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Ilustração: Riça
Publicado a: 08/07/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #19: Luís Vicente / Ebi Soda / Anteloper

Ilustração: Riça
Publicado a: 08/07/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Luís Vicente] Maré / Cipsela Records

Maré, oitava entrada no já muito sólido catálogo da Cipsela Records, resulta de um solo do trompetista Luís Vicente no Convento de Santa Clara a Nova, numa apresentação que decorreu no âmbito do Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, em Novembro de 2017.

É curioso pensar-se nos solos que têm nos tempos mais recentes vindo a público: Pedro Melo Alves, Manuel Mota, Susana Santos Silva, Filipe Felizardo, João Almeida, João Pais Filipe ou João Barradas são apenas alguns dos músicos que nos últimos meses lançaram trabalhos em rigoroso modo solitário (tendo todos recebido atenção desta coluna). Sinal dos tempos de isolamento? Certamente. Mas sinal também, por parte destes diferentes músicos, de uma transversal vontade de explorar outros caminhos estéticos que acomodem novas abordagens às suas respectivas ferramentas de expressão.

De notar, igualmente, que três dos artistas da lista supracitada são trompetistas. E o incrível é que os solos de João Almeida, Susana Santos Silva e, agora, Luís Vicente revelam como é possível extrair do mesmo instrumento sons, texturas, tons, pensamentos e, vá lá (não há que temer a palavra), emoções tão distintas. E se resisto a escrever a palavra “emoções” é por reconhecer que, no essencial, estes exercícios a solo traduzem um impulso intelectual por parte dos artistas: são “estudos”, tanto sobre as capacidades do próprio instrumento quanto de auto-conhecimento. E nesse sentido, há que sublinhar a coragem necessária para uma exposição desta natureza: como acontece quando se parte em qualquer expedição, também nos casos em que um músico decide explorar-se desta maneira, expondo-se sem filtros perante uma plateia, é necessário possuir nervo, coragem, força e determinação.

Nesta Maré com que Luís Vicente nos submerge, e como acontecia, por exemplo, nos solos “domésticos” de Susana Santos Silva ou Filipe Felizardo, há uma dimensão “site specific” na obra final apresentada. Se nos discos da trompetista e do guitarrista era do íntimo espaço doméstico que nasciam as condicionantes físicas das respectivas gravações (os insectos em suspensão na sala, as janelas abertas, a água que pinga de uma torneira…), aqui a dimensão espectral do reverb de pedra conventual assume um natural protagonismo no resultado final. Luís Vicente é o autor que recorre a um trompetismo ultra-pessoal que obviamente denota referências (Rui Eduardo Paes aponta certeiramente para Don Cherry e Kenny Wheeler na sua abordagem ao disco), mas pode referir-se que o próprio espaço tem uma quota parte na “autoria” das três peças aqui apresentadas por devolver de uma maneira singular aos ouvidos do músico o seu próprio pensamento no instrumento, levando-o a dialogar consigo mesmo.

E as “emoções” de que falava há um par de parágrafos estão bem patentes aqui: em “Lage Fria”, Vicente começa por soar expectante, como quem coloca de forma tímida um pé na água, tentando perceber a temperatura, a profundidade, a textura do fundo, avançando com cautela; “Rampa”, como o nome indica, traduz o esforço exigido a quem pretende superar um obstáculo, obrigando o músico a puxar pelos pulmões com frases longas, carregadas de grão e, logo, de humanidade; e “Quebra Mar” nasce nostálgica, a mais póetica das peças aqui apresentadas, toda ela contemplação, antes de partir numa dilatada deriva (é a peça mais longa, com mais de 23 minutos) que é, antes de mais, pungente auto-retrato. Luís Vicente é um músico de sóbria seriedade, um explorador que não teme o desconhecido e que aqui vai deambulando entre o recorte textural do seu tom e a dimensão melódica das suas ideias, sempre em contraste assumido com o silêncio que nunca o chega a ser porque a reverberação é, afinal de contas, a memória imediata do que acabou de ser dito, um registo momentâneo que logo se desvanece, como o reflexo numa superfície líquida que se desvanece assim que a água se agita.



[Ebi Soda] Ugh / Sola Terra Records

Naturais de Brighton, os Ebi Soda são mais uma válida presença no cada vez mais povoado mapa do novo jazz britânico. O quinteto de Sam Schlich-Davies (bateria), Hari-Lee Evans (baixo e teclados), Louis Jenkins (teclados), Conor Knight (guitarra) e Wilhelm (trombone e teclados) é aqui ampliado com as presenças de Beth Hopkins (saxofone alto), Jonny Poole (saxofone tenor) e Don Gray (trompete e fliscorne), que oferecem força adicional a “Ecchi”, tema de abertura, e “Zip Yiour Boots Up Lad”. Don Gray faz-se ouvir ainda em “Keisha Billip” e “Something to do in The Future” ao passo que as vozes de Chloe Bodur e J Harli marcam “Run For President” e “Summer One”, respectivamente.

Nas notas de lançamento, os Ebi Soda referem que Ugh se estabelece mais como uma espécie de mixtape do que como um álbum, reunindo material disperso que foi sendo registado ao longo de diferentes sessões espaçadas por mais de um ano e sucedendo à promissora estreia que aconteceu com Bedroom Tapes, EP lançado o ano passado. E é curioso que o colectivo de Brighton escolha o termo “mixtape” para designar este conjunto de peças ao invés, por exemplo, de “compilação”. É que, como vários dos projectos com que coabitam no presente jazz britânico, também os Ebi Soda denotam uma óbvia dívida para com o longo devir do hardcore continuum que ofereceu uma banda sonora à paisagem “clubística” desde os alvores da explosão house em solo britânico na segunda metade dos anos 80, passando pela era das raves nos anos 90 até este presente pós-dubstep e grime.

O “swing” rítmico que anima a música que os Ebi Soda aqui apresentam é uma feliz síntese de drum n’bass, afrobeat, garage, house e dub, ao qual adicionam a sua própria visão modernista do jazz, uma que tanto compreende o poder da invenção livre e a dimensão discursiva dos solos, como as possibilidades texturais que a electrónica permite com o tratamento em estúdio do material que se regista nas diferentes sessões (escute-se, por exemplo, o trabalho de Dan Gray em “Keisha Billip”, tão dramaticamente transformado na mesa de mistura). É no sound design, que explora mais uma noção arquitectural do som e que se afasta do rigor e do realismo da tradicional sessão de jazz, que os Ebi Soda aqui investem.

Há uma óbvia componente política na forma como se equilibra a tradição jazz com as dinâmicas do presente, reclamando esta como uma urgente música do agora e não como uma mera conquista do passado que se replica usando conhecimentos e ferramentas afinadas na academia. Dessa forma, os Ebi Soda sintonizam-se com a mesma vibração que sustenta o pensamento de alguém como Shabaka Hutchings, óbvia figura tutelar de toda esta cena, mas, ao mesmo tempo, há declarações de resistência mais directas, como acontece na fantástica “Run For President” em que Chloe Bodur transforma o degradante “grab ‘em by the pussy” proferido pelo actual inquilino da Casa Branca num tocante lamento de revolta.

“Summer One”, o outro tema vocal, servido pelo óbvio talento de J Hari, é uma pequena maravilha de pulsar disco-house em que HariLee Evans brilha com um ondulante e expressivo baixo. Peça para dançar ao por do sol de olhos pousados num espelho de água, esta canção pode causar sérios estragos nas pistas de dança da nossa imaginação, já que o momento actual não permite a proximidade física a que este balanço tão descaradamente convida.

Os Ebi Soda valem muito pelo vigor colectivo que apresentam, pela sofisticada elegância rítmica explorada, mas os músicos, sobretudo a secção rítmica e o trombone do líder e produtor Wilhelm, conseguem brilhar com mais intensidade graças aos sólidos argumentos apresentados (e para provas das capacidades do trombonista pode-se sempre mergulhar em “Playstation”, por exemplo). Mais um colectivo que obviamente muito sentido faria presenciar ao vivo num futuro de comunhão física que se deseja que chegue o quanto antes.



[Anteloper] Tour Beats Vol. 1 / International Anthem

Anteloper é a entidade colaborativa de Jaimie Branch, a trompetista e compositora que nos deu dois extraordinários volumes de Fly or Die (tal como a edição presente igualmente merecedora de carimbo da International Anthem), e Jason Nazary, baterista de múltiplas andanças com amplo currículo. Juntos, Jaimie e Jason carregam para o estúdio além dos seus instrumentos acústicos uma panóplia de recursos electrónicos, entre sintetizadores, caixas de ritmos e efeitos, que usam para criar uma densa e ultra-psicadélica paisagem aural.

Este trabalho resultou de uma residência em que Branch se envolveu e para que chamou Nazary. Juntos num contentor transformado em estúdio ao serviço do Pioneer Works, um centro de artes em Red Hook, bairro de Brooklyn em que a trompetista normalmente habita, Jaimie Branch e jason Nazary, os Anteloper, criaram a música que depois levaram em digressão conjuntamente com o duo de Washignton DC Blacks’ Myths. Este Tour Beats Vol. 1, que agora conhece edição em vinil e lançamento digital no Bandcamp, começou por ser disponibilizado em cassete na “merch table” dessa digressão, denominada Ante-Myths Sonic Projections Tour.

E de facto é de projecções sónicas que se trata: densas propostas electrónicas, influenciadas fortemente pelo lado mais exploratório do hip hop instrumental, às quais Branch e Nazary opõem os seus próprios instrumentos, num constante cruzamento de planos, fundindo-se de forma perfeita o que é tocado ao vivo e o que é programado em estúdio. A referência óbvia aqui é o Miles Davis dos eléctricos anos 70, sobretudo o que se escuta em álbuns como On The Corner, o sombreado que acentua os contornos do trompetismo de Jaimie, mas, obviamente, estes Anteloper, do alto da presente montanha tecnológica, encontram-se já num estado de entendimento das nuances rítmicas, texturais e sampladélicas do hip hop muito mais avançado do que o que o mítico trompetista demonstrou possuir quando arriscou a fusão com o género em Doo-Bop, o seu último álbum de estúdio, lançado em 1992.

De nervo punk, abordagem experimental, inclinação psicadélica e pulsar decididamente hip hop, este jazz dos Anteloper é imaginativo, altamente abstracto, mas também irresistivelmente envolvente, o tipo de linguagem que se cola de forma perfeita ao presente, uma banda sonora para os estranhos dias que nos assombram que ainda assim traduz os rasgos de luz de que o génio humano ainda é capaz.

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