LP / CD / Digital

The Comet Is Coming

The Afterlife

Impulse! / 2019

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 07/01/2020

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Segundo registo dos The Comet Is Coming de Shabaka Hutchings, Maxwell Hallett e Dan Leavers no espaço de um ano, este The Afterlife é um lógico complemento de Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery. A receita expansiva de jazz cósmico, com o solista King Shabaka a riffar em direcção a Andrómeda sobre uma base de pulsar pronunciado servida por Betamax (Hallett) e envolto no pó de estrelas que se desprende dos sintetizadores de Danalogue (Leavers), mantém-se, mas também se percebe que este é o som de um grupo que continua a evoluir de cada vez que os seus elementos calham de estar na mesma sala, tão irrequieta e imparável que soa a sua demanda de algo novo. E portanto, ainda que este material tenha sido registado ao mesmo tempo que o do álbum lançado nove meses antes, sente-se aqui uma continuidade, uma avanço, que é diferente de um simples revisitar de ideias: este The Afterlife soa mais “interior” e mais reflexivo que o seu antecessor. É extraordinário que Shabaka Hutchings tenha conseguido inscrever os seus três projectos correntes – estes The Comet Is Coming, mas também os Sons of Kemet e ainda Shabaka And The Ancestors – no catálogo da Impulse!, sinal de que a histórica editora que foi em tempos casa de John Coltrane reconhece no saxofonista tenor (e clarinetista baixo) um talento chave neste múltiplo presente em que todos vivemos mergulhados. E é nítido uma vez mais que é o seu respirar que guia e une o trio, pouco interessado em quedar-se em território clássico e muito mais comprometido com a tal busca de algo diferente. E para tanto, o discurso de Shabaka no saxofone é intrigantemente exploratório, sente-se no arranque dos solos que não sabe exactamente para onde se dirige, mas o magnetismo do seu discurso consegue ser tão intenso que não há como não o seguirmos. Este (mini) álbum de pouco mais de 30 minutos abre com “All That Matters is the Moments” com Joshua Idehen (o poeta/griot que vimos com os Sons of Kemet XL na última edição do NOS Primavera Sound) a assumir o lugar que no trabalho anterior dos The Comet is Coming foi entregue a Kate Tempest, dando uma espécie de manifesto para o grupo seguir, com palavras debitadas com o sotaque caribenho do sul de Londres que soam distópicas e nos urgem a viver no momento. O mote é inteiramente aproveitado pelo trio que transforma o som colectivo na nave que carrega as ideias de Idehen para os confins do espaço. Quando aterramos em “The Softness of the Present”, Betamax assume a dianteira com uma cadência que parece inspirada em Tony Allen, um rasgo de raiz orgânica para um som que a electrónica mantém ancorado no espaço enquanto o saxofone de King Shabaka prefere um tom mais introspectivo que até soa contrário à arquitectura geral do tema, mas que ainda assim resulta plenamente. E uma certeza: escutar e re-escutar os seus solos garante sempre renovadas delícias, assim que nos conseguimos sintonizar com os detalhes mais texturais do seu tom que de “The Softness of the Present” escorre depois para dentro do tema que dá título ao álbum, como lava incandescente na encosta de uma montanha, lenta, mas inexoravelmente, quente e transformativo. As duas partes de “Lifeforce” são chave neste alinhamento, dois movimentos de uma mesma ideia que começa por se espalhar como nevoeiro, com um som envolvente e denso antes dos bleeps de Danalogue nos levarem para uma segunda parte em que os riffs de Shabaka tornam a imagem mais nítida, com o beat quase hip hop de Betamax a parecer que está a suportar as rimas certeiras de um qualquer ser astral que debita barras feitas não de palavras, mas de sons e de energia que parecem, ainda assim, contar uma história. Talvez da iminência de um qualquer Apocalipse. E é essa ideia que nos leva à conclusão da viagem em “The Seven Planetary Heavens”, o momento mais poético do conjunto que nos é aqui oferecido, a chegada a uma diferente galáxia que bem pode ser o paraíso prometido depois do abandono deste mundo, algo que parece ser claramente evocado no som do saxofone do piloto que nos guiou até esse novo lugar. Perante a força de Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery talvez houvesse alguma tentação para descartar este The Afterlife como um mero extra, como sobras de uma brilhante sessão que afirmou os The Comet is Coming como uma das mais excitantes propostas deste caleidoscópico presente em que estamos enredados, mas a verdade é que se trata de um trabalho com méritos próprios, um válido capítulo adicionado a um livro cuja escrita no futuro próximo não vamos certamente querer deixar de acompanhar.

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