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Fotografia: Jonathan Chimene
Publicado a: 12/01/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #112: os 20 melhores álbuns internacionais de 2022

Fotografia: Jonathan Chimene
Publicado a: 12/01/2023

Dois mil e vinte e dois: ano grande, de transição entre os efeitos de uma pandemia e a antecipação de um futuro incerto, ano de guerras, de intolerâncias, de crispações, de fossos cavados ainda mais fundo entre os que muito têm e os que nada conseguem. Ano em que se perderam muitos artistas, incluindo jaimie branch que se foi cedo demais. A lista abaixo começa, não por acaso, com um disco seu, gravado no âmbito do projecto que criou ao lado do baterista Jason Nazary, os Anteloper. E depois vai para muitos lados…

É claro que em 2022 o que escutámos neste universo grande e expansivo a que ainda chamamos jazz não se limitou ao que nos chegou impresso em vinil e CDs (e até nalgumas cassetes…) ou que foi disseminado através das plataformas de streaming: os palcos continuam a ser espaços/laboratórios de muitos encontros e experiências que impulsionam esta música para o futuro e no ano que há pouco terminou fomos a muitos lugares: ao Porto e a Viseu, a Brighton e Helsínquia, a Lisboa e Guimarães e a vários outros lugares em que esta música pulsou como é suposto pulsar.

Para este balanço/resumo do que aconteceu procura-se, tanto quanto possível, citar o que se escreveu nesta coluna, mas também o que se assinou noutras páginas (nomeadamente no Expresso). Mas há um par de discos que, merecendo espaço nesta lista, não foram alvo de recensões, ainda que tenham recebido atenção nas emissões semanais do Notas Azuis na Antena 3.

E é isto: aqui está um possível relatório das mais azuis notas que se escutaram em 2022.


[Anteloper] Pink Dolphins (International Anthem)

O que se escreveu: “Esta é, portanto, uma espécie de síntese das mais cósmicas deambulações da Arkestra e dos colectivos eléctricos de Miles, com a inventividade trompetística de jaimie em primeiro plano – e, num dos momentos, ‘Earthlings’, com a trompetista a avançar igualmente a sua voz como outra das suas ferramentas expressivas – e as cadências sujas que dispensam regra e esquadro de Nazary a assumirem a ligação à Terra, tomando conta da subcave das composições. Pelo meio há texturas abrasivas esculpidas electronicamente, demonstrando que no hip hop os Anteloper (anti-looper?) aprenderam a dispor camadas significantes como forma de organizarem os seus arranjos. Esta é música híbrida que por um lado soa solta e livre como qualquer outra música que tenha na improvisação uma das suas forças motrizes, mas por outro resulta de intensa pós-produção, assumindo o compromisso que há entre o momento e a reflexão, entre o palco e o estúdio, entre o instinto e a intenção. Música poderosa, sem a menor sombra de dúvida.”


[Binker & Moses] Feeding The Machine (Gearbox Records)

O que se escreveu: “O álbum arranca com a mais longa peça do alinhamento, a já mencionada ‘Asynchronous Intervals’ que se estende para lá dos 11 minutos e que se começa a desenrolar em terreno quase ambiental e vai gradualmente assumindo uma inquietação que agita quem a escuta, com o saxofone de Binker Golding a comandar autoritariamente uma expedição às mais remotas estrelas, com um som que chega a ser estridente. A superior classe de Moses Boyd é exposta em ‘Feed Infinite’, um tema que soa ao que poderia ter acontecido se John Coltrane, Tony Allen e Suzanne Ciani alguma vez tivessem ‘jammado’ juntos: propulsão feita em igual medida de precisão milimétrica e de inventiva liberdade, saxofonismo de plena assertividade e bleeps e bloops que preenchem os espaços como se fossem pontos de luz na escuridão. No final da viagem, com o tema ‘Becaeuse Because’ a ecoar através do sopro de Golding orientalismos do tempo em que o jazz buscava novas paragens espirituais, fica-se com a sensação de que acabámos de emergir de um profundo oceano de águas revoltas, pleno de vida, mas não daquela que nos habituámos a ver nos mágicos documentários sobre vida marinha, antes formas orgânicas nunca antes vislumbradas ou documentadas, como se esse oceano banhasse outro planeta. A música tem esse poder de abrir portais para dimensões ou mundos paralelos. E esta é, certamente, muito poderosa.”


[The Comet Is Coming] Hyper Dimensional Expansion Beam (Impulse!)

O que se escreveu: “O arranque do álbum, com a dupla investida de ‘CODE’ e ‘TECHNICOLOUR’, é simplesmente arrasador: uma barragem de beats densos sobre os quais King Shabaka rasga frases curtas, incisivas e repetivas através do seu saxofone em estado de absoluta incandescência. ‘LUCID DREAMS’ e ‘TOKYO NIGHTS’ parecem desacelerar o passo, mas nesta última peça Shabaka tem um dos seus mais intensos, ainda que breves, solos. ‘PYRAMIDS’, o single que antecipou a edição do álbum, volta a carregar no acelerador, com Shabaka a pegar no espírito de Fela e a deixá-lo à solta num tema de ritmo convulsivo que Stormzy não desdenharia (o mesmo, aliás, poderia ser dito de ‘Atomic Wave Dance’ – está, aliás, na hora de se cavarem mosh pits em concertos de jazz). ‘ANGEL OF DARKNESS’ faz natural justiça ao título e assume-se como deriva carpenteriana que, no entanto, o soprador toma como pretexto para saltar sobre o abismo revelando uma ferocidade total que o confirma como um dos mais entusiasmantes saxofonistas desta geração. São quase sete minutos de cortar a respiração. Nos dois derradeiros temas do alinhamento (que se estende por 11 peças e se alarga até bem próximo da marca dos 45 minutos), a pressão permanece alta, embora os tempos pareçam acalmar: ‘THE HAMMER’ e ‘MYSTIK’ são mais duas inequívocas provas de que os The Comet Is Coming são uma das mais urgentes vozes do jazz britânico contemporâneo, um projecto que, espera-se, não se extinga por colidir finalmente com uma qualquer massa estelar mais vasta. Talvez se possa pedir à NASA que lhes desvie a trajectória, permitindo-lhes continuar a avançar espaço sideral fora até à eternidade…”


[Alabaster DePlume] GOLD (International Anthem)

O que se escreveu: “Este é, portanto, um álbum profundamente emotivo. E poético. E filosófico. E até político. Em ‘I’m Good at Not Crying’, enquanto vozes harmonizadas parecem transportar a música até à ilha paradisíaca de Eden Ahbez, o poeta-saxofonista entoa ‘I’m good at not eating / Good at not sleeping, much / I’m good at not being the bad guy / The bad guy / I am good at not needing /I’m good at not crying’, num pungente e honesto auto-retrato pontuado por um saxophone que parece fazer o contrário do que diz o poeta, chorando por cima de uma cacofónica base, com diferentes vozes a soarem ultra-processadas. E na confessional ‘I Will Not be Safe’, Alabaster parece chegar-nos ao mais fundo e tocar-nos no âmago com palavras que são tão capazes de ferir como de curar: ‘I will not be safe/ Love is not safe/ Courage is not safe/ I have the greatest gift of all to give/ It’s my love/ It’s the best thing in the world/ And even though it doеsn’t need to be receivеd/ For it to be so great/ I will not be sheltered, even by this fact/ I will not choose cynicism/ Or take it up on its delicious, bitter offer/ That is so comforting and familiar/ And final and fatalistic/ I won’t need any promises nor denials/ I do not have the answer/ I won’t compose an ending to defend myself from blistering rays of hope/ And I won’t hide behind a matchstick of a sweet little word, either/ I will be naked like water/ It’s the worst place to be/ It’s the best place to be/ It’s where we are anyway/ I will be there, I am there/ I will be’. E se isto não vos cortar a respiração, por favor sintam os vossos pulsos – talvez não estejam tão vivos como possam pensar.”


[DOMi & JD BECK] NOT TiGHT (APESHIT Inc. / Blue Note)

O que se escreveu (no Expresso): “De facto, a palavra ‘peculiar’ pode e deve ser usada para descrever a jovem dupla: nada neles se encaixa na ‘norma’ que Marsalis tanto se tem esforçado para impor, a começar na imagem – seria fácil confundi-los com ‘influencers’ de moda do Instagram ou Tik Tok -, passando pelo discurso – são donos de um humor bastas vezes descrito como ‘goofy’ e que os leva a fazerem piadas até com os mais sagrados dogmas da cultura: nas suas mãos, ‘My Favourite Things’ de John Coltrane transformou-se em ‘My Favourite Ballsack’ ao passo que a sua versão de ‘Giant Steps’ do mesmo génio foi rebaptizada como ‘Giant Nuts’… -, passando, claro, pela música. No álbum que a própria Blue Note descreve como contendo ‘um virtuosismo mágico’ surgem Thundercat e Anderson .Paak, naturalmente, mas também Mac DeMarco, Snoop Dogg, Busta Rhymes ou Herbie Hancock, estrelas nos seus respectivos campos que não quiseram perder a oportunidade de colocar já um pé no futuro. No New York Times, Ryan Bradley, depois de não se conter com expressões de inequívoca admiração, garantiu que eles não soam a nada que tenha vindo antes. Sim, DOMi e JD BECK visitaram o museu de Marsalis, mas partiram as redomas e fugiram com os tesouros.

NOT TiGHT só não é rigoroso no título porque tudo neste disco é absolutamente preciso e intencional: tanto a teclista como o baterista exibem o tipo de técnica virtuosa e inovadora que elevou gente como Louis Armstrong ou John Coltrane aos maiores panteões do jazz, mas, ao mesmo tempo que fincam os pés no presente admitindo influências do hip hop, R&B e electrónica mais modernos – adoptando nomeadamente os seus inovadores pulsares –, BECK e DOMi também procuram implodir todas as regras para criarem uma nova linguagem que tem na maneira como lidam com o tempo rítmico – sobre-humana, certamente – uma das suas mais distintas marcas. Tudo aqui é ultra-cerebral, dos inventivos esquemas harmónicos aos padrões baterísticos que parecem executados por um robot movido a energia nuclear, das melodias que se resolvem de formas invulgares aos arranjos que nos surpreendem a cada nova volta. Talvez um dia o senhor Marsalis perceba.”


[Ezra Collective] Where I’m Meant to Be (Partisan Records)

O que se escreveu: “’Out in the street, they call it Ezra’, anuncia Jorja Smith na sua curta prestação em ‘Togetherness’, fazendo vénia ao som das Caraíbas que influenciou o quarteto londrino formado por TJ Koleoso, Joe Armon-Jones, Femi Koleoso, Ife Ogunjobi e James Mollison. Em Where I’m Meant To Be, os Ezra Collective mostram para o que vêm e voltam a assumir o peso que a música daquela região teve no seu som. Sem nunca ter medo de mostrar outras facetas, à semelhança do que foi feito em You Can’t Seal My Joy, o grupo protagoniza ainda incursões pelo jazz, ritmos africanos e explora até a estética do beat, com a ajuda de convidados como Kojey Radical ou Sampa The Great.”


[Henry Franklin, Adrian Younge & Ali Shaheed Muhammad] Jazz is Dead 14 (Jazz is Dead)

O que se escreveu: “O jazz continua bem vivo nas mãos de Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge e as mais recentes provas disso são ‘Karibu’ e ‘The Griot’, os dois primeiros avanços do álbum (o 14º do catálogo da Jazz Is Dead) da dupla com o octogenário contrabaixista americano Henry Franklin.
O autor de The Skipper (1972) criou um sólido catálogo enquanto líder mas também foi colaborador de nomes como Hugh Masekela, Stevie Wonder ou Woody Shaw (e acabou por aparecer no videoclipe de Moor Mother que presta homenagem ao trompetista) e tocou com músicos como Pharoah Sanders, Sonny Rollins, Bobby Hutcherson ou Milt Jackson.”


[Mary Halvorson] Amaryllis/Belladonna (Nonesuch)

O que se escreveu (no Expresso): “Em tempos, Keith Jarrett, citado pelo crítico e escritor Nate Chinen nas páginas de Playing Changes – livro dedicado às mais recentes gerações de criadores jazz -, afirmou que Halvorson era uma excelente líder, com uma incrível capacidade para ir buscar grandes músicos de que o mestre pianista nunca tinha antes ouvido falar: ‘Tenho a certeza de que eles pensam que estão a tocar jazz, mas não me parece que ela ache o mesmo’. O que inspira a pergunta ‘que música é esta, afinal de contas?’ a que a própria Mary Halvorson responde numa chamada Zoom com o Expresso: ‘Essa é uma excelente pergunta. E eu não sei bem qual será a resposta: haverá quem não hesite em descrever como jazz o que escuta nestes discos, tal como há gente que lhe chamará tudo menos jazz. Eu não me importo. Sei que gosto de música capaz de se escapar entre categorizações. Sei que a influência do jazz está lá, algures, mas não sei bem o que será’.

A resposta poderá estar num percurso artístico que já se estende por duas décadas – Halvorson tem agora 41 anos –, que terá a sua pré-história no momento em que pela primeira vez escutou Jimi Hendrix, quando contava apenas 11 anos e ainda estudava violino, e o momento zero no primeiro encontro com o saxofonista Anthony Braxton, referência da música mais livre que a levou a decidir trocar uma formação superior em biologia por mais avançados estudos musicais. E 17 anos depois da sua estreia em nome próprio num álbum em que dividiu créditos com a violista Jessica Pavone, Prairies, eis que Halvorson atinge um superior estado de concentração que não apenas a afirma como criativa compositora e sólida líder, mas, sobretudo, como inventiva criadora de uma música suspensa entre mundos. Em Amaryllis, o mais dilatado ensemble permite-lhe, nunca esquecendo o espaço para o livre improviso, explorar uma densa e muito pessoal declinação de uma angular ideia de groove animada por fanfarras plenas de êxtase e recantos harmónicos de funda complexidade. Por outro lado, Belladonna é o contraponto mais contemplativo, em que o MIVOS rodeia o seu mais reflexivo guitarrismo de exuberante moldura cromática. Duas faces de uma mesma moeda, rara e preciosa.“


[Tigran Hamasyan] StandArt (Nonesuch)

O que se escreveu: “Na já mencionada entrevista, Hamasyan conta como, durante o seu período formativo, quando se apaixonou por bebop, exercitava o seu ‘músculo’ criativo escrevendo peças à maneira dos seus heróis, como Elmo Hope, por exemplo. Um pouco como os beatmakers em início de carreira começam por fazer o que no universo hip hop se designa como ‘type beats’, batidas ao estilo de um dos nomes consagrados do género. É do pianista Elmo Hope, aliás, o tema que abre o alinhamento de StandArt, ‘De-Dah’, peça que o próprio compositor gravou com Lou Donaldson e Clifford Brown em 1953 e que nas décadas seguintes mereceria atenção do trio do próprio Hope com Philly Joe Jones e Paul Chambers ou, em eras mais recentes, de Brad Mehldau, por exemplo. É aliás um exercício curioso escutar as versões de Mehldau e Hamasyan lado a lado: são dois pianistas com uma acentuada diferença de idades – o americano é 17 anos mais velho – e dotados de léxicos igualmente distintos – a versão que Brad incluiu em Seymour Reads The Constitution! (2018) encaixa-se perfeitamente na tradição bebop de piano jazz, mas aquela que Tigran assina afirma a diferença logo a partir dos primeiros acordes. O arménio é um pianista mais vibrante, mais barroco também, mas é na vivacidade harmónica e na desenvoltura rítmica que se abriga a sua modernidade. E para tamanha demonstração de vigor inventivo, o pianista precisava realmente de uma secção rítmica com pronunciado espírito de aventura, capaz de o seguir nas curvas e contracurvas, algumas em ângulo recto, dos seus arranjos que parecem ecoar o traço arrojado de alguns pintores modernos, como o seu amigo Gaguik Martirosyan, que assina o artwork da capa: ‘Ele tem uma forma de contar histórias com uma abordagem mínima e cria um mundo com sinais e linhas simples’.


[Kokoroko] Could We Be More (Brownswood Recordings)

O que se escreveu (no Expresso): “Maurice-Grey e Ighamre, juntamente com Cassie Kinoshi (saxofone), Richie SeivWright (trombone), Mutale Chashi (baixo), Oscar Jerome (guitarra), Yohan Kebede (teclados) e Ayo Salawu (bateria) estrearam-se em 2018 na compilação We Out Here, uma espécie de ‘relatório de contas’ que procurava medir o pulso à jovem cena de Londres – um projecto imaginado por Gilles Peterson e curado por Shabaka Hutchings que deu origem a um festival com o mesmo nome. Essa estreia não passou despercebida, apesar dos Kokoroko repartirem aí espaço com estrelas da cena já impostas como Nubya Garcia, Moses Boyd ou Ezra Collective: o tema com que contribuíram, ‘Abusey Junction’, tornou-se num improvável hit viral que hoje já ultrapassa os 100 milhões de streams, número absolutamente invulgar para uma lenta peça instrumental de 7 minutos que soa a melancólica ode às raízes guiada pela guitarra de Jerome. Esse tema foi incluído no homónimo EP de estreia do grupo, lançado em 2019. Já do ano passado data o single com duplo lado A ‘Carry Me Home’ / ‘Baba Ayoola’, mais um passo no caminho entre o palco e o estúdio que, em entrevistas, o grupo assume ter sido tortuoso: ‘No início, todas as nossas gravações soavam rasas, sem vida, todos os nossos erros soavam horríveis’, explicou Onome Edgeworth à DIY Mag. Na mesma conversa, o percussionista aponta o encontro com Mies James, produtor que já trabalhou com Foals ou Little Simz, como decisivo nessa transposição da energia dos concertos para as gravações de estúdio: ‘Acho que deixámos de tentar recriar essa energia e começámos a ver o estúdio de forma completamente diferente. Ouvimos muitos discos e a forma como as coisas foram gravadas nos anos 70 em África. Ouvimos muitos discos de zamrock e velhos discos de highlife e muitas gravações de Earth, Wind & Fire e Funkadelic. O que fez brilhar esses registos?’ A resposta está dada com o álbum de estreia Could We Be More?

O facto de nos mais recentes alinhamentos de concertos dos Kokoroko se encontrarem versões para clássicos dos Earth, Wind & Fire, Kamasi Washington, Bunny Mac ou William Onyeabor é um bom indicador para o que se pode encontrar no seu álbum: esses nomes funcionam como pontos cardeais que apontam para a sofisticação orquestral da soul, a inventividade do novo jazz ou para os diferentes pulsares clássicos e urbanos de África, do afrobeat ao highlife. Os próprios Kokoroko já não veem a música que criam como ‘jazz’, termo aliás cada vez mais problemático porque cada vez mais vago, mas a texturalmente rica música que agora nos oferecem inclui, certamente, elementos do som nascido há mais de 100 anos em Nova Orleães: há solos, de sopros ou guitarra, que vibram com a invenção do momento, mas há sobretudo uma orgânica e fluída aderência a uma sofisticada ideia de ritmo depurada pela experiência e orientada por uma atenta observação da história, da que se estende da America pós-Movimento dos Direitos Civis à África pós-colonial e daí ao plural presente erguido por quem recusa ser contido por fronteiras ou dogmas.”


[Sarathy Korwar] KALAK (Leaf)

O que se escreveu: “A riqueza da música e da literatura do Sul Asiático é exposta em toda a sua grandeza por Sarathy Korwar em KALAK, o seu novo álbum. Photay foi o produtor de serviço neste registo que procura a espiritualidade e a comunidade — e as intersecções entre estas pelo caminho. Polirritmos e electrónicas com sentido a embrulharem-se em mantras que ficam.”


[Nduduzo Makhathini] In The Spirit of Ntu (Blue Note)

O que se escreveu: “A banda que o acompanha aqui inclui o saxofonista Linda Sikhakhane, o trompetista Robin Fassie Kock, o vibrafonista Dylan Tabisher, o baixista Stephen de Souza, o percussionista Gontse Makhene e o baterista Dane Paris, uma sólida formação capaz de insuflar vibração, urgência e sofisticação nas peças que compôs. ‘Estou a lidar com estas ideias cosmológicas como uma forma de situar o jazz no nosso contexto’, explica o pianista. ‘Editei Modes of Communication: Letters From The Underworlds usando a carta como metáfora para os sons que vêm do submundo. Anteriormente, eu tinha lançado Listening to The Ground que encorajava esta ideia da escuta como conhecimento. In The Spirit of Ntu vive nesse paradigma de ouvir as coisas que emergem do chão. Ntu é uma antiga filosofia africana da qual deriva a ideia de Ubuntu. Ubuntu diz: ‘Eu sou porque tu és’. É uma profunda invocação da colectividade’.

Essa ideia de comunhão, de unidade comunitária, atravessa esta música que soa tão física e vital, quanto espiritual e cósmica. Mais do que de extraordinários contributos individuais – embora os solos de músicos como Linda Sikhakhane ou Robin Fassie Kock sejam entusiasmantes, tanto técnica como emocionalmente – este álbum vive da bela dos arranjos, onde as vozes também assumem pontualmente lugar de destaque. É no piano do líder, no entanto, que se aloja o centro desta música: Nduduzo é um pianista exploratório e intrigante na forma como se encaixa nas composições: ‘Nyonini Le?’ é um bom exemplo, não apenas quando rodeia o saxofone de Linda, mas também na formas como o ecoa em angulares uníssonos.”


[Makaya McCraven] In These Times (XXL Recordings / International Anthem)

O que se escreveu: “’Dream Another’, uma das mais belas peças da primeira parte do álbum, servida por um fantástico solo de flauta de De’Sean Jones que evolui sobre uma delicada tapeçaria harmónica tecida pela sitar de Matt Gold e pela harpa de Brandee Younger, tem uma vincada cadência de bateria a suportá-la, mas vive do mesmo tipo de melancolia que se poderia encontrar na banda sonora de um qualquer clássico do cinema francês ou italiano de meados dos anos 70. Uma perfeita amostra da capacidade de escrita de McCraven, que não é apenas um cientista rítmico, é igualmente um designer de belíssimas melodias e, sobretudo, um arquitecto de densos, mas elegantes edifícios sonoros. A única peça que o líder não assina neste trabalho é ‘Lullaby’, originalmente escrita por Ágnes Zsigmondi, flautista e cantora húngara, fundadora do grupo Kolinda e sua mãe. Aqui, é, uma vez mais, a harpa que se destaca, acentuando aquele que é, talvez, o momento mais reflexivo do alinhamento. Makaya explica como ganhou essa peça lugar num trabalho em que ele assina as restantes composições: ‘Havia uma passagem nesse tema em que ela canta uma linha da autoria dela, mas que faz parte de uma coisa muito maior. Ela adaptou-a e fez uma nova harmonia para um grupo de jazz mais pequeno. No meu disco, está novamente rearranjada e re-harmonizada, mas tem algumas partes — como a trompa ou as cordas — que são transcrições da improvisação que ela captou para o seu disco. Fui buscar as minhas memórias desse disco, mas acaba por ser uma coisa que eu conheço bem e até tenho tocado o tema ao vivo muitas vezes. E não apenas na banda que tenho agora — já a recuperava nas bandas que tive com os meus amigos da escola’.”


[Tumi Mogorosi] Group Theory: Black Music (Mushroom Half Hour / New Soil)

O que se escreveu: “O mais recente single que antecipa Group Theory: Black Music é composto por duas versões do clássico gospel ‘Sometimes I Feel Like a Motherless Child’: na primeira brilha Siyabonga Mthembu, do grupo The Brother Moves On (e igualmente dos Ancestors), um poderoso tenor cuja voz se apresenta com funda dignidade a evocar o grande barítono de Paul Robeson. Diz Mthembu: ‘Isto é muito diferente para uma criança que é criada por uma única mãe. Muitas vezes estamos concentrados na ausência de paternidade baseada no óbvio, e não em como o capitalismo às vezes nos deixa sem pais, especialmente se eles se tornam pais solteiros e nos vemos obrigados a educar a nós mesmos’.

Na segunda versão, o plano principal é entregue à vocalista Gabi Motuba, que carrega a peça – com arranjo diferenciado – noutra direcção, talvez um pouco menos solene, mas mais emotiva ainda, se tal for possível. Explica ela sobre o tema em que a sua voz é rodeada por uma arrepiante moldura coral: ‘Fala de ter esperança entre muitos que se sentiram desesperados durante muito tempo, a encarnação de um verdadeiro crente como o verdadeiro acto de bravura na constante procura de um caminho melhor’. Música muito séria, portanto, e uma vez mais em busca das mais fundas ligações com a história. E a deixar claramente a fasquia alta para o álbum que aí vem.”


[Moor Mother] Jazz Codes (Anti-)

O que se escreveu: “E não é apenas a música de Moor Mother que é profundamente referencial: a sua poesia está igualmente carregada de inquisições sobre a música afro-americana, menciona rags e blues, jazz e rap e nomeia directamente figuras como Woody Shaw e Joe McPhee, Mary Lou Williams, John Coltrane, Sister Rosetta Thorpe e Billie Holiday, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Jellyroll Morton, Louis Armstrong, Lester Young ou Tina Turner (Anna Mae Bullock) e Willie Dixon numa reflexão que atravessa todo o álbum (e que ajuda a entender o seu título) e que procura questionar a sua própria relação com a cultura. Quando lamenta, em ‘Blues Away’, ‘you took the blues away from me, now my heart won’t sing’, é impossível não pensar que Moor Mother está, na verdade, a pensar alto sobre os efeitos da evolução da indústria musical, sobre como as mais profundas manifestações culturais resultantes da experiência dos seus antepassados se tornaram moldes ocos usados para o fabrico de produtos vendáveis (já Chuck D cantava ‘Elvis was a hero to most but he never meant shit to me’).

E é no final, pela voz de Thomas Stanley, que essa questão se resolve, quando se pensa sobre o significado original da palavra jazz, sobre a moralização do seu mote inicial, o esvaziamento do seu impulso primeiro, subtraindo-lhe o seu âmago subversivo. Jazz, sugere-se, não é um conjunto de dogmas, antes ‘oscilação quântica de aventura’, uma ‘música viva’, ‘fecunda’ e ‘hiper criativa’.”


[Jasmine Myra] Horizons (Gondwana)

O que se escreveu (aqui e ali): “No Bandcamp, Matthew Halsall, fundador do selo independente britânico e produtor do disco, fala sobre aquilo que captou a sua atenção:

‘Eu fui imediatamente atraído pela música da Jasmine. Eu podia ouvir jazz e electrónica na sua música, mas com uma qualidade profunda, honesta e emocional. Fiquei realmente impressionado com a sua capacidade como compositora e líder de banda; e que ela seja aberta e inteligente o suficiente para reunir todas essas influências e fazer algo novo e original. Também foi um prazer trabalhar com uma jovem artista do norte da Inglaterra. Londres é muitas vezes vista como o lugar para se estar, mas cidades como Manchester e Leeds também estão cheias de músicos criativos — e esse senso de comunidade local está no centro de nossos valores enquanto editora’.

No mesmo texto, a saxofonista, que vai buscar inspiração a gente como MF DOOM, Soweto Kinch, Kenny Wheeler, Bonobo, Ólafur Arnalds e Moses Sumney e tocou com, por exemplo, a Abstract Orchestra, aborda o entendimento a que chegou durante a pandemia e que resulta neste Horizons:

‘Percebi que o meu objectivo era começar a escrever músicas que fizessem as pessoas sentirem-se felizes e animadas. Compor é uma das minhas maiores paixões, mas também adoro actuar. Tocar ao vivo, ver o público conectar-se com a minha música e ter uma experiência positiva traz-me muita alegria’.

Jasmine Myra (com a preciosa ajuda de Matthew Halsall) não viu limites para a concretização do som cristalino que visualizou para Horizons. A saxofonista e compositora de Leeds deslumbra no seu primeiro longa-duração e dá mais cinco às suas influências, que neste caso são Kenny Wheeler, Bonobo, Ólafur Arnalds e Moses Sumney.”


[OK:KO] Liesu (We Jazz)

Das notas de lançamento: “O quarteto de Helsínquia OK:KO lança o seu terceiro álbum Liesu com a We Jazz Records no dia 15 de Abril. A banda, liderada pelo baterista/compositor Okko Saastamoinen e incluindo o saxofonista Jarno Tikka, o pianista Toomas Keski-Säntti e o baixista Mikael Saastamoinen (de Superpostion & Linda Fredriksson ‘Juniper’) é uma das cenas preferidas na Finlândia e tem recentemente atraído alguma atenção internacional com a sua abordagem melódica, dinâmica e original. O som OK:KO é aventureiro mas acessível, e contemporâneo mas enraizado na linhagem do jazz acústico de pequenos grupos”.


[Jeff Parker, Eric Revis & Nasheet Waits] Eastside Romp (Rogueart)

Das notas de lançamento: “Esta música é sobre uma deliciosa compreensão da vida, que nos obriga constantemente a repensar, reviver, cada coisa – para não ter medo de visitar os nossos limites semelhantes, como Marion Brown tão subtilmente diria, e explorá-los. Levantar, e afastar o espírito, os sons e o significado”.


[Cécile McLorin Salvant] Ghost Song (Nonesuch)

O que se escreveu: “O álbum, pensado como um ciclo, abre e fecha com um sean-nós (um modo tradicional irlandês de canto não acompanhado), uma eficaz forma de Cécile nos relembrar que a voz é elemento central e dominante neste trabalho. E depois de breve entoação de um tradicional inglês vem aquela que é, provavelmente, a mais conhecida das canções sobre fantasmas que a pop nos deu. Cécile explica tudo nas notas de lançamento do seu novo álbum: ‘É a mais clássica história de fantasmas. Eu decidi que queria fazer um álbum chamado Ghost Song, e sabia que ‘Wuthering Heights’ tinha que estar nele. Depois tive a ideia de o misturar com o sean-nós ‘Cúirt Bhaile Nua’, que o liga ao tradicional ‘Unquiet Grave’, a última faixa do álbum. O fantasma não me está a assombrar; agora estou a assombrar o fantasma. Eles fazem um paralelo tão bem um com o outro e são períodos de tempo tão diferentes. Eu queria que o álbum fosse um ciclo, com a referência dos sean-nós no início e no fim. Então é a primeira faixa, mas é também a última faixa e é também a faixa do meio, que é como eu ouço música, ando pelo meu bairro, num avião, viajo para algum lugar, ponho coisas a repetir’.

A estas bases conceptuais, Cécile acrescenta palavras da sua própria lavra. Fala de mágoa e traição – ‘I tried to keep our love going long/ but no matter how much I lied/ The truth was too strong” (‘Ghost Song’); responde a perguntas directas – ‘What happens when the foundation/ Of a relationship is guilt, not love?’ (‘Obligation’); pede ajuda – ‘Who can help me find my mind?’ (‘I Lost My Mind’); expressa desejo – ‘Let me love you like I love the moon’; e ainda aponta soluções poéticas para a vida: ‘Sometimes you have to gaze into/ a well to see the sky’. Tudo isso é cantado com dicção claríssima, como é compreensível para quem educou a voz no rigor da academia, mas também com dramático arrebatamento, como se Cécile tivesse igualmente aprendido tanto nos clássicos clubes de St. Louis como nos fumarentos cabarés que Lotte Lenya há-de ter frequentado. E se na sua voz se pressentem outros fantasmas – de Billie Holiday ou Sarah Vaughan, por exemplo – também há relevantes marcas de espectros do futuro que a sua própria arte há-de um dia assombrar. É que ela não teme explorar novas nuances para esta arte tão ancestral, procurando afirmar o seu próprio lugar através do risco. Ouça-se ‘Obligation’ como uma tentativa de condensar rap e blues, teatro musical e algo mais que não se consegue exactamente identificar mas que se pressente nas subtilezas da sua respiração, mas micro pausas com que rodeia as sílabas. Este é um disco que definitivamente recompensa escuta atenta.”


[Sun Ra Arkestra] Living Sky (Omni Sound)

O que se escreveu: “Foi sob os comandos do veterano de 98 anos que o grupo alcançou a primeira nomeação de sempre para os GRAMMY, na edição deste ano, pelo trabalho desempenhado em Swirling.

Living Sky será o primeiro álbum da Arkestra após esse feito e foi gravado a 15 de Junho de 2021, nos Rittenhouse SoundWorks, Filadélfia, com recurso a um total de 19 músicos. Ahmet Ulug, que mantém uma relação laboral de longa data com a banda, foi o produtor-executivo escolhido para guiar os destinos do LP, antecipado hoje por ‘Somebody Else’s Idea‘, o primeiro single. A mistura e masterização ficaram encarregues a Dave Darlington, cujo currículo abrange serviços prestados a gente como Wayne Shorter ou Eddie Palmieri”.

Das notas de lançamento: “Living Sky inclui a primeira gravação instrumental de ‘Somebody Else’s Idea’, uma peça de Ra originalmente gravada em 1955 e novamente em 1970 para o devido lançamento em My Brother The Wind, Vol II, de 1971. Sem a presença vocal feroz de June Tyson, ‘Somebody Else’s Idea’ sente-se aqui mais comedido, permitindo que o movimento harmónico flutuante deslize para o primeiro plano com os sopros modulando o seu volume e presença em cada ciclo e trazendo novos detalhes, quer sejam os trompetes de Michael Ray e Cecil Brooks, quer os sons que o Allen toca no Instrumento de Válvula Electrónica”.

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