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Fotografia: Chloe/Love Supreme
Publicado a: 06/07/2022

Diferente e único.

Love Supreme’22: uma utopia tornada realidade em East Sussex, Inglaterra

Fotografia: Chloe/Love Supreme
Publicado a: 06/07/2022

Erguer um império passa por anular as culturas locais em favor de práticas e valores centrais. Da Roma dos Césares à Inglaterra colonial passando, pois claro, pelo Portugal quinhentista que se espalhou pelo mundo com os “descobrimentos”. É por isso mesmo impossível não ver um festival como o Love Supreme como uma espécie de ajuste de contas com a história, com a sua celebração da música das diferentes diásporas que chegaram à antiga capital do império. E tudo ali é significativo, incluindo o lugar onde decorre.

O Love Supreme acontece nos amplos e verdejantes terrenos de uma casa senhorial situada em Glynde, East Sussex (muito perto de Brighton), uma daquelas mansões que conhecemos de séries como Downton Abbey, habitadas pela elite que o império britânico ajudou a criar. Nesse vastíssimo espaço conviveram 75 mil pessoas ao longo de três dias, facto que ajuda a impor o Love Supreme como o maior festival de jazz ao ar livre da Europa e certamente um dos maiores do mundo. Este festival, no entanto, criou ao longo das suas diferentes edições – nasceu em 2013 e não se realizou em 2020 e 2021 – um público muito particular. É impossível não começar por sublinhar a alegre convivência de diferentes gerações: a organização disponibiliza trolleys – que também funcionam como camas – que as famílias usam para transportar as suas crianças entre os diferentes espaços, consideravelmente afastados uns dos outros; há ainda muita gente abaixo dos 30, claramente atraída pela programação mais contemporânea, e imensos exemplos de quem já terá deixado os 60 para trás há muito tempo; e o público faz-se de um imenso arco-íris que abarca todas as culturas em tempos subjugadas pelo tal império, com gente que terá, certamente, ascendência em diferentes pontos da Ásia, do Médio Oriente, de África e das Caraíbas a celebrar as suas identidades não apenas em cima dos vários palcos, mas também por todo o recinto. Nota ainda para a quantidade assinalável de público com necessidades especiais ao nível da mobilidade atraído, certamente, pelas fantásticas acessibilidades pensadas para que este seja um festival realmente inclusivo.

E não é somente na excelente curadoria musical que se identificam os diferentes sabores — clássicos e contemporâneos — da cultura nascida em Nova Orleães e espalhada pelo mundo ao longo dos últimos 100 anos. A excelente oferta de experiências gastronómicas parece igualmente celebrar a riqueza das muitas culturas que sobreviveram ao império: da Tailândia e Indonésia à comida cajun do Louisiana, da Jamaica ao México, de Itália, Espanha e daí à Índia, eram muitas as propostas que se constituíram em autêntica sinfonia de aromas e sabores. Uma importante característica da experiência Love Supreme que teve, de resto, perfeito eco na música.

O festival faz-se, obviamente, sobretudo de concertos, mas oferece muitas outras relevantes experiências a quem é apaixonado por esta música. A Rough Trade montou uma loja no recinto que foi ao longo dos três dias recebendo muitos dos artistas para sessões de autógrafos e havia também um jazz lounge que promoveu talks com artistas como Bill Frisell ou Charles Lloyd, entre vários outros, bem como diferentes discussões em torno do jazz e mais álem com a “Cancel culture” ou a situação na Ucrânia a merecerem igualmente atenção em conversas moderadas por personalidades da rádio ou até políticos e activistas. A instituição beneficente Jazz Centre, por seu lado, tinha um espaço em que propunha uma exposição com capas de álbuns clássicos e onde divulgava as suas diferentes actividades que vão da pesquisa, à formação através de workshops e concertos. E, obviamente, as crianças não foram esquecidas, havendo uma área pensada só para elas onde os pais as podiam deixar durante um pedaço enquanto assistiam a algum concerto mais intenso.

Ciro Romano, o advogado que criou o festival, foi inteligente ao incluir activamente na variada programação do Love Supreme as diferentes instituições e agentes que têm mantido o jazz vivo em Inglaterra e por isso mesmo por ali vemos a revsta Jazzwise, a rádio jazz.fm ou a Rough Trade. O que não se vê, no entanto, é a avalanche de marcas que costuma ser comum neste tipo de eventos, facto que ajudará a explicar que os bilhetes de fim de semana mais baratos andassem pelos 200 euros.

O maior nome do cartaz na jornada inaugural de dia 1 de Julho  – que não teve concertos no palco principal do recinto, o North Downs – foi o dos fantásticos Ezra Collective que assinaram um incrível concerto. O grupo de Femi Koleoso e Joe-Armon Jones foi bastante vocal acerca da sua particular visão do jazz, que acomoda o balanço tropical das Caraíbas e o poder livre do improviso enquanto claramente apela à dança. O público, carregado de energia, deixou-se levar enquanto o ágil colectivo passava em revista boa parte do material do politicamente titulado You Can’t Steal My Joy. Imediatamente antes da sua apresentação, noutro espaço, mais pequeno, o New Generation Jazz, apresentavam-se os igualmente enérgicos Ebi Soda, jovem quinteto jazz-funk natural de Brighton que, aliás, o autor destas linhas encontrou no comboio que circulava entre essa cidade costeira e a pitoresca vila de Glynde. Ainda no primeiro dia foi possível incendiar o espírito com a homenagem de Sean Khan a Trane – ele que o ano passado lançou Supreme Love: A Journey Through Coltrane – ou presenciar a intensa entrega que Alabaster de Plume sempre assina: o seu concerto no espaço Bands & Voices foi intimista, mas ainda assim tremendo na força espiritual, emocional e até política. Outros nomes de relevo nesse primeiro dia foram os de Graham Costello’s Strata, Alina Bzhezhinska & Hopharp Collective que se apresentaram no Jazz in The Round perante os festivaleiros com endurance suficiente para aguentarem até às duas da manhã.



Quando chegámos ao recinto na tarde de sábado fomos recebidos com os sons da “itinerante” New York Jazz Band, uma banda de metais que circulava por diferentes espaços do recinto, presenteando quem lhes desse atenção com a sua enérgica e progressiva versão da tradição. O dia prometia, com o palco principal a funcionar desde a hora de almoço, e uma tarde solarenga que se revelou perfeita para receber Samm Henshaw, Tom Misch, Lianne La Havas e Erykah Badu. Estes nomes enquadram-se todos na estratégia de alargamento da ideia de jazz que abraça também o r&b e outras declinações musicais mais modernas, mas pode-se, porém, sublinhar que todos esses artistas levaram em conta a natureza musical do festival quando desenharam os seus alinhamentos. Erykah Badu, por exemplo, estendeu alguns dos seus clássicos, como “On & On” ou “Love of My Life”, dando aos seus experientes músicos generoso espaço para exercitarem os seus músculos improvisacionais. O mar de gente em frente, por outro lado, respondeu em absoluto êxtase. Durante a tarde, actuações noutros espaços do veteraníssimo Charles Lloyd à frente dos The Marvels – que se mostrou em forma do alto dos seus 84 anos enquanto apresentou material de Tone Poem e de outras pérolas da sua vasta discografia à frente de uma excelente banda que inclui o gigante guitarrista Bill Frisell –, de Matthew Halsall, dos igualmente veteranos Fatback Band – grupo activo sobretudo nos anos 70, altura em que estabeleceu uma das primeiras pontes entre os universos do funk e r&b e os de um então nascente hip hop –, de Emma-Jean Thackray, Sarathy Korwar, Ife Ogunjobi (trompetista que marcou presença no mais recente álbum dos Sons of Kemet) e Corto Alto deixaram claro que a pequena palavra “jazz” representa, neste agitado presente, uma vastíssima paisagem de sons, de práticas, de visões e de balanços. Comum a todos será a destreza instrumental, a capacidade de improvisar e de criar no momento, mas cada um desses nomes é perfeitamente capaz de oferecer ao seu público uma diferenciada experiência musical. As plateias, em todos os casos, responderam com atenção e entusiasmo.



No último dia, 3 de Julho, domingo, o palco maior do Love Supreme voltou a laborar cedo, com a Soul Family de Natalie Williams a apresentar-se por lá logo às 12h15, inaugurando um espaço que recebeu ainda os Mamas Gun, Brand New Heavies, Sister Sledge, TLC e Gregory Porter, perante um oceano de famílias que se foram dispondo pelo vasto espaço em modo picnic, com mantas e lanches e muita animação, levantando-se para a dança e entregando as suas vozes ao coro generalizado quando tal era solicitado. Uma verdadeira celebração do significado de comunidade que correspondeu não apenas às apresentações mais devedoras do sentimento de nostalgia das lendas disco Sister Sldege e r&b escola 90s das TLC, mas sobretudo à da grande estrela que é Gregory Porter homem que canta aquele que é o mais precioso bem destes violentos tempos – o amor. 

A grande actuação do dia, no entanto, foi a dos Sons of Kemet, banda que deve ter assinado aqui um dos seus últimos concertos, de acordo com o seu recente comunicado. Mais especial ainda se tornou a avassaladora passagem pelo Love Supreme do grupo comandado por Shabaka Hutchings quando se sabe que ao seu lado esteve Nubya Garcia, talvez para colmatar a ausência de Theon Cross, num encontro que foi exclusivo deste evento e também por isso absolutamente histórico. Com Tom Skinner ladeado por dois outros bateristas e um contrabaixista a assegurar os graves antes debitados pela tuba de Cross, o grupo percorreu repertório de Black to the Future com pontuais passagens por Your Queen is a Reptile perante um público sedento de movimento e completamente rendido à energia debitada a partir do palco. A interacção de Shabaka e Nubya foi perfeita: o primeiro é todo ele nervo, músculo, força telúrica ao passo que a última é pura elegância, subtileza e classe técnica. E da combinação dessas duas igualmente importantes características resultou um som de impressionante vigor que se deseja ardentemente que possa vir a ser documentado de alguma maneira (uma gravação ao vivo de um concerto destes teria, certamente, cabimento). 

Durante o dia, os concertos de Gary Bartz com o colectivo Maisha – que em 2020 rendeu um belo disco na Night Dreamer -, dos Soccer96 de Dan Leavers e Maxwell Hallett (os dois companheiros de Shabaka nos The Comet is Coming) ou de Nala Sinephro ainda proporcionaram viagens entre o êxtase e a dança, equilibradas com diferentes interpretações da música do momento que existe em permanente estado de invenção e reinvenção.

O Love Supreme é um festival diferente e único – porque programa música que atravessa décadas e se projecta no futuro, porque acolhe um público que é múltiplo e diverso, porque se afirma como espaço seguro e inclusivo numa era de tensões. Até para o ano que vem.


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