LP / CD / Digital

Makaya McCraven

Deciphering The Message

UMG / Blue Note / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 02/12/2021

pub

Deciphering The Message começa com o mesmo sample da voz de Pee Wee Marquette – retirado de A Night at Birdland, Volume 1, álbum de 1954 do Art Blakey Quintet – que já tinha sido usado pelos Us3 na abertura do clássico Hand on The Torch, de 1993. 

Um pouco de cronologia sampladélica, para se enquadrar tal facto: em 1989, os De La Soul lançaram 3 Feet High and Rising, um marco significante na definição dos mais elevados padrões criativos do sampling. Em 1996, seria a vez de DJ Shadow apresentar Endtroducing, outra baliza importante que ajuda a delimitar uma espécie de era dourada na prática de escavar o passado por via da recuperação de rodelas perdidas de vinil. Pelo meio, é justo mencionar também: a trilogia – Step In The Arena, Daily Operation e Hard To Earn –, dos Gang Starr, lançada no arranque dos anos 90; a outra trilogia com que os Beastie Boys também escreveram um importante capítulo dessa história – Paul’s Boutique, Check Your Head e Ill Communication – entre 1989 e 1994; os quatro primeiros álbuns dos A Tribe Called Quest – People’s Instinctive Travels…, The Low End Theory, Midnight Marauders e Beats, Rhymes and Life – oferecidos ao mundo entre 1990 e 1996; e, pois claro, particularmente relevantes para a mais específica actividade sampladéica do jazz, os dois primeiros volumes do projecto Jazzmatazz de Guru, MC dos Gang Starr, lançados em 1993 e 1995.

Foi todo esse período de intensa criatividade e investigação do passado por via do sampling que, começando em 1992, levou a histórica Blue Note a lançar a série de compilações Blue Break Beats, que alinhava temas originais que andavam a ser reenquadrados em discos de hip hop e que foi apoiada por uma campanha promocional em revistas como a Source em que surgia a brilhante e reveladora frase “You gotta hear Blue Note to dig Def Jam”. O passo seguinte da editora criada em 1939 por Alfred Lion foi desafiar o produtor britânico Geoff Wilkinson a mergulhar livremente no catálogo em busca de samples que apelassem a um público jovem: o resultado foi o já mencionado Hand on The Torch, que abria então com o anúncio de Pee Wee Marquette, o mestre de cerimónias do mítico clube Birdland, onde o quinteto do baterista Art Blakey gravou, na noite de 21 de Fevereiro de 1954, o set que seria lançado como A Night at Birdland, Volume 1 (os outros dois volumes dessa trilogia, também lançados em 1954, foram igualmente registados nessa mesma gloriosa noite).

O catálogo da Blue Note, como é óbvio, foi desde então profusamente (e, bastas vezes, criativamente) “pilhado”, mas é possível assinalar quatro momentos-chave na frutífera relação do continuado presente com as cobiçadas rodelas vinílicas que a etiqueta azul e branca lançou até meados dos anos 70: em primeiro lugar, o já mencionado Hand on The Torch que os Us3 editaram em 1993; logo depois, o incrível Shades of Blue que Madlib assinou em nome próprio em 2003; em terceiro lugar, e datada já do ano passado, a antologia Blue Note Re:Imagined; o quarto momento é, obviamente, este novíssimo Deciphering The Message.

De notar que cada um destes marcos nessa já muito longa relação da Blue Note com a modernidade sampladélica tem diferentes nuances: em 1993, Geoff Wilkinson trabalhou sobre masters, ou seja, terá, mais do que provavelmente, recebido CDs ou outro suporte digital com um generoso conjunto de títulos clássicos do catálogo da etiqueta nova-iorquina, samplando os temas tais como, durante décadas, foram ouvidos nos discos em que foram originalmente apresentados; Madlib, por outro lado, teve acesso a gravações multipistas, podendo assim samplar solos isolados ou até pistas que ficaram de fora das misturas finais das obras depois lançadas; já em Blue Note Re:Imagined, o desafio proposto a artistas como Jorja Smith, Ezra Collective, Jordan Rakei, Alfa Mist ou Steam Down e Blue Lab Beats foi o de apresentarem as suas próprias versões dos clássicos, o que, nalguns casos, foi alcançado de forma igualmente clássica, com músicos a gravarem juntos em estúdio, e, noutros, com um cruzamento de múltiplas técnicas, mais “orgânicas”, mas também mais “laboratoriais”.

Ora, pode então dizer-se que Deciphering The Message é uma síntese de todas essas abordagens: Makaya McCraven sampla masters, teve certamente acesso a multipistas, mas recruta também os seus próprios músicos para, de forma criativa, reenquadrarem juntos todos aqueles clássicos de gente como Hank Mobley, Kenny Dorham, Art Blakey, Horace Silver, Bobby Hutcherson ou, para citar apenas mais um nome, Quincy Jones. Como argumentos presentes para este “decifrar do código original”, Makaya McCraven chamou músicos como os guitarristas Jeff Parker e Matt Gold, o vibrafonista Joel Ross, o trompetista Marquis Hill, o baixista Junius Paul ou o saxofonista tenor e flautista De’Sean Jones. E todos eles são convidados a participarem desse diálogo com a memória de uma cultura, tornando-a, uma vez mais, viva e presente.

Alguns destes “recursos humanos” já tinham sido “usados” por Makaya McCraven na sua encomenda anterior, o álbum We’re New Again com que, a pedido da XL Recordings, homenageou Gil Scott-Heron reimaginando a sua derradeira obra, I’m New Here. A propósito desse disco, e em reveladora entrevista ao Rimas e Batidas, McCraven discorreu sobre a relação da geração contemporânea com a tal tradição que agora foi convidado a “decifrar”, reenquadrar e reinventar: “Há sempre forças contrárias em jogo, as que nos puxam ou empurram para a tradição e as que nos atraem para o futuro. Faz parte da evolução. O que é popular no jazz, por assim dizer, se é que ainda queremos usar essa palavra, porque por exemplo eu acho-a demasiado insuficiente para enquadrar todo o espectro musical de que temos vindo a falar, o que é popular não é apenas o que tem mais visibilidade, porque há tanta gente a fazer coisas incríveis que há diferentes correntes de popularidade, não é apenas uma coisa. Da Esperanza Spalding ao Herbie Hancock, há tanto a acontecer que segue diferentes caminhos. O que eu faço… eu tenho tentado beber de todas as fontes e eu sinto que me tenho tentado ligar ao legado da história, mas sem esquecer que é importante olhar para o futuro. Quero ligar-me à diáspora africana que tem padrões de swing e referências aos blues, que improvisa, que evolui. Eu quero atingir a mestria na minha arte, mas tudo vale, é apenas música. E o que é interessante neste momento é que o jazz está a ser feito por um monte de gente nova, que sempre foi o que aconteceu. Eu tenho sido descrito como um jovem leão e já levo 36 anos… E se pensarmos no Lee Morgan, no Herbie Hancock e no Miles Davis, todos eles foram em tempos jovens músicos a tentarem fazer esta música avançar”.

Há, de facto, uma vénia por aqui mais premente que todas as outras: a de Makaya McCraven, que é baterista além de produtor/beatmaker, a grandes mestres bateristas do passado, todos com importante história escrita nos anais da Blue Note – Billy Higgins, “Philly” Joe Jones, Elvin Jones, Joe Chambers, Art Taylor, mas, sobretudo, Art Blakey, cujo baterismo se escuta em quatro dos treze temas do alinhamento. Este “decifrador da mensagem” é obviamente consciente da história (é a isso que o título deste álbum se refere), conhece-a profundamente sendo ele mesmo filho de um músico de jazz, mas, em termos de formação estética, Makaya, que contava meros 20 anos quando Madlib editou Shades of Blue, é igualmente filho dos musonautas sampladélicos que lhe apontaram o caminho: sobretudo o já mencionado Beat Konducta, aka Madlib, e, obviamente, J Dilla. Se bateristas como Blakey o orientaram nas nuances culturais do swing clássico, produtores como Dilla mostraram-lhe que o tempo rítmico pode ser dobrado de outra forma. Por outro lado, na sua intensa actividade sampladélica, sobretudo aquela que foi amplamente documentada na série Medicine Show, Madlib há-de ter apontado ao homem de Universal Beings o caminho para outras declinações do swing, como as que estão presentes nas músicas brasileira ou africana.

Deciphering The Message faz, assim, eco das ideias de Makaya professadas na já citada entrevista que nos concedeu: será que “jazz” ainda é a melhor palavra para descrever/classificar/enquadrar o que aqui se passa? Há que reconhecer, obviamente, o ADN da matéria original usada, mas não há igualmente como ignorar o fascínio aqui bem expresso pela repetição, uma marca herdada do hip hop e que se encontra bem presente ao logo de todo o álbum, expressa em hipnóticos e significantes loops rítmicos. Por aqui identifica-se também uma nova noção de hierarquia arquitectónica sonora, quando se escuta a bateria bem alta na mistura, como acontece em “Sunset”, algo que, uma vez mais, se aprendeu certamente de ouvidos concentrados em clássicos sampladélicos de hip hop.

Em “When Your Lover Has Gone”, peça que McCraven “pescou” no clássico A Night in Tunisia de Art Blakey & The Jazz Messengers, o bounce surge com tropicalismo reforçado, com Makaya a adicionar o seu próprio kit ao do mestre, transportando o tema para uma paragem certamente bem mais quente do que a fria Nova Iorque de Fevereiro em que a faixa foi originalmente registada nos idos de 1957. E ao longo de todo o alinhamento há outros desvios subtis dos centros de gravidade rítmicos originais para esse presente que Makaya habita e igualmente para o futuro que procura encontrar em cada novo registo que assina. Como referido no título da peça que fecha o álbum, reinvenção de “Black Rhythm Happening” de Eddie Gale, há por aqui um ritmo afrofuturista a ser celebrado, estabelecendo a ponte entre a tradição e as novas gerações, entre o jazz e o hip hop e outra coisa, mais indefinível e híbrida que o tempo há-de clarificar. Porque esta música vem toda do mesmo lugar e caminha junta para um tempo novo, assumindo o swing continuum como uma ideia em permanente evolução e nunca como dogma inscrito na pedra.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos