectic Soul, a sua estreia em nome próprio de 2020, Asher Gamedze impôs logo aí essa sua particular perspetiva, explicando que o seu trabalho traduzia, “fundamentalmente, a reclamação de um imperativo histórico”. O músico elaborou depois: “É acerca do dialecto da alma e do espírito enquanto se move através da história. A alma é dialéctica. O movimento é imperativo. Estamos sempre a mover-nos”.

A reboque dessa empolgante obra de estreia, Gamedze participou em debates online – viviam-se tempos pandémicos! – com algumas personalidades. Num deles, o poeta e académico Fred Moten descreveu o baterismo de Asher Gamedze de forma particularmente feliz: “Uma interacção espantosa entre a turbulência e a pulsação. É suposto a pulsação regular, comandar, e também ser regular, exacta, mas a turbulência por baixo e por cima dela é simplesmente extraordinária”. Essa tensão entre a turbulência e a pulsação, explicou ainda Moten, está no centro da dimensão percussiva da música negra contemporânea. Está, indubitavelmente, na base da música que Gamedze cria e que procura equilibrar o caos e a ordem, a invenção livre no momento e a dimensão composicional, ela própria fruto da tal história através da qual, acredita o músico, nos vamos movendo como sujeitos activos.

Neste álbum, gravado na Cidade do Cabo em Maio de 2021, Gamedze volta a ser acompanhado por Robin Fassie (trompete), Buddy Wells (saxofone tenor), Thembinkosi Mavimbela (contrabaixo)– uma equipa coesa e técnicamente avançada que já tinha contribuindo para a excelência de Dialectic Soul – e ainda Julian ‘Deacon’ Otis (voz). Na peça de abertura, Deacon recita “turbulent times call for extreme measures”, com a sua voz a emergir do silêncio recortado por uma simples frase de piano, uma metáfora para a própria acção humana requerida nestes tempos agitados: precisamos de nos erguer do silêncio e fazer ouvir a nossa voz.

O facto de a cada nova peça se acercar do futuro não impede Gamedze de reconhecer as ligações ao passado e o seu papel nestes projectos ecoa o que em tempos foi assumido por Louis Moholo nos Blue Notes, quando se assumiu que a exaltação da cultura funda da África do Sul, à época sob o duro regime do apartheid, era uma forma de resistência, mas que a sua projecção no futuro era imperiosa necessidade para garantir sobrevivência. Nas 9 composições que Asher Gamedze assina e na versão do tradicional “Alibama”, o ensemble move-se como um só, alternando solos de um tremendo vigor com momentos de maior reflexão, uma tensão entre a acção e o pensamento que marca todo o disco, que o eleva e que tem a capacidade de nos arrebatar por completo. Em “Wynter Time”, por exemplo, o tema inicial é exposto nos uníssonos dos sopros, carregado pelo pulso certo do baixo e agitado pelas percussões, abrindo espaço para o saxofone de Wells discursar com sofrido tom a que depois se sucede o trompete de Fassie em igualmente elegante e melancólico fraseado, num encontro de toada emocional que vai muito para lá da técnica. É o som da vida em movimento.


[EABS meets Jaubi] In Search of a Better Tomorrow (Astigmatic Records)

Em 1966, quando lançou a sua Indo jazz suite, o saxofonista alto Joe Harriott estava, na verdade, a ilustrar musicalmente as complexas dinâmicas culturais de um império global ao cruzar, a partir da capital britânica, histórias pessoais, experiências, sons e notas que se alongavam das Caraíbas ao Canadá e daí até ao Reino Unido e Índia. A beleza dessa música traduzia também o prazer da descoberta de um mundo vasto, com diferenças muito acentuadas entre culturas. Quase seis décadas depois, o encontro entre os polacos EABS e os paquistaneses Jaubi não acontece numa capital a viver os últimos dias de um império, mas antes em Wrocław enquanto todos atravessamos um agitado presente em permanente demanda por um amanhã mais risonho.

Guiado por Marek “Latarnik” Pędziwiatr (piano, piano eléctrico, sintetizadores), o quinteto EABS tem ao longo da última meia dúzia de anos afirmado uma distinta visão musical que não esquece a história – homenagearam o lendário pianista polaco Krzysztof Komeda em Repetitions (2017) e o mais famoso viajante cósmico de sempre em Discipline of Sun Ra (2020) –, mas que também não hesita em fincar os pés no presente quando energiza os seus imaginativos arranjos com padrões subtraídos aos universos do hip hop ou do Chicago juke. A mais recente entrada na sua bem recheada discografia poderá igualmente ser a sua mais ambiciosa criação.

A origem deste projecto remonta a 2020 quando “Latarnik” Pędziwiatr viajou até ao Paquistão para sentir o pulso da cena musical local e um pouco mais tarde se juntou num palco em Oslo aos Jaubi e ao saxofonista e flautista britânico Tenderlonious para tocarem material que seria editado no álbum Nafs at Peace  (2021). Perante o sucesso da aventura – que mereceu lugar de destaque em várias listas de melhores álbuns do ano –, rapidamente se percebeu que havia todo o interesse em aprofundar a relação. Fazendo a viagem inversa de Lahore até à Polónia, os Jaubi de Ali Riaz Baqar (guitarra), Kashif Ali Dhani (tabla e vozes) e Zohaib Hassan Khan (sarangi) e os EABS de “Latarnik” e ainda de Marcin Rak (bateria), Paweł  “Wuja HZG” Stachowiak (baixo e Moog Little Phatt), Olaf Węgier (saxofones tenor e soprano e clarinete baixo) e Jakub Kurek (trompete) criaram juntos um álbum de verdadeira sinergia criativa e de partilha de tradições.

Neste tipo de “diálogos” não é incomum adivinhar-se algum tipo de hierarquia ou de domínio. Ao invés, In Search of a Better Tomorrow propõe uma igualitária entrega, expressa na busca de um objectivo musical comum e na expressão de um lugar musical novo, híbrido. Isso resulta do respeito que tanto os EABS demonstram possuir pelo continuum jazz em que se inserem, como os Jaubi naturalmente possuem pelas suas próprias raízes. Mas nem de um lado, nem do outro o peso dessa deferência alguma vez impede a aproximação, a admiração mútua ou o entusiasmante mergulho no desconhecido. A música que estas duas entidades criam de forma comunal tem por sólida base uma intrincada camada rítmica, colorida pelas tablas, impulsionada pela bateria e mantida coesa pelo baixo, mas depois revela uma exuberante riqueza cromática que se espraia por inteligentes soluções harmónicas nos arranjos e “leads” melódicos de tocante e poética beleza.

“Madhuvanti” é a mais dilatada das peças, com quase 8 minutos, e apresenta-se como um solene hino, uma verdadeira saudação ao raiar do dia em que brilha inicialmente o trompete de Jakub Kurek antes do sarangi de Zohaib Hassan Khan responder deixando claro que esta é música de harmónicos encontros e diálogos, a tal base para um amanhã bem melhor. A serpenteante ondulação das tablas depois leva-nos para terrenos de vincada espiritualidade que o tenor de Olaf Węgier igualmente visita com expressiva vivacidade. Os músicos são todos claramente dotados, com amplos recursos idiomáticos, mas todos parecem sobretudo interessados em mergulhar num lago maior, em diluírem-se numa ideia de pureza harmónica que efectivamente sugere que esta não é música de dois lugares distintos, este não é o som de uma ponte que liga culturas, antes uma feliz projecção de um admirável mundo novo.

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