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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/01/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #128: James Brandon Lewis Red Lily Quintet / Matana Roberts / Darius Jones

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/01/2024

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[James Brandon Lewis Red Lily Quintet] For Mahalia, With Love (TAO Forms)

James Brandon Lewis reuniu para esta sentida vénia ao espírito da activista do Movimento dos Direitos Civis e cantora de gospel Mahalia Jackson o mesmo Red Lily Quintet de que já se tinha socorrido para a homenagem a outra importante figura histórica da América negra, George Washington Carver, inspiração de Jesup Wagon, álbum de 21021: ou seja, o trompetista Kirk Knuffke, o contrabaixista William Parker, o baterista Chad Taylor e ainda o violoncelista Chris Hoffman.

Ao contrário de Jesup Wagon, no entanto, trabalho que apresentava composições do próprio tenorista, neste For Mahalia With Love Lewis socorre-se de um cancioneiro centenário e tradicional que Mahalia Jackson ajudou a popularizar: peças como “Swing Low”, “Go Down Moses”, “Wade in the Water” ou “Precious Lord” retêm nestas leituras o mesmo arrebatamento espiritual, mas servem igualmente para inspirar longas derivas em que o quinteto não retrai a sua declarada vontade de navegar por diferentes períodos da história do jazz, do bebop ao mais libertário free jazz, alargando até o pulso e os arranjos a outros terrenos, como o funk, por vezes até dentro da mesma peça. James Brandon Lewis reafirma desta forma o seu lugar num longo devir histórico, reconhecendo a importância pioneira de figuras que marcaram a mais nobre história da América negra, mas assume o presente como um observatório de onde é possível vislumbrar tudo o que veio antes, tomando esse assinalável lastro histórico não como âncora que o prenda a uma abordagem revisionista, mas como combustível para o impulsionar para o futuro. Albert Ayler, ele mesmo um estudante dessa história, dos espirituais às marchas militares, aprovaria, certamente.


[Matana Roberts] Coin Coin Chapter 5: In The Garden (Constellation)

Com In The Garden, Matana Roberts chega ao quinto capítulo da série conceptual de obras discográficas Coin Coin (que deverá estender-se por 12 volumes), um dos mais sólidos corpos artísticos que o jazz gerou na última década (o primeiro tomo, Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres data já de 2011). Nesta última viagem aos domínios da memória, da luta e da identidade, a saxofonista, clarinetista, compositora e pensadora dirige um dilatado ensemble em que militam Mike Pride e Ryan Sawyer (baterias), Matt Lavelle e Stuart Bogie (clarinetes), Cory Smythe (piano), Mazz Swift (violino), Darius Jones (saxofone alto), Gitanjali Jain (voz) e Kyp Malone (sintetizadores, produção).

O foco, desta vez, é numa antepassada de Roberts que terá sucumbido aos nefastos efeitos de um aborto ilegal. Ou seja, mais um delicado, sério e tocante estudo da experiência negra na América, firmando este quinto volume da série Coin Coin num terreno íntimo, confessional, mas igualmente denotando uma revolta que tem alimentado uma luta histórica em busca de dignidade e igualdade. 

Matana Roberts volta a triunfar nessa sua “pintura mural” (e moral…) das vidas negras adoptando uma narrativa que, desta vez, soa menos fragmentada e mais estruturada e uma estética de colagem que tem origem conceptual no hip hop mas que aqui lhe permite cruzar ecos de folk e de free jazz, de spoken word e balanço bop, de espirituais negros e pós-rock, de diversas práticas sonoras experimentais e até de música de câmara. É a partir dessa amálgama que se tece a densa obra que nos prende, como um vórtice em que irremediavelmente se mergulha, puxando-nos para o centro de um passado que é real, carregado de dor, mas também de superação.


[Darius Jones] fLuXkit Vancouver (i̶t̶s suite but sacred) (Northern Spy/We Jazz)

Na autêntica tapeçaria avant-garde que é fLuXkit Vancouver, o saxofonista Darius Jones e o seu colaborador habitual e baterista Gerald Cleaver orquestram uma composição de quatro movimentos ao lado de um quarteto de músicos de Vancouver: os irmãos Jesse e Josh Zubot, ambos em violinos, e ainda Peggy Lee em violoncelo e James Merger no contrabaixo. Este manifesto de vanguarda, encomendado pela organização canadiana dirigida por artistas Western Front, transcende categorizações superficiais e funde som e imagem numa obra que é dada à estampa numa inédita colaboração entre a Northern Spy de Brooklyn e a We Jazz Records de Helsínquia.

“Fluxus V5T 1S1”, a animada peça de abertura do álbum, convida os ouvintes para um universo auditivo expansivo. Inspirado pelo movimento Fluxus, Jones cria um fluído corpo sónico que desafia as definições convencionais e convida à exploração repetida, com a sua visceral entrega a funcionar como inevitável foco de atenção. A arte da capa, Occ6 de Stan Douglas, acrescenta uma dimensão abstracta que de facto proporciona um adequado contraponto visual para a suite.

Jones também faz uso de uma componente visual nas suas partituras, tendo criado 25 peças gráficas que juntamente com notação convencional oferece (ou sugere…) direcções para o desempenho das cordas, esbatendo ao mesmo tempo quaisquer linhas que possam separar partituras musicais convencionais de arrojada arte visual. O segundo movimento, “Zubot”, clara homenagem aos irmãos violinistas envolvidos neste projecto, pulsa com uma alma híbrida que tem energia bop e um carácter mais obtuso próprio, talvez, de uma composição de câmara contemporânea. Por outro lado, a mais longa peça desta obra que se apresenta como terceiro movimento da suite, “Rainbow”, remete, como certeiramente referem as notas de lançamento, para uma dimensão cinemática em que é possível escutar ecos da “Far East Suite” de Duke Ellington.

A derradeira peça deste curto, mas expansivo puzzle de quatro andamentos, “Damon & Pythias”, resulta da experiência da residência artística de Darius Jones no Western Front e do convívio próximo com o artista Fluxus Eric Metcalfe, fundador da plataforma de Vancouver e dedicado arquivista que guiou o saxofonista norte-americano pela sua colecção, sublinhando sempre a possibilidade de coexistência holística da arte, de toda a arte, num mesmo plano desprovido de hierarquias.

Em fLuXkit Vancouver, o som torna-se assim no ponto de partida para uma viagem visceral, um convite para transcender as fronteiras artísticas. E isso resulta numa clara obra de vanguarda, simultaneamente audaciosa e elusiva, que desafia quem a escuta a embarcar numa exploração imersiva, em que a música e as artes plásticas convergem num intrigante, mas sedutor enigma.

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