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Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 07/06/2019

Quantos géneros musicais cabem no mesmo festival?

NOS Primavera Sound’19 – Dia 1: dilúvio de sons e ideias no Parque da Cidade

Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 07/06/2019

É importante que Dino D’Santiago tenha aberto a programação 2019 do NOS Primavera Sound, porque só alguém com este balanço tropicalista moderno poderia afastar as pesadas nuvens e o mau tempo que a meio da tarde se abateu, muito literalmente, sobre a cidade do Porto.

Com as nuvens afastadas temporariamente — voltaria a chover copiosamente durante a apresentação de MorMor e, mais tarde, durante a parte final do concerto de Solange –, Dino levou-nos numa volta ao seu Mundu Nobu, com o seu igualmente novo formato de apresentação em palco, com uma ultra-eficaz moldura feminina que, entre controladores digitais e apontamentos no microfone, colocam Dino na frequência certa para fazer ondular plateias de qualquer tamanho.

Abertura de palco secundário hoje, slot nobre em palco principal um dia destes, apostamos. É que o seu talento tem lastro para isso, o reportório toca nas pessoas, e o presente pede essa promoção de divisão, sem qualquer dúvida.

Com Allen Halloween a apresentar-se à mesma hora que Danny Brown, não houve hipótese de conferir o que o nosso habitante favorito do “unplugueto” trouxe ao Primavera, mas não hão-de certamente ter sido raios de sol, que a sua música de rua e redenção, de alma funda e dorida, de protesto e agitação carrega a sua própria e mais do que justificada carga cinzenta. Mas tinha uma generosa multidão a aplaudi-lo. Não surpreende, claro, mas é mais do que justa recompensa para o seu belíssimo percurso.

Directamente de Toronto, Canadá, e antes de vermos o rapper de Detroit em acção, MorMor, acompanhado por baixista, teclista e baterista, usou a voz e guitarra para demonstrar o equilíbrio entre o pós-punk e o dream pop que conseguiu encontrar . A sua música (que tem tanto de melancólica como de alegre) serviria perfeitamente para a banda sonora de The Perks of Being a Wallflower ou, imagine-se, para o baile de finalistas de Stranger Things. Resumindo-o musicalmente de uma forma concisa, Seth Nyquist é o filho que Prince e Ian Curtis nunca tiveram. Dito isto, não é difícil imaginar o porquê de estar incluído na programação deste ano do festival portuense.

Em dia de temporal, Danny Brown só não foi a pausa merecida porque se apresentou em forma arrasadora, uma verdadeira tempestade de rimas, imparável e irresistível, deixando claro que tem carisma para ombrear com os grandes.

Com um entusiasmado DJ Skywlkr atrás, agitado e capaz de debitar as letras, mas sem microfone porque Danny é o seu próprio hypeman, o rapper de Detroit encheu o palco, correu de um lado para o outro sem perder o fôlego, reclamando a sua linhagem nobre na t-shirt de Nasty Nas que exibiu com orgulho. E no seu timbre ultra-característico — com a voz que soa ao que o histórico guarda-redes do Sporting e da Selecção, Ricardo, soaria caso fosse negro e com um background familiar ligado às classes operárias da indústria automóvel… — Danny entregou-se de corpo e alma, com pontos altos como “Really Doe” a marcarem um alinhamento intenso que desaguou num extraordinário “Best Life”, tema que o rapper faz questão de dizer que tem produção de Q-Tip e que deverá fazer parte de um novo álbum que está para breve. Já se sabe que uknowwhatimsayin? deverá contar com produção de JPEGMAFIA (artista que subirá hoje ao palco Pull & Bear) e também de Paul White, o britânico que assegurou a parte de leão da produção de Atrocity Exhibition, mas na inclusão do homem dos A Tribe Called Quest nos créditos pode, e deve, ler-se ambição para voos mais altos. Ontem, no Parque da Cidade, Brown deixou claro que tem estofo para isso.

E venha de lá uknowwhatimsayin? até porque, sim, queremos mesmo saber o que Danny Brown nos quer dizer. Somos todos ouvidos…

Ah… Tim Gane e Laetitia Sadier, juntos de novo… que maravilha nos haveria de reservar este primeiro dia de NOS Primavera Sound. Os Stereolab estiveram afastados 10 anos do activo, mas a década de pousio só serviu para que o culto crescesse, livre, com a sua discografia a ganhar ainda mais relevância com o tempo.

O som dos Stereolab afirmou-se com o enquadramento do pós-rock, mas sempre viveu num limbo próprio onde as bandas sonoras de filmes franceses, a electrónica pioneira de Jean Jacques-Perrey ou do Radiophonic Workshop, a música concreta de vanguarda, a library music, o psicadelismo à lá United States of America ou a sunshine pop dos Free Design se cruzaram em intrincadas e delicadas filigranas conceptuais que mais ninguém conseguiu reproduzir. Daí que o hip hop, sempre tão interessado em investigar o passado via sampling, tenha aberto uma excepção no seu caso, com gente como J Dilla, Mac Miller, Madlib, Busta Rhymes ou até Jamila Woods a não resistir ao apelo dos seus grooves sem tempo. Até Common, no mais experimental dos seus discos, Electric Circus, chamou Laetitia Sadier para um fantástico “New Wave”.

Ter os Stereolab ao vivo no mesmo dia em que também subia ao palco Danny Brown, outro rapper psicadélico cujo produtor, Paul White, há-de certamente ter estudado atentamente a discografia que Tin Gane espalhou pela sua Duophonic, fazia portanto pleno sentido.

E o grupo tocou em 2019 como se 1999 tivesse sido ontem e Cobra and Phases Group Play Voltage in the Milky Night tivesse acabado de sair. Aliás, “Come and Play in the Milky Night” só poderia ter soado mais glorioso se o grupo tivesse tocado sob uma abóbada celeste estrelada. O tempo não ajudou, mas o calor da voltagem analógica dos sintetizadores aqueceu-nos a alma enquanto temas como “French Disko”, “Miss Modular” ou “John Cage Bubblegum” reavivaram a memória do seu génio particular.

De dedos cruzados para que o impulso do Primavera Sound se traduza numa digressão por salas onde seja possível testemunhar de forma mais próxima a sua particular magia eléctrica.

Para quem já teve a sorte (ou o azar) de se encontrar com os videoclipes de Tommy Cash no YouTube, a surpresa terá sido menor, mas, mesmo para quem já o conhecia anteriormente, o factor choque não ficou fora da equação.

O amante de cavalos (“HORSE B4 PORSCHE” foi um dos temas do alinhamento) trouxe um espectáculo audiovisual que cativa pela estranheza e o surrealismo, misturando vídeos hilariantes (os porcos passeiam gatos no seu mundo, pelos vistos…) com imagens de mulheres nuas a segurarem peixes dentro de água.

Trap, electrónica pouco convencional (Cash tocou a sua participação com os Modeselektor, que actuam amanhã no Parque da Cidade) e outras tantas coisas cabem na sonoridade deste artista estónio que encontrou uma forma de desconstruir (e perverter) o que lhe chegava de fora. Só visto…

A última actuação da noite, pelo menos para o ReB, pertenceu à mais nova das irmãs Knowles, que arrancou a mais ambiciosa das performances do primeiro dia. Com uma estrutura atrás de si que incluía o baterista literalmente “emprateleirado” e deixava as suas bailarinas brilharem no cimo, com especial enfoque nas escadas que levavam até lá, Solange provou que é nome de primeira linha e que, mais do que isso, contém aquilo que mais importa: conteúdo e visão. Não admira que David Byrne, um dos executantes máximos do lado mais artsy da pop, seja seu fã assumido. Dançar sobre arquitectura é mesmo possível, estão a ver?

Young, gifted and black” assenta-lhe que nem uma luva, dançando, cantando (mesmo não sendo a mais brilhante das cantoras, cumpriu com competência) e projectando uma imagem multifacetada do que uma pessoa negra pode fazer, se assim o ambicionar. E “F.U.B.U”, um som que declara isso mesmo, teve direito a descida às grades, onde procurou os reflexos daquilo que cantava. Simbólico.

Balanceando o alinhamento entre o mais recente When I Get Home e o fulcral A Seat at the Table, lançado em 2016, a cantora mostrou que está com os pés bem metidos no rap contemporâneo (e curioso que tenha cortado o verso de Lil Wayne em “Mad”, mas não tenha feito o mesmo com Playboi Carti em “Almeda”) e canções como “Cranes in the Sky” e “Don’t Touch My Hair” soaram tão importantes e grandiosas como quando chegaram pela primeira vez aos nossos ouvidos.

Nem a chuva, que caiu com força “dilúvica” na recta final, conseguiu estragar a sua prestação. Hoje, as atenções viram-se para nomes como James Blake, JPEGMAFIA, ProfJam, Mura Masa, Nubya Garcia, Sons of Kemet XL e J Balvin, que, esperemos, traga o calor latino consigo.


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