Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[André 3000] New Blue Sun (Epic Records / Sony Music Entertainment)
Não é, certamente, coincidência que duas das mais dramáticas inflexões de carreira operadas este ano tenham Carlos Niño como criativo catalizador. Da primeira, a de Shabaka Hutchings, demos conta na recensão sobre o disco do “misterioso” Kofi Flexxx, Flowers in The Dark, um álbum em que o até há pouco saxofonista assume finalmente a flauta como o interface preferencial para expressar o que lhe vai na alma, no pensamento, nos músculos ou nas mais fundas células. Da segunda, a do actor e, pensava-se (esperava-se?…), rapper que fez nome e carreira nos Outkast ao lado de Big Boi, trataremos por aqui. Niño, percussionista, produtor e alinhador de chakras, é uma espécie de guru da cena mais underground de Los Angeles, um autêntico criador de comunidades que nos discos que tem feito com a designação Carlos Niño & Friends tem explorado os invisíveis campos energéticos e harmónicos que se estendem entre músicos de origem diversa. Carlos volta a ser decisivo neste extraordinário (só para não haver dúvidas) trabalho do agora reinventado 3 Stacks. Que de repente, diga-se ainda, Hutchings e 3000 se tenham cruzado em estúdio só pode, aliás, ser obra, directa ou indirecta, do mestre percussionista.
De pouco, de muito pouco aliás, adiantará discutir que rótulos se devem colar a New Blue Sun. O único que realmente importa, conceda-se, surge mesmo colado na capa da versão analógica do álbum que ostenta uma ilustração criada pelo designer e artista português Bráulio Amado: “Warning: No Bars” ou, em bom “tuguês”, “Aviso: Zero Barras”. Nesse sentido, pode entender-se New Blue Sun como o equivalente directo de Metal Machine Music, o álbum de mergulho num oceano de feedback que Lou Reed lançou entre Sally Can’t Dance e Coney Island Baby para, supostamente, colocar um ponto final no contrato discográfico que o ligava à RCA, mas que, numa análise mais funda, talvez tenha sido um desvio de caminho de uma potencial pop star que decidiu tentar transcrever para o seu instrumento de sempre, a guitarra, aquilo que sentia ao escutar obras de Xenakis e LaMonte Young, como na época confessou em entrevista ao mítico Lester Bangs. Em Metal Machine Music e New Blue Sun é possível ler a mesma vontade de derrube de expectativas, abandono de fórmulas, de recusa de encaixe. Ou, de uma forma muito simples, de busca de liberdade. Quanto à música em si, zero semelhanças, pois claro, embora, como muito bem se sabe, do ruído absoluto ao mais transparente silêncio possa distar apenas uma infinitesimal fracção de segundo.
Outro exercício algo fútil será o de atribuir “valor” qualitativo reduzido ou negativo a um trabalho desta natureza ou procurar minimizá-lo comparando-o a obras-primas sancionadas pelo tempo: o próprio André 3000 já veio explicar que parte da intenção deste álbum era voltar a sentir-se como um “principiante”, no sentido em que expor-se num campo que não se domina — como alguém que decida exibir os seus primeiros exercícios de pintura sem nunca ter tido lições em tal prática — é abrir o seu mais fundo âmago; por outro lado, a quem passaria pela cabeça comparar Rosa Ramalho a Auguste Rodin? A comparação até é possível, mas será intelectualmente desonesta se não abrir espaço ao entendimento da origem e percurso de cada artista. Excluir o artista da equação crítica sobre a arte é, obviamente, absurdo.
Com títulos tão longos como as peças que compõem o alinhamento de New Blue Sun – “I Swear, I Really Wanted to Make a ‘Rap’ Album but This Is Literally the Way the Wind Blew Me This Time”, a faixa de abertura cujo título é também uma espécie de manifesto ou, pelo menos, clarificação de intenções, estende-se por 12 minutos e 20 segundos e é até a mais longa de sempre a ter entrado na tabela Billboard 100, tendo retirado tal distinção a “Fear Inocolum”, peça dos Tool que é cerca de 2 minutos menos extensa — este é um álbum que se desenrola como uma longa peça de música ambiental. Vale a pena recordar a famosa definição de Brian Eno para essa música, expressa nas notas de capa de Music for Airports: “A música ambiental tem como objetivo induzir a calma e um espaço para pensar. A música ambiental deve ser capaz de acomodar vários níveis de atenção auditiva sem impor um em particular; deve ser tão ignorável quanto interessante”. Todas estas ideias são claramente aplicáveis a New Blue Sun.
Melodias simples em etérea suspensão, névoa electrónica, percussão que parece traduzir os elementos da natureza, da chuva à ressonância das cavernas, alguma aproximação aos fantasiosos domínios do quarto mundo de Jon Hassell (ouça-se, por exemplo, a quarta faixa do alinhamento) e um honesto e, sim, algo pueril (elogio) sentido exploratório expresso no plano melódico dominam esta música. Partir para a audição com algum tipo de preconceito (no sentido literal de já ter tomado decisões mesmo antes de feita a experiência, como tão bem ilustrado na famosa piada que circula sobre Jorge Lima Barreto, dos Telectu, que, instado a pronunciar-se sobre um determinado disco terá um dia respondido algo como “não ouvi e não gostei”…) é escusado, precisamente porque nos dissocia imediatamente do ponto de partida do próprio artista que concebeu New Blue Sun sem qualquer expectativa ou desejo mais fundo que não fosse o de encontrar-se num lugar novo. Afinal de contas, como nos garante no título escolhido para a última das faixas, “Sonhos outrora enterrados sob o chão da masmorra brotam lentamente em jardins imortais”.
[The Stance Brothers] Duktus (We Jazz)
Há um tipo particular de fantasia colectivista que se ergueu a partir das mentes de alguns produtores de hip hop que imaginaram as suas MPCs como palcos de delirantes encontros: DJ Shadow evocou o espírito orquestral de David Axelrod para orientar jams entre bandas de hard rock e obscuros grupos de funk; J Dilla explorou novas noções de tempo enquanto estilhaçava fronteiras entre electrónica pioneira, soft rock e boogie soul; e Madlib inventou bandas de free jazz como quem joga uma qualquer fantasy league, “recrutando” os seus músicos favoritos dos discos de vinil que foi coleccionado. Todos são óbvios exemplos dessa criativa, algo psicadélica e totalmente libertária prática. Há mais um nome para adicionar a essa lista de inventivos exploradores das dimensões alternativas que só existem nos zeros e uns que se conjuram nos circuitos electrónicos dos samplers: o do baterista/multi-instrumentista e produtor finlandês Teppo Mäkynen.
Teppo tem um vasto currículo musical e desde finais dos anos 1990 inscreveu o seu nome nos créditos de álbuns muito diversos de Jukka Perko Tritone, Tero Saarti Quartet, Timo Lassy Band, 3TM ou Streamline Jazztet, só para dar alguns exemplos da sua ampla capacidade de se integrar em ensembles que exploram caminhos muito diferentes dentro do vasto universo do jazz. Essa capacidade poli-idiomática conferiu à sua linguagem rítmica uma singular riqueza que se faz em iguais doses de subtil sofisticação e de funkyness crua e directa. Notáveis qualidades que estão bastante presentes na música que solitariamente assina como The Stance Brothers.
Agora, após uma imparável sequência de singles que se revelaram ferramentas obrigatórias nas malas dos DJs de mentes mais expandidas e formatos mais reduzidos, e mais de década e meia após o seu solitário álbum — Kind Soul (Ricky-Tick Records, 2007) —, Teppo Mäkynen lança finalmente (na mesma We Jazz em que carimbou vários dos seus singles) a nova longa-metragem de The Stance Brothers, Duktus.
As notas de lançamento sugerem que Mäkynen organizou Duktus como uma espécie de mixtape, situando, portanto, este material nos terrenos do hip hop. Mas outra forma possível de olhar para este novo trabalho de The Stance Brothers é como a proverbial banda sonora para um filme que não existe ou, talvez até mais certeiramente, como um álbum de library music que faria total sentido nos catálogos da KPM, Themes ou Carosello. Na verdade, a liberdade formal que Teppo por aqui adopta e que lhe permite criar música que equilibra de forma muito eficaz ecos de electrónica pioneira, jazz de fusão, balanços tropicais, densidade cinemática, pressão funk e até alguma insustentável leveza pop resulta num entusiasmante e deveras moderno álbum. De facto, seria um erro aplicar o termo “retro” a uma música que mesmo resgatando referências ao passado vive sobretudo da singular perspectiva panorâmica que só o presente oferece. Estilhaçadas as fronteiras entre géneros, épocas e linguagens, só mesmo o tempo em que vivemos agora é que permite que uma mesma colecção de discos exiba sem qualquer tipo de prurido álbuns de Steely Dan, Egisto Macchi, Raymond Scott, Quincy Jones, Donald Byrd, Deodato, The Meters e, pois claro, DJ Shadow, J Dilla e Madlib. Ou de The Stance Brothers.
Combinando baterias de espessura orgânica, baixos acústicos, eléctricos e electrónicos, sintetizadores e outros teclados variados, vibrafone, guitarras e múltiplos efeitos, Teppo Mäkynen transforma o estúdio num laboratório de infinitas possibilidades de onde extrai música viva, com um cativante sentido lúdico e uma vibração orgânica que exige urgente declinação de palco, uma dimensão, aliás, a que a entidade The Stance Brothers não é alheia, já que o baterista nunca se escusou a apresentar esta sua apurada fórmula com aliados de ocasião em frente de audiências que têm tanta vontade de escutar com máxima atenção como de dançar com prazenteiro abandono.