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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/09/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #108: Makaya McCraven / The Comet Is Coming

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/09/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Makaya McCraven] In These Times / International Anthem/Nonesuch/XL Recordings

É lícito escrever que desde Where We Come From (Chicago X London Mixtape), trabalho lançado em 2018, Makaya McCraven tem estado ocupado: Universal Beings; a expansão desse álbum com o lançamento de Universal Beings E&F Sides,; a missão de reimaginação da música de Gil Scott-Heron em We’re New Again; e o mergulho no oceano de clássicos da Blue Note que se traduziu em Deciphering The Message são frutos de quatro anos de criação intensa. E a esses títulos haverá ainda que adicionar mais uns quantos que resultam de colaborações ou trabalho de sessão para artistas tão diferentes quanto Kevin Morby, Nubya Garcia, Greg Spero, Ashley Henry, Junius Paul ou a aventura colectiva The Chicago Experiment. 

Em todos eles fica exposta uma prática que o distingue de boa parte dos seus contemporâneos: Makaya é, obviamente, um músico que acredita no valor especial da interacção real com outros músicos em cima de um palco e muito do material que podemos escutar nos seus trabalhos surge desses momentos. Mas, como tão bem exposto nos discos em que abordou a obra de Scott-Heron ou os clássicos da Blue Note, o baterista também se assume como um “beat scientist”, um criador equipado com as ferramentas que o hip hop lhe forneceu. Finalmente, e talvez nenhum outro disco demonstre essa capacidade tão bem como o seu novíssimo In These Times, McCraven é igualmente um arranjador de excelência: parte Teo Macero, capaz de extrair de longas jams de diferentes quadraturas elementos para uma mesma peça; parte J Dilla, com um oblíquo entendimento do tempo rítmico; parte Norman Whitfield ou Charles Stepney, na forma como aborda a diáfana matéria sonora que uma secção de cordas pode fornecer.

Essa efervescência criativa, por um lado, e a sua vasta e apurada panóplia de recursos confluem agora em In These Times, álbum em que o baterista investiu boa parte dos últimos sete anos da sua vida, refinando os seus atributos composicionais e também a sua energia aglutinadora: ao seu lado perfilam-se 15 músicos que são, em boa parte, líderes de pleno direito nos seus próprios projectos, uma verdadeira dream team responsável por muitos dos mais interessantes títulos lançados nos últimos anos, de Jeff Parker e Junius Paul a Brandee Younger, Marquis Hill, Joel Ross ou Marta Sofia Honer. E é preciso insistir nesse admirável ponto. Que todos esses indiscutíveis talentos aceitem submeter-se ás ideias de McCraven diz-nos muito sobre o quão elevadamente considerado ele é no meio em que se move.

Na entrevista que nos concedeu, Makaya McCraven explica em detalhe como se cria e mantém um ensemble desta dimensão e qualidade: “Todos os músicos que participam neste disco estão ligados de diferentes maneiras. Gosto de começar as coisas de forma muito orgânica. São pessoas com as quais me cruzei, com as quais criei laços, com as quais já toquei”, explica o baterista. “Sei de que forma é que conseguimos trabalhar juntos. Para mim, é importante existir esse lado comunitário e familiar nas relações entre músicos. É assim que conseguimos puxar uns pelos outros e crescer. Tento rodear-me de pessoas das quais gosto e que também me inspirem. Tenho uma ligação com a forma como certos músicos tocam a sua cena e isso inspira-me. Até mesmo vozes mais recentes, como o Joel Ross, que conheci quando ele estava no secundário altura em que comecei a acompanhar o crescimento dele, tendo depois observado o tipo de parcerias que ele estabeleceu. Fez sentido trabalharmos juntos. Depois, há a cena de ver quem é que está disponível. E há uma coisa: eu não convido os músicos com base no instrumento. Eu não procuro uma harpista, um vibrafonista ou um trompetista. Eu chamo a Brandee Younger porque quero tocar com ela e quero que ela traga a cena dela. Não chamei o Matt Gold para ele tocar guitarra, mas sim porque quero tocar com ele. É por isso que essas pessoas estão aí. E, à medida que vais tocando, surgem pessoas novas no grupo. Há alguém que não pode e é-nos recomendada outra pessoa para a substituir. Dás por ti a conhecer essa nova pessoa e de repente percebes que também já faz parte da família”. “Família”: a espessura emocional de um disco como este In These Times aponta, precisamente, para essa dimensão – esta é música que só pode surgir se para cada um dos envolvidos não for apenas mais um gig, mais uma sessão. Há muito de pessoal investido neste álbum.

Tendo aproveitado uma encomenda do Symphony Center de Chicago, onde parte do material foi gravado, Makaya concebeu uma elaborada suite em que cruza muitas referências – ecos do jazz mais tradicional, do minimalismo americano, da tradição sinfónica, mas também do hip hop concorrem para uma complexa teia musical que embora se apresente formalmente dividida em 11 faixas distintas se desenrola como uma suite, com um flow natural e profundamente orgânico. Na já mencionada entrevista, Makaya explicou que a particular dinâmica estabelecida entre músicos num contexto de palco foi decisiva para o subtil pulsar de In These Times que, no entanto, não se apresenta como um álbum ao vivo: “há uma energia especial que se desprende dos músicos quando tocam juntos numa sala com público e que difere da que se capta em estúdio. E eu queria combinar essas diferentes nuances neste trabalho”, explicou. 

“Dream Another”, uma das mais belas peças da primeira parte do álbum, servida por um fantástico solo de flauta de De’Sean Jones que evolui sobre uma delicada tapeçaria harmónica tecida pela sitar de Matt Gold e pela harpa de Brandee Younger, tem uma vincada cadência de bateria a suportá-la, mas vive do mesmo tipo de melancolia que se poderia encontrar na banda sonora de um qualquer clássico do cinema francês ou italiano de meados dos anos 70. Uma perfeita amostra da capacidade de escrita de McCraven, que não é apenas um cientista rítmico, é igualmente um designer de belíssimas melodias e, sobretudo, um arquitecto de densos, mas elegantes edifícios sonoros. A única peça que o líder não assina neste trabalho é “Lullaby”, originalmente escrita por Ágnes Zsigmondi, flautista e cantora húngara, fundadora do grupo Kolinda e sua mãe. Aqui, é, uma vez mais, a harpa que se destaca, acentuando aquele que é, talvez, o momento mais reflexivo do alinhamento. Makaya explica como ganhou essa peça lugar num trabalho em que ele assina as restantes composições: “Havia uma passagem nesse tema em que ela canta uma linha da autoria dela, mas que faz parte de uma coisa muito maior. Ela adaptou-a e fez uma nova harmonia para um grupo de jazz mais pequeno. No meu disco, está novamente rearranjada e re-harmonizada, mas tem algumas partes — como a trompa ou as cordas — que são transcrições da improvisação que ela captou para o seu disco. Fui buscar as minhas memórias desse disco, mas acaba por ser uma coisa que eu conheço bem e até tenho tocado o tema ao vivo muitas vezes. E não apenas na banda que tenho agora — já a recuperava nas bandas que tive com os meus amigos da escola”.

Depois de “Lullaby”o álbum dispara para uma segunda parte mais intensa, com momentos de pronunciado baterismo a deixarem claro que esta é música que pertence a este agitado presente. “This Place That Place”, por exemplo, começa com uma síncope que soa fora de tempo, como um beat não quantizado de Dilla, antes de ganhar uma propulsão que parece aposta à suave nuvem de cordas e de arpégios de harpa que flutua logo acima. E depois há “So Obuji”, um claro tema de hip hop em que Makaya se desprende dos tempos rítmicos mais complexos para assumir um 4/4 claramente hip hop que sustenta uma peça em que a marimba faz a ponte com África antes da melodia divagar para outras coordenadas geográficas com ecos de um qualquer oriente mais ou menos imaginado. Uma delícia para os ouvidos de quem não temer seguir estrada fora sem mapa, simplesmente perdido na paisagem. 

Disco para as contas de 2022, certamente.



[The Comet Is Coming] Hyper-Dimensional Expansion Beam / Impulse

Em Março de 2019, Maxwell “Betamax” Hallett falava ao Rimas e Batidas sobre o tempo que ele acredita ser o do jazz: “O jazz, para mim, está no presente, [e mesmo que procures] explorar o futuro, mergulhas no desconhecido e acho que isso será sempre refrescante. Mostra algo de uma ligação, que não envolve só os músicos: abarca toda a cultura e as pessoas, e para onde estão virados. Os ouvintes estão famintos para encontrar a sua própria identidade na música que espelha a nossa cultura londrina, e sinto que é assim que deveria ser em toda a parte: toda a gente deveria estar a explorar as suas culturas, onde estão e o que lá está a acontecer de momento”. 

Alguns dias depois da publicação da entrevista com o baterista dos The Comet Is Coming, na crítica em que então se abordou Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery (o sucessor de Channel The Spirits, o primeiro álbum do trio editado em 2016 na Leaf, e o primeiro a ser já lançado com carimbo da Impulse), escrevia-se que esse era “um daqueles discos que parece perfeito para ser desfrutado com um bom par de auscultadores, talvez enquanto se percorre Londres à noite no DLR e a luz dos edifícios mais modernos funciona como um constante aviso do nosso lugar no mundo. Se a cidade não nos acolhe ou não chega, talvez o espaço cósmico que temas como ‘Astral Flying’ ou ‘The Universe Wakes Up’ evoca seja mais receptivo”.

The Afterlife, lançado já na recta final do mesmo ano de 2019, foi o último trabalho de maior fôlego lançado por este cósmico trio antes do novo Hyper-Dimensional Expansion Beam (pelo meio houve ainda o maxi Imminent). Sobre esse terceiro álbum escreveu-se por aqui que demonstrava claramente que o futuro continuava a ser o destino final dos The Comet Is Coming: “A receita expansiva de jazz cósmico, com o solista King Shabaka a riffar em direcção a Andrómeda sobre uma base de pulsar pronunciado servida por Betamax (Hallett) e envolto no pó de estrelas que se desprende dos sintetizadores de Danalogue (Leavers), mantém-se, mas também se percebe que este é o som de um grupo que continua a evoluir de cada vez que os seus elementos calham de estar na mesma sala, tão irrequieta e imparável que soa a sua demanda de algo novo”.

A já mencionada estreia do trio de Betamax, King Shabaka e Danalogue (aka Dan Leavers), Channel The Spirits, mereceu, em meados de 2020, relançamento com extras. E sobre esse primeiro sinal discográfico do grupo, garantiu-se, já em terreno de Notas Azuis, que marcava o início da demonstração de uma “sincrética visão que cruzava jazz exploratório, cadência electrónica de clubes e abandono extático apreendido no afrobeat mais militante”. Interessante perceber como, em 2022, o cometa parece continuar a aproximar-se sem dar sinais de desvios: vimo-los a antecipar esta nova edição em Paredes de Coura, onde assinaram um concerto vigoroso, e agora podemos finalmente mergulhar em Hyper-Dimensional Expansion Beam.

Quem segue Shabaka Hutchings nas redes sociais , quem já se conformou com o anúncio da extinção dos Sons of Kemet e quem escutou a sua estreia a solo, Afrikan Culture, lançada em Maio passado, não pode deixar de ponderar se o saxofonista, agora visivelmente interessado em várias flautas tradicionais, como a japonesa shakuhachi, pretende fincar os pés na Terra e largar os caminhos do espaço. Sobre esse trabalho (ainda a aguardar edição física), escreveu-se por aqui:  “Trata-se de um disco muito mais contemplativo do que o que se tem escutado na feérica produção do saxofonista. O título da primeira peça, ‘Black Meditation’, serve igualmente para classificar de forma clara o que aqui se escuta. Uma cuidada tapeçaria de sons que Shabaka urdiu em multi-pistas, cruzando diferentes flautas e clarinete, com pontuais enquadramentos harmónicos proporcionados pela harpa, kora e ‘thumb piano’ e ainda delicadas percussões”.

O novo álbum foi gravado ao longo de quatro dias nos Real World Studios e conta, como de resto os anteriores, com produção de Danalogue e Betamax. O som é mais musculado e agitado do que o dos registos anteriores, com a pós-produção a impor-se de forma mais notória. O grupo, segundo revelações da editora, retirou-se para o estúdio fundado por Peter Gabriel logo após o confinamento, entregando ao engenheiro de som Kristian Craig Robinson a missão de registar as sessões de improviso. Depois disso, coube a Betamax e Danalogue usarem esse material como ponto de partida para a criação da versão final dos temas, transformando o estúdio num instrumento tão importante como as baterias, caixas de ritmos, samplers, sintetizadores, saxofone tenor e shakuhachi usados nas gravações.

O arranque do álbum, com a dupla investida de “CODE” e “TECHNICOLOUR”, é simplesmente arrasador: uma barragem de beats densos sobre os quais King Shabaka rasga frases curtas, incisivas e repetivas através do seu saxofone em estado de absoluta incandescência. “LUCID DREAMS” e “TOKYO NIGHTS” parecem desacelerar o passo, mas nesta última peça Shabaka tem um dos seus mais intensos, ainda que breves, solos. “PYRAMIDS”, o single que antecipou a edição do álbum, volta a carregar no acelerador, com Shabaka a pegar no espírito de Fela e a deixá-lo à solta num tema de ritmo convulsivo que Stormzy não desdenharia (o mesmo, aliás, poderia ser dito de “Atomic Wave Dance” – está, aliás, na hora de se cavarem mosh pits em concertos de jazz). “ANGEL OF DARKNESS” faz natural justiça ao título e assume-se como deriva carpenteriana que, no entanto, o soprador toma como pretexto para saltar sobre o abismo revelando uma ferocidade total que o confirma como um dos mais entusiasmantes saxofonistas desta geração. São quase sete minutos de cortar a respiração. Nos dois derradeiros temas do alinhamento (que se estende por 11 peças e se alarga até bem próximo da marca dos 45 minutos), a pressão permanece alta, embora os tempos pareçam acalmar: “THE HAMMER” e “MYSTIK” são mais duas inequívocas provas de que os The Comet Is Coming são uma das mais urgentes vozes do jazz britânico contemporâneo, um projecto que, espera-se, não se extinga por colidir finalmente com uma qualquer massa estelar mais vasta. Talvez se possa pedir à NASA que lhes desvie a trajectória, permitindo-lhes continuar a avançar espaço sideral fora até à eternidade…

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