A cultura é o sumo da alma: sem ela seguimos homens, mas não humanos. A distopia de nos tornarmos autómatos, munidos de uma mente capacitada de uma feroz sagacidade lógica mas desprovida de espontânea crítica e imaginativa criatividade, está longe de ser a idealização a que muitos de nós aspira. É, então, deste modo, não só necessário consumir cultura, mas também partilhá-la, discuti-la, debatê-la, e – não menos importante — reinventá-la. De um modo geral, os propósitos desta criação colectiva podem ser — ignorando a subjectividade inerente a este imaginário, também ele, de certo modo, individual — grosseiramente distinguidos em três pilares fundamentais: contextualização, significado e predição. Passado, presente e futuro. Ademais, não só de criações, mas também dos respectivos criadores, se faz a cultura, e muitas vezes eles próprios são arte em si mesmos e inesgotáveis fontes de inspiração, fechando assim o ciclo que une os artistas às suas obras de artes, fundindo-os num único e indivisível elemento — numa perspectiva marxista, consumando a não-alienação do indivíduo em relação ao produto do seu trabalho.
Central no papel de preservação, manutenção e criação cultural encontra-se a memória. Curiosamente, podemos recorrer à lendária editora Blue Note para ilustrar a importância deste mecanismo biológico que é, de um ponto de vista funcional, de utilidade primária para a sobrevivência da nossa espécie, mas que possui, também, um papel que transcende uma perspectiva puramente evolucionista; a memória revela-se indispensável e ubíqua na produção e divulgação artística, sendo umas das ferramentas a que mais frequentemente se recorre na criação e promoção da música. Apesar de serem várias as funções desta capacidade inata, talvez o exercício de memória que se apresenta como mais óbvio e imediato é o acto de recordar ou relembrar. Neste domínio, as compilações de best ofs ou greatest hits são o exemplo-mor de como bandas e editoras fazem uso do seu passado para se promoverem no presente, deixando, no entanto, a sua história inalterada. Além disso, outra forma de transportar a música de outros tempos para a actualidade é através de reissues, habitualmente vendidos sob a égide de etiquetas como “remastered” ou “mono reissue” / ”stereo reissue” –– dependendo do modo de como foram feitas as gravações originais –, atractivas quer para novos aficcionados, quer para coleccionadores veteranos ou audiófilos. A propósito dos reissues, a Blue Note é pródiga em celebrar o seu legado desta forma, com constantes reedições que fazem render os louros de um passado que foi de ouro e que indelevelmente marcou a história do jazz. Refira-se, por exemplo, a Tone Poet Audiophile Vinyl Reissue Series, da curadoria do produtor Joe Harley, que até ao final de 2020 prevê trazer a público 24 clássicos da editora, apresentando versões remasterizadas de álbuns essenciais de célebres músicos como Herbie Hancock, Lee Morgan, Chet Baker ou McCoy Tyner.
Porventura menos aparentes serão as ligações entre o acto de relembrar/recordar e o propósito de significado que lhe está subjacente e que confere estrutura, identidade e uma sensação de continuidade. Isto porque uma das estratégias que a Blue Note continua a adoptar é o lançamento de álbuns de “pesos-pesados” do jazz, facto que delicia tanto os ouvidos dos melómanos apreciadores de sonoridades mais puristas como, em determinados casos, os amantes de uma abordagem mais tradicional ao jazz. Afinal de contas, que significado teria o 8: Kindred Spirits (Live from the Lobero) (2020) do saxofonista e flautista Charles Lloyd, se não tivesse existido um Forest Flower: Charles Lloyd at Monterey (1967)? Ou como interpretaríamos o Valentina (2020) do guitarrista Bill Frisell se não tivéssemos previamente escutado o Have a Little Faith (1993)? Poderíamos, ainda, reduzir esta questão da identidade e significado a uma dimensão ainda mais absurda, concluindo, prontamente, que caso a Blue Note não se tivesse associado a músicos avant-garde e heterodoxos como Thelonious Monk ou John Coltrane a sua história – e, em última instância, a da própria música — não teria seguido, certamente, o mesmo rumo. Apercebemo-nos, assim, dos estreitos laços entre memória e identidade, finalizando, por ora, com o truísmo de que a primeira tem um papel primordial na construção e cristalização de uma persona institucional.
Associado à contextualização e significado encontra-se, igualmente, subjacente a ideia de evolução e inovação. Afinal, não há nada mais mutável do que a própria identidade que, não sendo hermética, se encontra em constante mudança e metamorfose. A música, por exemplo, está constantemente sujeita a estímulos que a obrigam a moldar-se e adaptar-se, absorvendo não só influência do exterior, como também exercendo a sua força no meio que a rodeia. Neste contexto, o selo das notas azuis – actualmente sob o comando de Don Was — tem uma sensibilidade apurada não apenas para pressentir o que o público quer ouvir da editora, mas também para influenciar o público a ouvir o que a editora quer que este ouça. A chancela editorial assume, deste modo, não apenas o papel de termómetro — que sonda as tendências e gostos musicais das massas –, como também de termóstato – definindo com audácia as novas ondas, estéticas e sonoridades. Dita atitude progressista é notória naquele que é o novo som da Blue Note, definido por uma nova geração de músicos que alberga nomes como James Francies, Joel Ross e Immanuel Wilkins — novo sangue que corre nos meandros do selo criado por Lion e Wolff e que já nos proporcionou álbuns de escuta essencial como Flight (2018), KingMaker (2019) e Omega (2020). Este acto de continuação inovação e transgressão dos limites a priori definidos leva-nos, pois claro, àquele que é o último pilar fundamental da cultura – a predição. Será possível prever o que estaremos a escutar dentro de uma década baseando-nos na história da música até ao presente? Que entusiasmantes movimentos culturais e estéticas sonoras estarão aí ao virar da esquina? Que influência têm os agentes musicais (músicos, editoras, promotores, etc.) nas sonoridades do futuro? Questões interessantes, porém complexas – talvez a Blue Note tenha mais respostas que nós.
Por último, provavelmente dos mais interessantes actos criativos que se encontram associados à memória são a reinterpretação, a reconstrução e a recontextualização. Como interpretar o passado aos olhos do presente? Como incorporar nas composições de décadas anteriores as ideias, técnicas e a tecnologia da actualidade? Especificamente, como abordar os vários bops do passado sob ponto de vista das sonoridades contemporâneas? O jazz dos anos 40, 50, 60 e 70 não é, com certeza, o jazz da actualidade. Como integrar, então, a linguagem musical moderna no cânone jazzístico? É impensável falar no jazz moderno sem mencionar as relações que este tem com o hip hop, o neo-soul, o funk ou a electrónica — relações que, em muitos casos, não são unidirecionais, com frequentes simbioses e ligações causais que amiúde propulsionam ingerências mútuas. Ademais, e apesar do inegável valor destas questões de um ponto de vista teórico, esta reflexão adquire uma relevância superlativa quando transportada para um plano prático. Neste eixo, a Blue Note apresenta-se como o objecto de análise ideal para perceber de que modo estas reinvenções – ou remixes, na gíria da produção – podem ser feitas e qual o contexto em que surgem. Isto porque, ao longo dos seus mais de 80 anos de história, foram vários os momentos em que o selo discográfico se recontextualizou e reimaginou, editando neste domínio desde trabalhos underground que se mantiveram em grande parte fora do radar, até registos que se tornaram célebres e ainda hoje fazem parte da banda sonora da vida de muitos melómanos. Na semana da edição de mais um trabalho de reinterpretação e reconstrução — o Blue Note Re:imagined –-, olhamos para a história de reinvenção desta editora octogenária.
[Vários Artistas] Blue Note Re:imagined
Antes de nos aventurarmos pela exploração do catálogo de reinvenções (e algumas selecções de breaks) da Blue Note, debrucemo-nos sobre o disco do momento – o Blue Note Re:imagined. Com lançamento previsto para a próxima sexta-feira, 16 de Outubro, esta é uma compilação que reúne nomes da new wave do jazz, soul e r&b britânico, apresentando um elenco formado por Shabaka Hutchings, Ezra Collective, Nubya Garcia, Mr Jukes, Steam Down, Skinny Pelembe, Emma-Jean Thackray, Poppy Ajudha, Jordan Rakei, Fieh, Ishmael Ensemble, Blue Lab Beats, Melt Yourself Down, Yazmin Lacey, Alfa Mist e Jorja Smith.
Composta por 16 faixas que unem a cena de músicos residentes em Londres à etiqueta de Nova Iorque, a Blue Note Re:imagined é, assim, uma compilação que pretende estabelecer pontes entre o passado e o presente da editora, apostando naquela que é uma das mais vibrantes e criativas cenas de jazz dos últimos anos. A maioria das faixas encontra-se já disponível para ser escutada, e as primeiras impressões indiciam que este registo promete tornar-se o expoente do selo no que toca a reinvenções.
À luz dos temas já lançados, de destaque capital é o sete polegadas que juntou a reinvenção dos Ezra Collective de “Footprints”, de Wayne Shorter — um tema que, como veremos ao longo deste artigo, serviu já de inspiração a vários remixes — à versão de “Rose Rouge”, dos St Germain, feita pela cantora Jorja Smith. Além deste, o sete polegadas que junta Jordan Rakei e Alfa Mist a reinterpretarem temas de Donald Byrd e Eddie Henderson, respectivamente, sobressai, igualmente, pela qualidade das versões.
Facto interessante: apesar de breves incursões por outros géneros, a grande maioria das reinvenções da Blue Note até à data tiveram por base o mesmo denominador sónico comum — o hip hop. Já neste Blue Note Re:imagined, a editora vê-se reinventada através das lentes do novo jazz, soul e r&b. Será isto uma simples coincidência ou um sinal dos tempos? Independentemente da resposta, a realidade é que estas sonoridades ganharam um fresco ímpeto nos últimos anos e têm cada vez mais adeptos. Um álbum a não perder, certamente.
[Madlib] Shades Of Blue
“Para aqueles de vocês que chegaram tarde, estamos agora a ter uma pequena cooking session para a Blue Note.”. É com estas palavras de Art Blakey que Madlib anuncia que se prepara para cobrir de tonalidades azuis o jazz da Blue Note. A atracção de Otis Jackson Jr. pelo digging sempre esteve presente na sua carreira, gosto esse que, aliás, será, com certeza, transversal a muitos produtores de hip hop. Das incursões pela música do Brasil – eternizadas na selecção quintessencial Speto da Rua –, até aos mergulhos em crates poeirentas de todo o mundo – registados na série Mind Fusion –, são vários os exemplos desta incessante e obsessiva procura pelo beat perfeito. Ora, em 2003, a invasão de Madlib aos arquivos da Blue Note materializou-se no Shades Of Blue, este que é, indubitavelmente, o maior clássico do género da editora.
Shades of Blue é um álbum onde Madlib pretendeu de uma cajadada só alcançar quer os “old heads” quer os “young heads”. A fórmula: contar a história dos velhos usando a linguagem dos novos, isto é, interpretar o jazz através do hip hop. É verdade que as relações entre os dois géneros estão de tal forma entrelaçadas que há até quem diga que são duas faces de uma mesma moeda. Inegável, também, é o contributo que a Blue Note teve no desenvolvimento da sonoridade que nasceu no Bronx, eternizada em beats de A Tribe Called Quest ou Gang Starr. Em relação a esta contribuição, Madlib relativizou o facto de se dizer que “a Blue Note foi apenas uma fase no hip hop”, visto que “a música ou é boa música ou é má música e eu ainda ouço Blue Note.” Verdade, Otis, verdade… tanto que em 2020 a Blue Note ainda é samplada; será que algum dia deixará de o ser?
Claro está que uma reimaginação do catálogo das notas azuis por parte do produtor californiano não se poderia limitar a um clássico boom bap: o hip hop de Madlib é vibrante, colorido, funky, groovy e psicadélico – enfim, o que é que ainda não foi dito sobre a música desta lenda viva? Temas como “Slim’s Return” e “Distant Land”, baseados nos em “Book of Slim” (Gene Harris) e “Distant Land” (Donald Byrd), respectivamente, foram hits absolutos. “Mystic Bounce”, por exemplo, reimaginou o “Mystic Brew” de Ronnie Foster, sample que também serviu de base ao eterno “Electric Relaxation” de A Tribe Called Quest. Já “Song For My Father” foi uma homenagem do músico ao seu pai, o cantor de soul Otick Jackson Sr., e que recorreu ao tema homónimo de Horace Silver. Por fim, como não poderia deixar de ser, Madlib estendeu ainda mais o significado de reinvenção em “Funky Blue Note”, único tema integralmente original e que foi concebido como uma ode às décadas de 60 e 70, que viram a Blue Note passar progressivamente por um período de fusão com outros géneros – como soaria o hip hop caso tivesse existido nessa época e sofrido as mesmas transformações? Afinal, isto “anda tudo ligado”.
[Us3] Hand On The Torch
São várias as razões que fazem do Hand on the Torch dos Us3 um álbum de inclusão obrigatória nesta lista. Em primeiro lugar, todos os samples usados na produção do álbum pertencem a clássicos da Blue Note, enquadrando, portanto, este registo na categoria das reinvenções. Em segundo lugar, a etiqueta nova-iorquina havia passado por um período de dormência entre 1979 e 1985, tendo sido o lançamento de Hand on the Torch, em 1993, fundamental para trazer novamente a Blue Note para as luzes da ribalta. Basta notar que este foi o primeiro álbum da editora a atingir o estatuto de disco de platina, revelando-se, desta forma, o maior sucesso de vendas da editora até então.
Os Us3 foram formados em Londres, em 1991, quando o promotor Geof Wilkinson conheceu Mel Simpson. A dupla lançou (sob o nome NW1), em 1992, “The Band That Played The Boogie”, single que sampla “Sookie Sookie” de Grant Green e que atraiu a atenção do proprietário da Blue Note, que prontamente lhes concedeu acesso ao catálogo de gemas da editora. O resto, como se costuma dizer, é história, estando a originalidade dos Us3 patente na singular e declarada fusão de jazz e hip hop que produzem. São várias as lendas de jazz sampladas em Hand On The Torch, entre as quais se encontram Thelonious Monk, Donald Byrd, Art Blakey and the Jazz Messengers, e Horace Silver. Porventura o grande clássico deste histórico álbum seja o single “Cantaloop (Flip Fantasia)”, canção que foi um autêntico hit, ainda hoje ouvida nas pistas de dança, e que teve por base o tema “Cantaloupe Island” de Herbie Hancock
Em 1997, os Us3 tentaram repetir a proeza do seu álbum de estreia com o sucessor Broadway & 52nd, registo onde novamente se aventuraram a misturar samples de clássicos da biblioteca da Blue Note com hip hop. Apesar deste ser um disco sonicamente bem conseguido, o seu sucesso ficou muito aquém daquele experienciado pelo Hand on the Torch — talvez a fórmula estivesse gasta; seja como for, a verdade é que os Us3 nunca mais voltaram a lançar pela Blue Note. Interessantemente, juntamente com o Shades of Blue de Madlib, estes são os únicos álbuns de autor desta lista e, seguramente, o zénite da etiqueta no que toca a reinvenções.
[Vários Artistas] The New Groove (The Blue Note Remix Project Vol. 1)
O novo groove introduzido no The New Groove (The Blue Note Remix Project Vol. 1) representou a primeira compilação de remixes da Blue Note que visava fundir o jazz com o hip hop. Lançado em 1996, numa altura em que o jazz-hop ou o jazz-rap haviam já sido experimentados por A Tribe Called Quest, Us3, The Roots, ou até mesmo por Nas, no Illmatic, este foi um disco marcante especialmente pela qualidade dos seus intervenientes.
Reunindo um roster de elite que inclui Guru — rapper que havia já lançado, em 1993, o icónico primeiro volume de Jazzmatazz –, os The Roots, ou Diamond D, The New Groove é um álbum que flui de forma suave e que, estando prevalente mente assente numa matriz hip hop, apresenta igualmente laivos de outras estéticas como o r&b e o funk, ou elementos de electrónica que nos remetem para um proto-nu jazz.
Entre os melhores temas desta compilação encontram-se “Hummin’” de Cannonball Adderley, aqui reimaginado por Large Professor; “Summer Song” de Ronnie Foster, alvo de uma versão da autoria de Diamond D; “The Sophisticated Hippie” de Horace Silver, reinventado por Easy Mo Bee; e “Montara” de Bobby Hutcherson, recontextualizado pelos The Roots.
Interessante reparar na presença de “Vol.1” no título do disco – talvez sinal de que houvesse intenções de produzir sucessores desta experiência. Tal nunca veio a acontecer, infelizmente, ficando este novo groove reduzido a um único volume. Teríamos de esperar três anos para que a Blue Note voltasse a estar envolvida noutro projecto focado em reimaginar o seu catálogo, e seis para que Madlib educasse os ouvidos do grande público, exemplificando como o fazer de forma superlativa.
[Vários Artistas] Diggin’ on Blue Series
Se o The New Groove (The Blue Note Remix Project) acabou por nunca dar origem a um série de álbuns de remixes da Blue Note, uma semelhante intenção concretizou-se em 1999 com a Diggin’ on Blue Series, projecto em que foram lançadas três mixtapes pelos ilustres produtores Pete Rock, Biz Markie e Lord Finesse. A escassa informação que existe sobre estes álbuns é um forte indicador do quão desconhecidos são por parte do grande público, sentença que talvez se deva ao facto de terem sido unicamente lançados em edições japonesas. Apesar disso, todos os álbuns contêm booklets com entrevistas aos respectivos produtores, sendo a de Pete Rock a única que está disponível na integra na Internet, o que faz dela, por isso, uma valiosa fonte de informação para perceber o contexto de realização deste projecto.
Por entre perguntas que tentam perceber qual a importância do jazz e da Blue Note no hip hop, ou quais os álbuns e artistas favoritos de cada um dos produtores, Pete Rock revela que costumava ouvir discos de jazz e dizer que “isto soa exactamente a hip hop sem as rimas”. Uma constatação das semelhanças entre ambos os géneros vinda da parte de um homem com enorme sensibilidade para o assunto. Além disso, Rock explica o método que teve na realização deste projecto, onde quis dar a conhecer os seus temas favoritos da Blue Note, incluindo “alguns temas da minha infância e alguns temas que acredito que as pessoas precisam de ouvir” — abordagem que se assume que tenha sido semelhante por parte dos restantes músicos envolvidos.
Curiosamente, 20 anos mais tarde, em 2019, a Diggin’ on Blue Series deu sinais de vida com um álbum duplo da autoria do duo DJ Krush & Muro. O facto de a trilogia inicial ter sido lançada visando o mercado japonês e este recente trabalho envolver de novo dois produtores japoneses revela muito sobre a razão desta série ser tão desconhecida aos ouvidos do público ocidental. No entanto, que tal não seja inibidor de uma audição cuidada – estamos perante uma excelente selecção de breaks feita por produtores icónicos. Certamente que não são a típica mixtape de hip hop, ou ainda puras reinvenções no sentido definido pelos restantes álbuns mencionados nesta lista; no entanto, são jóias raras de incalculável valor e que, indiscutivelmente, merecem a nossa atenção. Material de inspiração para produtores e beatmakers.
[Vários Artistas] Blue Note Revisited
Vivia-se o ano de 2004 e a Blue Note havia já passado por várias experiências de reinvenções. Talvez esta seja a razão pela qual o Blue Note Revisited não tenha tido o mesmo sucesso de anterior projectos análogos — no fim de contas, o que é que ainda havia para dizer depois do genial Shades of Blue?
“Reinterpretar, reconstruir e recontextualizar” foi o mote usado na produção dos 13 temas que formam esta compilação e que, segundo a editora, não devem ser interpretados como “meros” remixes de clássicos das notas azuis, pois “chamar a estas músicas remixes não descreve com precisão o trabalho meticuloso que ocorreu enquanto os artistas desconstruíam, reconstruiam e muitas vezes construíam novas peças musicais em torno de elementos das canções originais”. Catalogações à parte, esta é uma compilação que se distingue pelo ecletismo, explorando territórios limítrofes do jazz e aventurando-se, deste modo, pelo hip hop, funk, broken beat e house.
Madlib, por exemplo, não se contentou em ter lançado o mangum opus das reinvenções no ano anterior, revestindo neste disco o “Young Warrior” de Bobbi Humphrey com a sua energia idiossincrática. Os japoneses Kyoto Jazz Massive abordam “Kudu” de Eddie Henderson de um modo funky e repleto de broken beats. Os britânicos 4hero deixam o breakbeat de lado para reinterpretar “Won’t You Open Up Your Senses” de Horace Silver de forma surpreendentemente colada ao jazz tradicional, recorrendo à voz de Vanessa Freeman para colorir o tema. Já J Dilla reinterpreta “Oblighetto” de Brother Jack McDuff e DJ Mehdi “Footprints” de Wayne Shorter, ficando, porém, ambas as versões aquém da qualidade a que estes músicos nos habituaram noutros trabalhos. Apesar disso, segundo a mãe de J Dilla, “o remix do Blue Note era algo de que ele se orgulhava” porque envolveu a música “com a qual ele cresceu – o jazz…”.
Blue Note Revisited é um álbum globalmente sólido e que foge, em vários momentos, à tendência da editora para reinventar o jazz através do hip hop. Mais um interessante marco na história de reimaginações da Blue Note e que, apesar de não ser propriamente disruptivo e de ter, inclusive, algumas versões menos bem conseguidas, mostra-nos a facilidade e versatilidade com que a etiqueta reconstrói o seu catálogo.
[Vários Artistas] Blue Break Beats
O Blue Break Beats foi um projecto de génese semelhante ao Diggin’ on Blue Series: consiste numa colecção de quatro volumes que não é composta por reinvenções per se, compreendendo, antes ,uma selecção de breaks altamente groovy e funky que são puro ouro para qualquer amante das décadas de 60 e 70 da editora — época em que grande parte dos artistas da Blue Note começaram a mesclar o jazz com o funk e o rock, criando, assim, densas fusões elétricas que se concentravam no ritmo e não na improvisação.
Aquando do seu lançamento, os álbuns da série Blue Break Beats foram um grande sucesso comercial, tendo inclusive tido impacto no revival mundial do jazz nas pistas de dança. Mais uma vez, produtores e beatmakers, estamos perante ouro sónico! Se o facto de Kanye West, Eminem, The Pharcyde, De La Soul ou The Chemical Brothers — para nomear alguns nomes até agora ausentes – terem samplado temas desta série não for motivação suficiente para vos convencer a irem escutá-la à procura daquele loop flawless, lembrem-se de que — tal como recordado no lema da Blue Break Beats — “You Gotta Hear Blue Note To Dig Def Jam”.
[Vários Artistas] Blue (Deejays Cool Cuts)
Blue (Deejays Cool Cuts) foi uma compilação lançada em 1999 no contexto da celebração do sexagésimo aniversário da Blue Note Records. À semelhança dos álbuns da Diggin’ on Blue Series, este é um registo que ainda permanece fora do radar de muitos melómanos, novamente devido ao facto de ter sido editado tendo como alvo o mercado japonês.
Apesar de ser um álbum underground, a qualidade das versões apresentadas é surpreendentemente elevada, sendo estas da autoria de prestigiados músicos e bandas japonesas como DJ Krush, Kyoto Jazz Masive ou Child’s View. Foram vários os discos usados na produção dos temas, na sua grande maioria da era de fusão da Blue Note pós-60s. Por exemplo, “Place is the Space” de Dazzle-T & Quicky é um tema inspirado em “Places and Spaces” de Donald Byrd; “The Trip” do DJ Hasebe, vai beber a “Fancy Dancer” de Bobbi Humphrey; e “Spireedom” dos Kyoto Jazz Massive baseia-se no “Another Night in Tunisia” de Bobby McFerrin. À excepção destas faixas, todas as restantes contêm elementos provenientes de uma miríade de discos, todos eles, pois claro, com etiqueta Blue Note.
Blue (Deejays Cool Cuts) é um registo altamente original e recomendado. Deliciem-se com a faixa “Shift” de Child’s View, alter ego-de Nobukazu Takemura.