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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/06/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #98: Tigran Hamasyan

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/06/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Tigran Hamasyan] StandArt / Nonesuch

O Grande Cancioneiro Americano foi, em significativa parte, criado por imigrantes ou descendentes de imigrantes: Richard Rodgers, por exemplo, nasceu em Nova Iorque, no seio de uma família judaica que adaptou o nome Rogazinsky quando se estabeleceu no Novo Mundo; Jerome Kern descendia igualmente de pai judeu, mas este vindo da Alemanha; a mãe de Johnny Mercer tinha ascendência croata; Sigmund Romberg nasceu na Hungria; Axel Stordahl era filho de imigrantes noruegueses. E por aí adiante. São alguns dos compositores e autores dos standards escolhidos pelo pianista arménio Tigran Hamasyan para o seu primeiro trabalho em torno do conceito do standard, StandArt

O New Grove Dictionary of Jazz define o standard como “uma composição, normalmente uma canção popular, que se torna num item estabelecido num reportório; por extensão, e, por conseguinte, uma canção que um músico profissional deverá conhecer”. Ou seja, uma língua franca. Em conversa com Tigran Hamasyan tida a propósito deste seu novo álbum, sugeri que o papel original do standard – forma rápida do solista acabado de chegar ao clube numa nova cidade poder interagir com a banda residente – se terá alterado com o passar das décadas passando a ser encarado como a peça resguardada por uma redoma no Grande Museu do Jazz (que terá, certamente, Wynton Marsalis como director, ele que sabe bem o que é e o que não é o jazz). O pianista respondeu:

“Bem, eu já tive a experiência de retrabalhar a música popular arménia, que é ainda mais um artefacto de museu, certamente um artefacto ‘mais antigo’: se você se aproximar, você deve realmente… mostrar respeito. E especialmente com música religiosa — estará em apuros se tocar nessa música. Deve compreender a tradição e as regras que a acompanham, mas depois deve quebrá-las, caso contrário não faz sentido, especialmente com a música popular arménia – ou qualquer outra música popular, já agora – porque é música monódica sem harmonia e se acrescentar harmonia, deve servir um propósito, deve servir a própria canção. Muitas bandas hoje em dia na Arménia estão apenas ‘usando’ estas raízes folclóricas para obter popularidade. Para mim, isso sempre significou que eu tinha que realmente entrar no fundo da música. E isso vale para o folclore ou qualquer outra música. Sinto sempre que tenho de inventar estruturas harmónicas e rítmicas que vêm do meu mundo interior e não necessariamente do que quer que seja que possa estar na moda. Por isso, basicamente abordei estes standards através das minhas próprias experiências e ideias que tenho vindo a desenvolver ao longo dos anos através das minhas próprias composições ou dos arranjos de música popular arménia que fui assinando.”

Compreender a tradição, em primeiro lugar. Romper com ela, logo depois. Ou, pelo menos, abordá-la não minimizando a sua própria perspectiva, as suas experiências e as suas ideias. É esse o programa na base deste StandArt, álbum que resultou de um regresso ao estudo de standards durante o confinamento, um exercício que Hamasyan se auto propôs: “Ao lidar com o confinamento imposto pelo Covid senti a necessidade de abordar este repertório, de praticar novamente e de me desafiar a mim próprio, tentando novas harmonias, improvisando sobre elas. E lentamente comecei a construir estes arranjos densos e depois de ter refeito cinco ou seis canções, a ideia de as tornar num disco tornou-se clara”.

Para tanto, Tigran Hamasyan chamou dois incríveis músicos, uma secção rítmica realmente moderna composta pelo baterista Justin Brown (que este ano tocou em Lisboa com Thundercat) e pelo contrabaixista Matt Brewer. Tigran Hamasyan, uma vez mais:

“Eu queria mesmo ter uma banda acústica, mas isso é apenas um dos lados. Justin e Matt são simplesmente incríveis, e eu queria fazer algo com eles durante muito tempo. Conheço o Justin desde que andava na faculdade, há 12 ou 13 anos. Tenho acompanhado a sua carreira e penso que ele é um baterista único e incrível: os seus ouvidos são inacreditáveis e ele tem um grande sentido de fluidez quando toca. Eu não tinha experimentado algo assim antes. Essa singularidade do seu tocar funcionou realmente para esta música porque é ritmicamente desafiante. É como esta coisa de fornecer informação constantemente, mas esta informação está sempre a servir o que estamos a fazer juntos, e nunca se põe a caminho. E ambos podem ouvir-se um ao outro a um nível muito profundo. Começámos a tocar, no primeiro ensaio — bem, na realidade tivemos apenas dois ensaios –, e de imediato senti que estava tudo a fluir incrivelmente, porque o Matt também tem um grande domínio sobre a forma como toca, nunca se põe a caminho apesar de estar constantemente a fornecer informação: pode ser muito agitado ou muito forte mas nunca me fez pensar ‘oh, vamos apenas acalmar agora’. Assim, ao ouvir o fluxo da banda eu sabia que iria funcionar mesmo que nunca tivesse tocado com esta configuração antes.”

Além disso, em quatro das nove peças do álbum, ao trio juntam-se os saxofonistas Joshua Redman e Mark Turner e ainda o trompetista Ambrose Akinmusire. O pianista explica os convites que dirigiu a cada um estes solistas: 

“Há muito tempo que ouço a música do Joshua e do Mark. E como o Joshua está na mesma editora que eu, pensei que isso me daria um bom ângulo para finalmente poder colocá-lo num dos meus discos e este projecto provou ser a oportunidade perfeita para isso. Então, liguei-lhe, ele estava disponível e como vive na área da Baía de São Francisco isso facilitou a organização da sessão. Ensaiámos no dia anterior e foi só isso. Quer dizer, eu tinha tocado uma vez com o Joshua quando tinha 16 anos, numa sessão de improviso em França num festival qualquer, e mantivemo-nos em contacto. Com Ambrose foi um pouco diferente: eu tinha-o conhecido uma vez quando estava na faculdade em Los Angeles. Fizemos três espectáculos juntos, com um quarteto em que juntámos os membros das nossas bandas: foi Sam Minaie da minha banda e Justin da dele. Isso aconteceu no Festival de Jazz de Montreal, uma experiência realmente fantástica. Depois, há cerca de três anos, convidei-o para fazer dois  espectáculos em dueto que correram muito bem. Então, tinha em mente gravar algo com ele o mais rápido possível. Quando este projecto surgiu, liguei-lhe e foi um pouco difícil agendar, mas finalmente conseguimos que acontecesse. Para o Mark, foi apenas uma semana antes da gravação que o Justin ou o Mark Guiliana me disseram que o Mark se tinha mudado para Los Angeles. Arranjei o e-mail dele e escrevi-lhe, disse-lhe que ia entrar em estúdio dentro de uma semana e perguntei-lhe se gostaria de se juntar a mim para uma ou duas canções. Ele concordou e foi só isso. Estou muito feliz por termos conseguido fazer ‘All the Things You Are’ juntos, porque foi um momento muito especial.”

Com tamanhos recursos humanos, a “coisa” só poderia correr bem. Claro que este “casting” foi ponderado: os arranjos que Tigran Hamasyan concebeu para esta colecção de standards são realmente desafiantes, tanto harmónica como ritmicamente, e seriam mais bem servidos por músicos de excelência. O que, de facto, aconteceu.



Na já mencionada entrevista, Hamasyan conta como, durante o seu período formativo, quando se apaixonou por bebop, exercitava o seu “músculo” criativo escrevendo peças à maneira dos seus heróis, como Elmo Hope, por exemplo. Um pouco como os beatmakers em início de carreira começam por fazer o que no universo hip hop se designa como “type beats”, batidas ao estilo de um dos nomes consagrados do género. É do pianista Elmo Hope, aliás, o tema que abre o alinhamento de StandArt, “De-Dah”, peça que o próprio compositor gravou com Lou Donaldson e Clifford Brown em 1953 e que nas décadas seguintes mereceria atenção do trio do próprio Hope com Philly Joe Jones e Paul Chambers ou, em eras mais recentes, de Brad Mehldau, por exemplo. É aliás um exercício curioso escutar as versões de Mehldau e Hamasyan lado a lado: são dois pianistas com uma acentuada diferença de idades – o americano é 17 anos mais velho – e dotados de léxicos igualmente distintos – a versão que Brad incluiu em Seymour Reads The Constitution! (2018) encaixa-se perfeitamente na tradição bebop de piano jazz, mas aquela que Tigran assina afirma a diferença logo a partir dos primeiros acordes. O arménio é um pianista mais vibrante, mais barroco também, mas é na vivacidade harmónica e na desenvoltura rítmica que se abriga a sua modernidade. E para tamanha demonstração de vigor inventivo, o pianista precisava realmente de uma secção rítmica com pronunciado espírito de aventura, capaz de o seguir nas curvas e contracurvas, algumas em ângulo recto, dos seus arranjos que parecem ecoar o traço arrojado de alguns pintores modernos, como o seu amigo Gaguik Martirosyan, que assina o artwork da capa: “Ele tem uma forma de contar histórias com uma abordagem mínima e cria um mundo com sinais e linhas simples”.



Não será exactamente com “linhas simples” que Tigran ergue a sua original visão dos standards. Um dos seus “truques” (e não são poucos os recursos técnicos de que dispõe) passa pela combinação de soluções harmónicas inesperadas com uma exposição percussiva entregue à sua mão direita, como se sente tão bem em “I Didn’t Know What Time It was” (da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart): sobre uma cadência hip hop erguida por Brown e um elegantemente contido Brewer, Tigran soa caleidoscópico, alternando entre velocidades e acentuações com um sentido lúdico refrescante. O primeiro convidado surge em “All The Things You Are” (Jerome Kern, Oscar Hammerstein II): sobre uma cascata de notas de piano, Mark Turner entra sussurrante em modo baladeiro de arrebatada beleza, num momento em duo de rara economia num álbum que soa quase sempre expansivo, mesmo quando se escuta apenas o trio, como em “When a Woman Loves a Man” (Bernard Hanighen, Gordon Jenkins e Johnny Mercer) em que Tigran desenha espirais em cima da melodia original, enquanto Justin e Matt suportam o desenrolar do tema com classe absoluta. Noutro momento em trio, “Softly As in a Morning Sunrise” (Sigmund Romberg, Oscar Hamerstein II), Hamasyan avança a direito e assume a rota de colisão com a ideia de reverência perante os standards, insuflando uma energia proggy no arranjo capaz de entusiasmar até o mais casual dos ouvintes. O motivo melódico é oferecido em tons sombrios e a secção rítmica apresenta-se bastante enérgica, capaz de preencher cada breve espaço deixado em aberto entre as notas que Tigran debita, num constante vai e vem de dinâmicas que espelham uma complexidade de emoções que ele entende abrigar-se na peça original.

Mas os momentos altos do álbum são mesmo aqueles em que Joshua Redman e Ambrose Akinmusire entram de rompante. O saxofonista entrega-se com habitual expressividade a “Big Foot” (um original de Charlie Parker), numa versão de sete minutos e meio de absoluta intensidade hard bop, com Tigran a remeter-se a um comping bem discreto enquanto Redman faz piruetas em cima da melodia original. Quando chega a sua hora de solar, percebe-se que Tigran não quer soar contido após o vibrante contributo do seu convidado, e isso traduz-se numa exposição alternativa de equivalente vigor. Quando se unem no final, os uníssonos parecem fogo de artifício (elogio!) em noite límpida, uma explosão de acentuado cromatismo. Akinmusire aparece em duas faixas contíguas: “I Should Care” (Axel Stordhal, Paul Weston, Sammy Chan) e “Invasion During an Operetta” (um improviso com autoria repartida pelo quarteto). A primeira é talvez a mais “moderna” peça do conjunto, com Akinmusire a respirar vivacidade e invenção para dentro do seu trompete, em perfeito diálogo com Tigran, com ambos a mostrarem o seu músculo improvisacional que é ainda mais evidente na peça seguinte, que bem poderia ter sido captada ao vivo num clube em noite de feliz empatia.

O álbum fecha com o trio a atirar-se a “Laura (David Raksin, Johnny Mercer), exercício de encaixe em que Tigran, Matt e Justin voltam a soar como perfeita unidade, como se fosse um trio com anos de experiência em cima e não um conjunto criado especialmente para este efeito. É talvez o mais expressivo momento de Brewer em todo o álbum, com o baixo a ganhar um plano mais expressivo na mistura, facto que Tigran aproveita para se projectar.

A gravação de Pete Min no Stagg Street Studio é límpida, definida e ampla, deixando que cada instrumento se imponha no campo aural com nitidez absoluta. Os nossos ouvidos, obviamente, agradecem. As palavras finais aqui são mesmo de Tigran Hamasyan:

“Estas são canções muito pessoais. Sinto-me muito nostálgico perante a era do bebop e também o início do século XX, aquela época em que o jazz estava a nascer e a música clássica estava a evoluir para novas formas. Compositores como Shostakovitch, Ravel, Debussy, Prokofiev são também grandes influências para mim. Esse período entre os anos 20 e 50 é muito importante para mim. Prokofiev estava na sala a ouvir Bud Powell ou Stravinsky estava a ouvir Bird… Isso faz-me sonhar em voltar a esse tempo e experimentar toda aquela música em primeira mão. Portanto, acho que as minhas escolhas para este disco estão muito ligadas a esse sentimento de nostalgia. Por exemplo, ‘I Should Care’, ‘Laura’, ‘Softly, as in a Morning Sunrise’ recordam emoções muito específicas. Estas são todas verdadeiramente especiais e muito pessoais. Não tenho a certeza se posso explicar melhor.

Na verdade, não é preciso. Basta escutar para se perceber.

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