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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2023

Jazz em alta-fidelidade.

Matthew Halsall & Makaya McCraven no Misty Fest’23: um som em constante mudança

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2023

De Manchester e de Chicago chegaram, na última segunda-feira, 20 de Novembro, as estrelas da noite que iluminaram o palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém em mais uma jornada de Misty Fest. O trompetista Matthew Halsall e o baterista Makaya McCraven assinaram prestações muito diferentes, mas ambas providas de elevados níveis de musicalidade, ambas plenamente justificadoras dos efusivos aplausos que recolheram.

Perante uma plateia praticamente preenchida com um público bem diverso e significativamente jovem, Halsall fez-se acompanhar por Matt Cliffe em flauta e saxofone, Alice Roberts na harpa, Jasper Green nos teclados, Gavin Barras no contrabaixo, Alan Taylor na bateria e ainda Sam Bell na percussão. An Ever Changing View, o mais recente registo de Halsall para a sua própria Gondwana Records, forneceu, como seria expectável, boa parte da matéria que se resolveu naquele palco.

Uma palavra para o som da noite. O Misty Fest tem por feliz mote “a melhor música nas melhores salas” e embora questões de gosto ditem que tal mote possa ser discutível consoante as diferentes salas ocupadas e os diferentes nomes programados, é importante sublinhar que para o par de ouvidos instalado no mesmo corpo onde se encontram as mãos que escrevem estas linhas o som de ambos os concertos foi, ali no belíssimo Grande Auditório, dos que melhor memória deixam nos últimos anos. E se têm sido muitos os concertos presenciados…

O belíssimo som foi sobretudo notório na primeira parte, já que o extremo detalhe dos arranjos e o tipo de instrumentação usado pelo ensemble dirigido pelo trompetista Matthew Halsall — quase integralmente acústico — pede minúcia e definição, qualidades presentes em abundância, com uma soberba mistura a dar a sensação de que nos encontrávamos numa sala a escutar um sistema de som hi-fi de elevadíssima qualidade.

Halsall tem falado detalhadamente — incluindo ao Rimas e Batidas — sobre o processo de composição do material que reuniu no seu mais recente álbum, de como o isolamento, contacto com a natureza e as vistas desafogadas o inspiraram a criar uma obra de intensa espiritualidade e carregada de etéreas ambiências. Ao vivo, isso traduz-se numa música profundamente visual, de delicada filigrana tímbrica, com generosas camadas de purpurina aural resultante de muitas pequenas percussões metálicas e não só — no set-up de Halsall há sinos, chocalhos variados e um conjunto de ressoantes peças triangulares que o trompetista nos indica terem sido construídas por “um hippy dude de Bristol” —, mas também, e é importante referi-lo, de subtis bases pré-gravadas usadas que contribuem para a densidade cromática de que esta música também se faz — uma forma de traduzir a tal natureza em constante mudança evocada no título do mais recente álbum de Halsall.

O som de trompete de Halsall é pleno de brilho e definição, claro e absolutamente fluído, mas nunca dominante e muito menos omnipresente. Ele é, na verdade, um líder generoso que cede amplo espaço aos seus companheiros de banda, permitindo que cada um se espraie em solos de enorme elegância. Mas Halsall é também um subtil “maestro” que conduz o colectivo com discretos gestos ou acenos de cabeça, guiando os seus companheiros através dos arranjos, promovendo inflexões de sentido que, no entanto, nunca são dramáticas, antes progressivas e operadas através de longos arcos. A música, bastante modal, é claramente devedora do lado mais “espiritual” do jazz, carregada de claras citações, umas mais óbvias — Alice Roberts a fazer clara vénia à sua homónima antecessora num dos seus mais exuberantes solos —, outras mais rebuscadas — como quando Matthew fez ao trompete aquele mesmo wailing que o vocalista Leon Thomas eternizou na belíssima “The Creator Has a Master Plan” de Pharoah Sanders. Peças como “Tracing Nature”, “An Ever Changing View”, “Triangles in The Sky” ou “Calder Shapes” ditaram o domínio do mais recente trabalho de Halsall neste concerto, mas houve igualmente tempo e espaço para se abordar uma peça como “Patterns”, do álbum que o trompetista assinou com a sua Gondwana Orchestra em 2014, When The World Was One. Belíssimo concerto a justificar a generosa ovação que recebeu.

A segunda parte da noite trouxe ao palco Makaya McCraven e uma surpresa: na entrevista que nos concedeu, o baterista norte-americano tinha mencionado que nos seus concertos em Portugal teria ao seu lado o guitarrista Matt Gold e o baixista Junius Paul, o que se confirmou, e ainda o trompetista Marquis Hill, mas foi, no entanto, a saxofonista Anisha Rush que se apresentou em palco.

Foi com “Seventh String” que a viagem pelo incrível In These Times teve início, com os músicos a espalharem “incenso” sónico numa introdução com múltiplas pequenas percussões que estabeleceram a ambiência, transportando-nos para a zona. O primeiro solo de Junius Paul soou um pouco “abafado”, com o som ainda a ser trabalhado e a contrastar claramente com a “alta definição” da prestação anterior, mas o técnico de som de serviço não tardou muito a resolver isso. Com arranjos “reduzidos” face ao bem mais expansivo material de In These Times, o quarteto teve também mais espaço para se aventurar, tomando as peças do álbum como meras sugestões ou pontos de partida para explorações mais abstractas, com a banda a combinar mostras de alguma complexidade técnica — sobretudo Makaya que, por exemplo, deslumbrou num solo em que usou apenas os aros das peças do seu kit —, aproximações a alguns modos “fusionistas” que a espaços remeteram para os terrenos em tempos calcorreados pelos Weather Report, piscadelas de olho a algum material de leveza mais pop, mas também assomos mais exploratórios e “livres”, sobretudo a cargo da saxofonista que se mostrou à altura da tarefa de preencher o espaço deixado pela ausência do fantástico Marquis Hill.

Quase no final, Makaya apresentou a sua versão para “Autumn in New York”, standard que revisitou em Deciphering The Message, o álbum de recriações de peças clássicas do catálogo da Blue Note, que, explicou, gosta de designar como “Spring in Chicago”, embarcando num shuffle movido a vassouras que tinha balanço reggae e ainda assim swingava com elegância. Uma amostra feliz de como o tempo rítmico deste jazz moderno pode tocar em latitudes bem distantes das que na origem se impuseram a partir de Nova Orleães.

No final da noite foi uma plateia visivelmente satisfeita que ofereceu a Makaya McCraven e aos companheiros uma justa ovação de pé, corolário de uma noite de contrastantes, mas igualmente recompensadoras propostas.


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