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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/01/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #129: Kassa Overall / Arooj Aftab, Vijay Iyer & Shahzad Ismaily

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 11/01/2024

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Kassa Overall] Animals (Warp)

No frenesim de 2023 (que, na verdade, ainda não acabou…) não foi possível dar atenção crítica a tudo o que registou até abalos significativos no radar Notas Azuis, mas antes de mergulharmos em 2024 (que, de facto, já começou…) é possível pelo menos dar nota de alguns dos discos que têm lugar no que de melhor o ano passado nos ofereceu. Caso de Animals, de Kassa Overall.

O baterista, compositor e produtor – que também rima… – é um artista completo, alguém que não separa as suas valências na hora de criar. E isso sente-se claramente no desenrolar de Animals: é claro que para Overall, produzir e compor são duas faces de uma mesma intenção criativa e que ambas as actividades são regidas pela sua inventiva noção de tempo, aprendida em igual medida a escutar e a medir o pulso de Elvin Jones, Art Blakey ou Max Roach, por um lado, e o de J Dilla, Timbaland ou dos Neptunes, por outro. 

Essa visão ampla e agregadora de Kassa Overall não se aplica apenas a ferramentas e competências, mas também às suas formativas referências, à música com que cresceu. Em 2020, em entrevista concedida ao ReB a propósito do seu belíssimo álbum I Think I’m Good, Overall dava conta de uma descoberta que lhe guiou os seus subsequentes passos artísticos: “O jazz era uma coisa mais académica, que eu estudava desde cedo já a pensar em tornar-me um músico profissional, mas era também algo natural que existia lá em casa; mas eu também estudava o hip hop, como fã, como algo que fazia parte da minha geração – quando o J Dilla estava a fazer beats para os Slum Village e para toda a gente eu estava em casa a tentar perceber como é que ele fazia aquilo e a tentar refazer aquilo. E depois vi os Neptunes transformarem-se naquele fenómeno. E vi o Timbaland a dominar o som. E vi o Kanye a evoluir de beatmaker para rapper. E durante todo esse tempo eu estava também a crescer, a aprender e a criar. Para mim, isso é tudo parte de mim, faz tudo parte de mim, é tudo a mesma coisa, o jazz e o hip hop. E demorei quase a minha vida toda a perceber isso”.

Animals é, sem dúvida, o álbum em que Overall mais se aproxima de uma realização plena dessa constatação. A presença na lista de créditos do álbum de músicos como os saxofonistas Anthony Ware e Tomoki Sanders (filho de Pharoah, que até integra a banda com que Kassa anda na estrada…), do trompetista Theo Croker, do trombonista Andrae Murchison e do pianista Vijay Iyer, mas também de vocalistas/MCs como Danny Brown, Wiki, Nick Hakim, Francis and the Lights, Laura Mvula, J Hoard, Lil B ou Shabazz Palaces sublinha não só o facto de Kassa se relacionar com mentes criativas muito distintas entre si, como ainda o elevado grau de respeito que certamente comanda para ter esse grau de acesso a gente com credenciais artísticas e até comerciais tão sólidas. E de todos eles e elas, Kassa extraiu performances arrojadas, interagindo com cada uma dessas pessoas, num primeiro momento, como artista e compositor, mas igualmente, num momento posterior, como produtor e arranjador, capaz de encontrar para cada uma dessas performances o lugar certo em cada uma das peças. Tome-se, por exemplo, “The Score Was Made”, tema servido por um beat de marcação rítmica vincada em que o piano de Vijay Iyer se espraia esgueirando-se do tempo metronómico e assumindo uma dimensão poética quase ambiental, uma brisa que percorre os vales e picos rítmicos com igual leveza. A distribuição dos improvisos sempre impressionantes do pianista no espaço aural da peça finalizada aconteceu decerto num momento muito posterior à sua captação, com decisões de edição a serem tomadas com assertividade autoral por Kassa, em modo solitário frente ao seu computador e mesa de mistura.

Essa capacidade de tomar cada uma dessas colaborações como matéria para a sua própria expressão deve ser entendida da mesma maneira que se encara o panorâmico ouvido de Teo Macero na hora de organizar as fluídas e livres sessões do Miles eléctrico em coerentes peças que só se cristalizavam na mesa de mistura e não num momento concreto do tempo, como sempre aconteceu com o jazz clássico. A breve mas intensa “Still Ain’t Find Me”junta o fogo que se desprende dos pulmões de Tomoki Sanders a uma densa tapeçaria rítmica, mas percebe-se bem o tracejado do corte e da costura operada por Overall.

“Clock Ticking”, a peça em que se escuta o flow cartoonesco de Danny Brown em toda a sua oblíqua glória (retribuição, certamente, do trabalho de Kassa em Quaranta, álbum que Brown lançou igualmente em 2023 e em que o baterista e produtor a acumula créditos em quatro faixas) e uma mais redonda prestação rimática de Wiki, é um fantástico pedaço de hip hop desalinhado das tendências dominantes, mas comprometido com as mais exigentes normas exploratórias, um pedaço de afro-futurismo com brilho intenso que até tem estofo para servir de molde a um mais amplo projecto que possa seguir esta linha. Kassa Overall acrescenta assim mais um válido argumento a favor de mais cruzamentos entre praticantes destas duas áreas realmente comunicantes (para juntar aos entusiasmantes encontros de Moor Mother com Billy Woods ou, por exemplo, de Pink Siifu com os Butcher Brown).

Com Frank Ocean como inspiração clara para a sua cada vez mais proeminente presença em frente ao microfone (escute-se a belíssima “The Lava is Calm”), Kassa Overall apresenta-se também como um vocalista capaz de olhar para o seu tempo, capaz de pensar poeticamente sobre a condição negra na América moderna que ilude com as armadilhas do capitalismo (“Don’t you go fallin’ / In love with the shiny thingts”) e que invariavelmente acaba por fazer vítimas. Ainda assim, Overall expõe-se, mas não se queixa: “At a loss for words, I can’t complain / I sowed the seeds and prayed for rain / I filled prescriptions to block out visions / Still feel the tremble of a victim / Swallow my arrogance / Do the math of a missed marriage / Plus a couple miscarriages / Dreams never came true / Family that I never knew (Who are you?) / Plus a couple niggas hatin’ too / Now the music is my therapist / We talk it out every night in the booth / Tryna repair this shit / We all tryna break free like a bird in the wind / ‘Cause we all goin home in the end”. 

Se é para ir, mais vale ir até ao fundo.


[Arooj Aftab, Vijay Iyer, Shahzad Ismaily] Love In Exile (Verve)

Love in Exile será, sem dúvida, um dos mais surpreendentes e profundos registos de 2023, um álbum em que três criativos espíritos buscaram um meditativo estado de entendimento comum resultando essa demanda em música tão leve como a mais fina das névoas, mas também tão envolvente como a mais densa das noites. E é, precisamente, de diáfana leveza e de poética escuridão que se parece fazer a música que Vijay Iyer (piano e electrónica), Shahzad Ismaily (baixo e teclados) e Arooj Aftab aqui apresentam, resultado feliz de uma empatia construída pacientemente em palco, após um primeiro encontro do trio em 2018.

O álbum tem apenas 6 faixas que se desenrolam calmamente numa teia de intrincados fios harmónicos – a mais curta, “Sajni”, espraia-se por generosos 8 minutos, e a mais longa, “Shadow Forces”, ultrapassa os 14. Mas o tempo aqui existe suspenso e não se rende à universal velocidade dos relógios. O facto de Aftab se expressar em urdu sublinha uma certa qualidade arcana que esta música parece conter no seu âmago, como se nos chegasse directamente de uma outra era, remota ou até, quem sabe, futura.

O aspecto meditativo do álbum faz pensar na música vocal de Alice Coltrane, partilhando da mesma seriedade devocional, mas como tão bem se pressente na já mencionada “Shadow Forces”, o poético fraseado no piano de Vijay Iyer não esconde um profundo entendimento do mais arrebatado Keith Jarrett, referência incontornável neste tipo de entrega mais espiritual. Num ano tão dramaticamente ferido como o que acabámos de viver, Love in Exile impõe-se como precioso bálsamo, uma obra com reais poderes curativos para os males de que padecem as almas globais.

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