Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
Blue Note Re:imagined
If the digital album is purchased, you will receive the full album via email upon release October 16, 2020. Please note, digital downloads are only available in the U.S.
[Vários Artistas] Blue Note Re:imagined / Blue Note
Nos anos 90, quando o sampling ligado sobretudo ao hip hop expôs o diálogo com uma memória que era tão construída quanto cultural, as ligações do género nascido nas ruas do Bronx a esse outro congeminado na Congo Square de Nova Orleães um século antes tornaram-se por demais evidentes. E quando os produtores se atiraram ao jazz em busca de matéria significante para as suas criações, a Blue Note soube, inteligentemente, colocar-se do lado certo da história. Nessa era, por muitos descrita como “dourada”, quem porventura folheasse uma revista de música mais sintonizada com o hip hop (a norte-americana Urb, por exemplo) iria certamente encontrar um dos muitos anúncios que a casa construída por Alfred Lion então estrategicamente espalhou por uma certa imprensa com os dizeres “You gotta hear Blue Note to dig Def Jam”. Caso raro de discernimento quase filosófico e de considerável densidade crítica por parte de um departamento de marketing, nessa frase abrigava-se uma multitude de ideias e de noções, desde logo posicionando o hip hop como parte de um continuum histórico que continua a desenrolar-se até aos dias de hoje. Mas, talvez até de forma ainda mais evidente, o que essa frase também traduzia era a ideia de que o jazz podia e deveria assumir uma posição de destaque junto das mais jovens gerações, reclamando para si uma fatia do mercado pop de que o género tradicionalmente andava arredado.
Como muito bem explicado por João Morado no seu artigo Reinvenções em tons de azul, a Blue Note ensaiou uma série de aproximações entre os universos do hip hop e do jazz, abrindo o seu catálogo à manipulação sampladélica quando tantos outros se fechavam a essa prática muitas vezes vista como “desrespeitosa” ou até “preguiçosa”. Um dos resultados dessa generosa abertura de espírito pode encontrar-se no facto de hoje muitos nomes firmados do jazz reconhecerem gente como Madlib ou J Dilla como referências tão válidas quanto John Coltrane ou Sun Ra. O jazz, isso é inegável, continua a ser irremediavelmente atraído pelo futuro.
Prova evidente disso pode ler-se na aproximação de catálogos históricos como a Impulse ou a Concord a valores seguros desta nova geração através da contratação de artistas como Shabaka Hutchings ou Nubya Garcia. A Blue Note também não tem sido alheia a essa ideia de renovação de talento nas suas fileiras, tendo-se afirmado como laboratório seguro para as experiências de artistas como Ambrose Akinmusire ou Immanuel Wilkins, mas com a novíssima compilação Blue Note Re:Imagined o histórico selo quer deixar claro que as suas oito décadas de história não representam um peso que a ancore irremediavelmente no passado, antes uma sólida fundação que lhe dá plena autoridade para sustentar as novas ideias que hão-de assegurar o seu futuro. E neste momento é inegável que parte desse futuro está a ser congeminado em Londres.
O conceito de Blue Note Re:Imagined é, de certa maneira, o mesmo que já tinha guiado Madlib em Shades of Blue: oferecer leituras contemporâneas de pérolas há muito arquivadas no extenso catálogo da octagenária editora. Há até algumas faixas em comum: “Montara” de Bobby Hutcherson e “Footprints” de Wayne Shorter constam em ambos os alinhamentos. Mas enquanto o produtor californiano tratou a música encontrada nos multipistas das sessões originais como ponto de partida para criações próprias e para versões mais directas de alguns clássicos, agora é pedida a uma nova geração de artistas que trate os clássicos selecionados como matéria para, como o título sugere, “re-imaginações”.
Jorja Smith, Ezra Collective, Poppy Ajudha, Jordan Rakei, Skinny Pelembe, Alfa Mist, Ishmael Ensemble, Nubya Garcia, o colectivo Steam Down, Blue Lab Beats, Yazmin Lacey, Fieh, Mr Jukes, Shabaka Hutchings, o ensemble Melt Yourself Down e Emma-Jean Thackray abordam peças de St. Germain, Wayne Shorter (o nome mais abordado, autor de quatro dos originais aqui revisitados), Herbie Hancock, Donald Byrd, Andrew Hill, Eddie Henderson, McCoy Tyner, Joe Henderson, Bobby Hutcherson e Dodo Green.
Não é, no entanto, e isso poderia até ser redutor, uma questão de ter o jazz de hoje a celebrar o jazz de ontem. Há igualmente talento r&b ou hip hop convocado para esta festa com todos os músicos a deixarem claro que não lhes interessa um passado preservado em âmbar e adorado canonicamente, mas antes uma visão crítica da história como matéria cultural e identitária que lhes informa a sua criatividade presente em igual medida que outros géneros e abordagens musicais. Na verdade, Blue Note Re:Imagined apresenta um bom caso para uma vibrante e plural cena contemporânea, declaradamente solta e livre na forma como não se coíbe de cruzar diferentes linguagens.
Nomes como os Ezra Collective, Alfa Mist, Nubya Garcia, Shabaka Hutchings ou Emma-Jean Thackray afirmam-se naturalmente neste diverso alinhamento com sólidas revisões da matéria dada em que aplicam todo o talento que têm usado para impulsionar a cena londrina na direcção do amanhã, mas, na verdade, o álbum apresenta uma forte coerência, vivendo mesmo de uma moderna vibração que permite que tanto abordagens mais declaradamente “jazzísticas” quanto outras eventualmente mais “pop” coabitem sem que o todo perca a sua coerência.
Re-imaginar – a Blue Note, o passado, o mundo, a vida, o futuro, o que seja – é realmente vital. É esse impulso para a reinvenção, para a recriação que se traduz nos novos caminhos que a música ciclicamente vai aprendendo a trilhar. E por aqui há ideias que chegam e talvez até sobrem para que todos possamos, e recuperando um título clássico de Donald Byrd reinventado ele mesmo por Madlib, dar um passo para o amanhã.
(Este álbum encontra-se à venda na Jazz Messengers)