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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/06/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #101: Anteloper

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/06/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Anteloper] Pink Dolphins / International Anthem

Anteloper é o projecto colaborativo da trompetista jaimie branch e do baterista Jason Nazary e Pink Dolphins é o título do novo trabalho com que a dupla sucede a Tour Beats Vol. 1de 2019. Kudu, o álbum de estreia, de 2018, foi também alvo de recente e oportuna reedição tendo sido, pela primeira vez, disponibilizado também em vinil. O selo de todos esses registos é, claro, da International Anthem, a operação de Chicago que este ano trará até ao Jazz em Agosto da Fundação Calouste Gulbenkian uma verdadeira embaixada – Anteloper é um dos nomes envolvidos nessa operação que também inclui Irreversible Entanglements, Moor Mother com Nicole Mitchell, Rob Mazurek e Damon Locks. Música nova lançada, catálogo anterior disponível e concerto à vista: o universo, por estranho que pareça, às vezes funciona…

Tanto jaimie como Jason são criativos em permanente e hiperactiva ebulição: a primeira lidera o projecto Fly or Die (outro nome do catálogo da Intl Anthem) que o ano passado editou o álbum Live, e tem registado participações pontuais em registos comandados por Dave Gisler, Booker Stardrum, Jason Nazary ou Tommaso Cappellato, para citar apenas exemplos de 2021. No mesmo período, o baterista ofereceu o seu firme pulso a gravações orientadas por Chris Pitsiokos, dividiu créditos com os saxofonistas Sam Weinberg e Travis Laplante e lançou novo trabalho como parte do Desertion Trio. É amplo o terreno que ambos cobrem.

Curiosamente, tanto branch como Nazary tocam com frequência em contextos acústicos, mas Anteloper é um projecto em que a electrónica se constitui como base para a sua mais musculada e física invenção, com ambos a trazerem ferramentas digitais para o estúdio para onde convocaram ainda os companheiros Jeff Parker (que contribui para três das cinco faixas) e Chad Taylor (que acrescenta mbira ao tema que dá título ao álbum). Explica jaimie branch: “Antes de mais nada somos improvisadores e trazemos ‘música de momento’ para estas outras zonas de hip hop e música electrónica, música de caixas-de-ritmos, cultura de sound system… Somos instrumentistas acústicos beijados pelo electromagnetismo, fluindo para tudo. Esta é a merda que queremos tocar em grandes sistemas de som. Música omnívora, de energia espaço-temporal, música de mosh pit, para dançar. Coloca-a nos subwoofers para que possas senti-la a bater, porque a música tem de começar no corpo!” Como manifesto de intenções não podia ser mais claro. O duo reclama ainda a energia disruptiva do punk como combustível anímico e as experiências exploratórias de Miles Davis em Live Evil como inspiração formativa.

O título do novo registo dos Anteloper referencia não apenas a herança colombiana que branch carrega no seu ADN, como ainda uma criatura que habita certas zonas do Amazonas, um golfinho que, sublinha a trompetista, tanto se dá bem em águas salgadas como doces ou nas zonas liminares em que ambas se misturam. Um pouco como os próprios Anteloper, sugere-se nas notas de lançamento, “que se adaptam a vários terrenos enquanto se movem em várias direcções através do som”. E adaptando até o espírito do título de uma edição mais ou menos recente de John Coltrane, pode dizer-se que se movem em todas essas direcções ao mesmo tempo.

A menção ao Mies de Live Evil (1971) é certeira não apenas porque a presença do percussionista brasileiro Airto Moreira é referência pessoal para Nazary, mas também porque é disco de cabeceira do principal convidado do álbum, Jeff Parker, que instou o duo a organizar o material que lhe foi inicialmente enviado, algo que jamie e Jason fizeram adoptando os princípios de Teo Macero, o mítico produtor que desenvolveu a capacidade de usar o estúdio e a edição das fitas que continham as livres deambulações do colectivo como uma espécie de ferramenta composicional ou pelo menos organizativa, conferindo dessa forma a estrutura final que hoje reconhecemos nessas efusivas experiências.

A integração das possibilidades electrónicas na estratégia criativa do duo atinge neste álbum um momento alto, sentindo-se claramente que os registos anteriores documentavam uma procura. A trompetista cita artistas como Sun Ra, Mouse on Mars e J Dilla, e ainda, num momento mais recente, Moor Mother, Harriet Tubman e Sam Newsome, como importantes repositórios de lições que os guiaram nesse processo. Já Nazary aponta para um par de trabalhos específicos dos Autechre do início do milénio como determinantes guias na sua abordagem à electrónica: “as máquinas influenciam-me tanto quanto eu as influencio a elas”.

Esta é, portanto, uma espécie de síntese das mais cósmicas deambulações da Arkestra e dos colectivos eléctricos de Miles, com a inventividade trompetística de jaimie em primeiro plano – e, num dos momentos, “Earthlings”, com a trompetista a avançar igualmente a sua voz como outra das suas ferramentas expressivas – e as cadências sujas que dispensam regra e esquadro de Nazary a assumirem a ligação à Terra, tomando conta da subcave das composições. Pelo meio há texturas abrasivas esculpidas electronicamente, demonstrando que no hip hop os Anteloper (anti-looper?) aprenderam a dispor camadas significantes como forma de organizarem os seus arranjos. Esta é música híbrida que por um lado soa solta e livre como qualquer outra música que tenha na improvisação uma das suas forças motrizes, mas por outro resulta de intensa pós-produção, assumindo o compromisso que há entre o momento e a reflexão, entre o palco e o estúdio, entre o instinto e a intenção. Música poderosa, sem a menor sombra de dúvida.

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