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Fotografia: Christie Hemm Klok
Publicado a: 31/07/2019

O músico americano vem a Portugal apresentar o seu mais recente álbum Origami Harvest, lançado em Outubro do ano passado.

Ambrose Akinmusire: “Soul, música de igreja, jazz, hip hop… é tudo a mesma coisa”

Fotografia: Christie Hemm Klok
Publicado a: 31/07/2019

A música negra enquanto corpo único, singular, em que se cruzam a soul e o gospel, o jazz e o hip hop… Essa é uma ideia em que o trompetista Ambrose Akinmusire acredita plenamente. Ele é um dos artistas presentes no cartaz da edição deste ano do festival Jazz Em Agosto que decorre na Gulbenkian e que tem arranque marcado para amanhã, dia 1, com concerto de Marc Ribot que apresentará Songs of Resistance no Anfiteatro ao Ar Livre.

“Resistance”/”Resistência” é, de resto, o tema deste ano do festival em que Ambrose Akinmusire apresentará Origami Harvest no próximo dia 10 de Agosto. Nicole Mitchell e Mandorla Awakening (dia 4 de Agosto) será outro dos destaques de uma programação que incluirá ainda concertos de Maja S.K. Ratkje, Heroes Are Gang Leaders, Ingrid Laubrock e Tom Rainey, Burning Ghosts, Abdul Moimeme, Toscano – Pinheiro – Mira – Ferrandini, ABACAXI, Théo Ceccaldi, Joey Baron & Robyn Schulkowsky, Tomas Fujiwara, Zeena Parkins & Brian Chase, ERIS 136199 e Mary Holvorson.

Ao telefone com o Rimas e Batidas, Akinmusire explica como escreveu Origami Harvest, o seu mais recente projecto para a histórica Blue Note (editora que este ano assinala oito décadas de existência): a ideia de elementos opostos define o espaço conceptual de um trabalho em que se cruzam electrónica, hip hop, um quarteto de cordas e um músico que o New York Times descreveu como “o mais distinto, indefinível e, em última análise, satisfatório trompetista da sua geração”.

Aos 37 anos, o nativo de Oakland, Califórnia, entende bem a realidade americana e global em que se enquadra e explica-nos que mais do resistir a Trump é preciso mudar o mundo. A música é uma maneira de lá chegarmos e Ambrose parece apostado em fazer a sua parte desde que foi descoberto pelo saxofonista Steve Coleman, iniciando um percurso que já conta com cinco registos como líder e trabalho de sideman em discos de gente tão diversa quanto Esperanza Spalding, a Big Band do recentemente desaparecido Roy Hargrove, Jack DeJohnette, Wolfgang Muthspiel ou Brad Mehldau. Em 2001 estreou-se como parte dos Five Elements de Steve Coleman num álbum com o título Resistance is Futile. Em 2019 vem ao Jazz em Agosto defender a ideia oposta.



Permita-me que comece pelo belíssimo Origami Harvest. Electrónica, um quarteto de cordas, um rapper e você. Isso não é de todo um ensemble convencional de jazz. Quando levou a ideia à Blue Note, como é que eles reagiram?

Eu tenho tido muita sorte com a Blue Note até agora. Eles não ouviram o projecto antes de estar terminado. Resumindo: quando cheguei à Blue Note em 2011, eu fui a última pessoa que o Bruce Lundvall assinou. E originalmente eu não ia assinar por eles, mas uma coisa que ele disse na reunião mudou a minha forma de pensar. Ele disse: “O teu trabalho é fazer a música que tu gostas e o nosso trabalho é vendê-la”. E essa tem sido a minha relação com a Blue Note este tempo todo.

Quanto a projectos convencionais de jazz, eu não penso muito sobre isso, e acho que este álbum faz todo o sentido se se olhar para o conjunto da minha discografia. Existem cordas nos outros álbuns, vocalistas também. No meu primeiro álbum, eu tinha uma cantora de ópera. Por isso, não se pode dizer que o Origami Harvest aponte para muito longe da minha área de especialização.

Diga-me: como é que montou tudo? A música apareceu primeiro na sua cabeça e foi juntando tudo primeiro no papel ou entrou para este projecto com ideias já pré-definidas: “vou escrever para um quarteto de cordas, vou ter electrónica…”?

Primeiro comecei com a ideia de querer lidar com opostos das mais diferentes maneiras. E isso veio de pensar sobre a sociedade: raça e política; democratas e republicanos; esquerda e direita; preto e branco… Essas coisas que parecem opostas, mas que na verdade são a mesma coisa. Foi aí que começou. Depois comecei a pensar em como poderia representar isso com o ensemble. Na cabeça de maior parte das pessoas, um quarteto de cordas é o oposto de hip hop e electrónica, por isso coloquei quatro pessoas de um lado (eu, um rapper, um teclista e um baterista), e depois os quatro instrumentos de cordas no outro lado. E aí comecei a pensar em tirar o que pudesse estar no meio. Não existe nada no meio, por isso tirei o baixo da secção rítmica. Foi aí que começou: a pensar sobre a esquerda e a direita e sobre coisas que são tão opostas que quando as metes lado a lado acabam por se tornar uma unidade ou pelo menos são obrigadas a conversarem sobre as suas semelhanças.

Falando de opostos, faz sentido falar também, ainda a propósito da música neste álbum, de alta cultura e cultura popular, preto e branco, europeu e africano?

O meu ponto é que é tudo o mesmo. O que é alta cultura? O que é baixa cultura? Nós somos todos humanos. Nós não precisamos de ter estas diferentes linhas ou, pelo menos, temos que discutir em conjunto o que é que queremos dizer com isso. Acho que quanto mais essa discussão for tida, mais nós percebemos que é tudo o mesmo.

Existe, claro, um forte discurso político ao longo do disco e o jazz como resistência é quase uma necessidade neste momento. E isso é, basicamente, o tema do festival português em que vai tocar. Acha que colocar as pessoas a pensar sobre o que se está a passar é o seu papel ou marca estas posições porque não se pode dar ao luxo de ficar calado sobre assuntos que o preocupam?

Penso que é a mais a segunda parte. Eu falo destes assuntos porque é a minha realidade. É a minha vida. Quando eu saio de casa, estes são os meus medos, estas são as coisas com que lido. Sabe, muitas das pessoas com quem tenho falado sobre este álbum querem puxar para essa ideia de que isto é a minha forma de ir contra o Trump ou algo do género, mas tive que relembrá-los que eu já estava a fazer algo semelhante no primeiro álbum pela Blue Note, em 2011, e isso é pré-Black Lives Matter. É pré-Donald Trump na Casa Branca. É político se olhares de fora, mas, para mim e para pessoas que vivem vidas semelhantes, é apenas a nossa história.

Pode falar um pouco sobre a escolha dos músicos para o disco?

Bem, estes são os meus músicos favoritos. E a semelhança que eles todos partilham é que a qualquer momento eles podem fazer o oposto do que estão a fazer. Eles valorizam o bonito e o feio de forma igual, e isso é algo que eu acho que é realmente importante, não apenas musicalmente, mas também a nível pessoal. Nós vivemos numa sociedade em que somos encorajados a mostrar apenas o nosso lado bonito. E eu penso que a música e a arte no geral estão a começar a reflectir um pouco isso, por isso quis ter um ensemble com pessoas que valorizassem os dois lados.

[Escolhi] o MIVOS Quartet porque, ritmicamente, eles conseguem dançar de uma forma que lhes permite tocar com diferentes tipos de pessoas. Sam [Harris] é o meu companheiro de confiança — ele toca no meu quarteto. Gosto de tê-lo em todos os projectos que faço. O Kool A.D. é um rapper do qual sou fã há bastante tempo, e nem me sinto confortável em chamar-lhe apenas rapper. Ele rima, mas também representa, canta e muito mais. Ele é o narrador no álbum, mas infelizmente não tem feito os espectáculos ao vivo. Nós temos usado o Kokayi, que também tem os mesmos elementos e traz uma cena mais neo-soul para o palco, acabando por levar o projecto para um sítio diferente. Na bateria no álbum temos o Marcus Gilmore, mas para os concertos é o Justin Brown, que é facilmente o músico mais versátil que já conheci na minha vida. Ele toca com o Thundercat, toca no meu quarteto, tem o seu próprio projecto. Estes músicos são muito versáteis.

O quão detalhada foi a sua composição e quanto espaço para improvisação deixou aos restantes músicos? 

Neste projecto foi quase tudo posto no papel, excepto as palavras. As palavras para o álbum foram escritas, mas quando tocamos ao vivo é mais freestyle — e é isso que o Kokayi vai fazendo. Esse é outro elemento de oposição com o qual eu quero lidar. Eu quero ter estas peças bem compostas por um lado e depois ter outra pessoa a fazer o oposto do outro lado. Por isso sim, a secção de cordas está escrita, as partes de piano também. Não escrevi os grooves de bateria, mas as composições tornaram-nos basicamente subentendidos.

Eu ouvi a sua contribuição para o álbum de Kendrick Lamar, To Pimp a Butterfly, que foi incrível, e comecei a pensar se músicos portugueses da mesma esfera em que você se movimenta aceitariam este tipo de trabalho de sessão: tocar num álbum de um rapper. Como foi essa experiência? Tem aceite mais convites como este?

Bem, eu penso que para mim e para muitas das pessoas que vivem aqui não existem diferenças. Isto seria uma conversa muito longa…

É apenas música?…

Sim, é apenas música, mas é também música negra. Soul, música de igreja, jazz, hip hop — é tudo a mesma coisa. Todos os músicos que tocam nestes álbuns de rap são os mesmos que tocam na igreja. Um monte de músicos negros — Justin Brown, Robert Glasper, etc. — tocaram na igreja. Sou um afro-americano a tocar música negra (ou música que foi originalmente criada por negros), por isso tudo o que provenha daí é natural para mim. Estas pessoas são minhas amigas. Terrace Martin e grande parte destes músicos de hip hop. Nós crescemos juntos. Conheço-os desde que era adolescente e acho que todos temos experiências semelhantes. Por isso, acho que é engraçado quando alguém diz que eu toco jazz, mas que não toco hip hop. É a mesma coisa! [Risos] Só porque um tem palavras… qual é a diferença entre ouvir Andy Bey ou Joe Williams e Kendrick Lamar? Para além do ritmo, é a mesma coisa. Eu amo jazz e torno-me um historiador quando falo disso. Mas também amo hip hop. E ando a ouvir tudo o que sai do universo hip hop. Eu amo toda a música negra. Seria mais difícil para mim tocar música búlgara. Isso seria complicado. Eu não cresci a tocar isso e não cresci nessa cultura. Mas para mim faz sentido tocar tudo o que vem da minha cultura.


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