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Fotografia: Ebru Yildiz
Publicado a: 12/04/2019

Songs of Resistance, álbum que o músico norte-americano editou em 2018, é um sinal dos tempos.

Marc Ribot: “Só canto em situações de emergência. E estamos num momento de emergência!”

Fotografia: Ebru Yildiz
Publicado a: 12/04/2019

Songs of Resistance, álbum que Marc Ribot editou em 2018, é um sinal dos tempos. Álbum de canções políticas, Songs of Resistance coloca no presente palavras que recuam a 1942, quando o mundo vivia a agitação de uma feroz guerra global. A guerra hoje é outra, embora não menos dramática. Contra o tempo, contra a apatia, contra o abuso de poder, as alterações climáticas, a indiferença. Marc Ribot confessa-se um activista, alguém que não acredita que um artista se tem que limitar à sua arte e que defende uma acção directa em suporte das causas que importa defender. Faz sentido que recaia sobre si a responsabilidade de abrir uma edição do Jazz em Agosto, festival da Fundação Calouste Gulbenkian, que se apresenta sob o signo da resistência.

Com uma longa e ilustre carreira, Ribot tem um currículo de absoluto luxo que lhe permitiu tocar com gente tão diferente quanto Tom Waits, Elvis Costello, Caetano Veloso, Sam Phillips, Bill Frisell, The Lounge Lizards, John Zorn, Allen Toussaint, Mike Patton ou, entre tantos outros, Wilson Pickett, como perceberá quem ler as suas palavras mais abaixo.

Mas não foi apenas como sideman que Marc Ribot se notabilizou. Com uma vasta discografia em nome próprio que recua a 1990, o guitarrista lançou em etiquetas tão importantes como a Island, a Atlantic, a Tzadik ou a Epitaph e liderou projectos como Los Cubanos Postizos ou Ceramic Dog, explorando todo o espectro musical que se estende das margens do jazz aos abismos noise do rock evidenciando sempre um guitarrismo de classe, generosamente inventivo e pertinente para cada contexto em que se pudesse encontrar.

Tem igualmente sido parte importante da equação em permanente evolução de Tom Waits, músico com quem gravou álbuns como Rain Dogs, logo em 1985, ou, entre tantos outros, o bem mais recente Bad As Me, de 2011.

A conversa telefónica aconteceu em Novembro último, quando Ribot se encontrava em viagem pela Europa. Falou-se de música e de resistência e Ribot não poupou nas revelações: explicou-me o que faz com os tomates que Tom Waits cria na sua horta e que lhe envia todos os anos, ou o que aconteceu quando em 1982 chegou a Portugal para tocar com Wilson Pickett no Coliseu dos Recreios. Enganou-se na espécie floral que serviu de símbolo à nossa revolução, mas parece ter acertado em tudo o resto…

A 1 de Agosto próximo, Marc Ribot apresenta as suas canções de resistência ao vivo na noite de abertura do Jazz Em Agosto, com um concerto no Anfiteatro ao Ar Livre da Gulbenkian.



O Brasil elegeu um presidente radical de extrema direita, Trump continua no poder e a exercê-lo com vigor, não olhando a meios para impor uma agenda que é perigosa. As canções de resistência são mais importantes do que nunca?

Não sei se as canções de resistência têm alguma importância, na verdade, mas penso que resistir ao fascismo é mais importante do que nunca. Penso que o presidente que foi eleito no Brasil é um fascista. Penso que Donald Trump e o movimento que o está a sustentar são fascistas e penso que é necessário resistir a isso tudo.

O que é que veio primeiro, as canções que querias incluir no álbum ou os artistas com quem as querias interpretar?

Bem, diria que primeiro apareceram as canções, mas a lista era inconclusiva, percebes? Estava sempre a mudar e aberta a novas ideias vindas dos artistas e dos músicos com quem estava a trabalhar. Há muitos anos que me interesso por canções de trabalho e por canções do Movimento dos Direitos Civis e canções de resistência de movimentos anti-fascistas europeus. Por isso algumas destas canções eu já as conhecia antes e outras eram novas para mim e eu acabei por pegar nalgumas delas, tocá-las para os artistas e quando eles se ligavam a alguma em particular essa acabava por ser escolhida. Depois para certos artistas eu já tinha ideias definidas e quando falei com eles sugeri-lhes logo algo muito concreto. Foi o caso do Tom Waits que gostou logo da ideia de pegar no “Bella Ciao”.

Tenho um par de questões sobre isso, mas permite-me que te pergunte antes outra coisa: o Woody Guthrie tinha a frase “esta máquina mata fascistas” escrita na sua guitarra. Achas mesmo que este tipo de canções tem uma força intrínseca capaz de mudar realidades?

Não me parece. Penso que a música pode representar um maravilhoso papel e ajudar as pessoas a terem coragem e ajudar as pessoas que já estão engajadas com alguma causa a sentirem-se menos sozinhas. O que eu faço nos Estados Unidos hoje não é só tocar música. Neste momento não estou nos Estados Unidos, mas se estivesse andaria a bater à porta das pessoas, estaria a trabalhar directamente para apoiar candidatos democratas e mesmo não estando nos Estados Unidos agora o que eu faço à distância é o mesmo trabalho, mas por telefone: ligo às pessoas uma a uma. É desse tipo de envolvimento que precisamos agora e a música pode co-existir com esse tipo de acção. A música tem de facto um papel para desempenhar, fazer com que as pessoas se sintam menos sós. A canção “We Are Soldiers in the Army” que incluí no Songs of Resistance, fizemo-la à maneira free jazz porque é isso que somos. Originalmente era uma canção de igreja, mas foi usada por pessoas durante o Movimento dos Direitos Civis que a cantavam quando estavam a ser presas. Fazia com que as forças policiais soubessem que as pessoas nas ruas continuavam a apoiar quem estava a ser preso, e fazia com que as pessoas sozinhas nas suas celas de prisão e que não conseguiam ver mais ninguém soubessem que os outros prisioneiros também as apoiavam e que podiam juntar a sua voz e sentirem-se menos sós. E é o mesmo hoje. Não estamos sozinhos na História e temos a companhia de amigos do passado que viveram dificuldades como nós e essas pessoas foram de facto grandes pessoas.

Mudemos o foco. E quanto aos alvos das canções? A dada altura, em “Rata de dos Patas”, escuta-se: “Donald Trump, I’m Talking To You”. Consegues imaginá-lo a ficar vermelho de fúria ao ouvir uma canção assim? Achas que este tipo de pessoas chega a ouvir as canções que lhes são dirigidas e que pensam: “bem, é mesmo sobre mim que estão a cantar”?…

Não creio que uma canção seja capaz de mudar as ideias de alguém. Mas, tal como eu disse, se conseguir fazer com que aqueles de nós que estão na luta durem nem que seja mais um minuto na linha da frente, então acho que fizemos algo de bom.

Não sei se estás a par da nossa história recente, em Portugal, mas as canções desempenharam um papel importante na nossa revolução de 1974…

Sim, eu lembro-me. Sabes, já sou algo velho, por isso lembro-me da revolução das rosas e lembro-me de estar em Portugal… Lisboa foi uma das primeiras cidades que visitei quando comecei a andar na estrada, em digressão. Estive em Lisboa em 1982, numa digressão com o Wilson Pickett e lembro-me de descer a Avenida da Liberdade e não tinha passado ainda assim tanto tempo desde a revolução e continuava a sentir-se bem que se estava num país que tinha acabado de conquistar a sua liberdade e isso era bonito.

Desconhecia esta história: vieste cá com o Wilson Pickett?

Sim, em 1982.

Incrível…!

Pois, acho que nunca tinha falado sobre isso porque nunca ninguém tinha perguntado. Sim, essa foi a minha primeira vez em Lisboa e tive algum tempo livre, porque se bem me lembro o Wilson perdeu um avião e por isso acabámos por não tocar. Foi uma digressão muito louca. Não vou falar mal dos mortos, mas o Wilson, que era um grande músico, andava fora de si. Ele estava completamente paranóico e a meter montanhas de coca, o que nunca ajuda, sobretudo quando já se sofre com paranóia. Sim, foi uma digressão muito maluca. E às vezes até violenta.

Mas pronto, tivemos alguns dias extra em Lisboa e nunca os esqueci. Continua a ser um dos meus lugares favoritos no mundo. Muito parecida com Nova Iorque… até hoje em dia. É uma cidade em que se misturam raças, é funky como Nova Iorque, não é tão rica como as cidades do norte da Europa, e mesmo que haja muito dinheiro agora em Nova Iorque, nunca foi o caso dos bairros em que vivi…

E outra coisa em comum com Nova Iorque é que em Nova Iorque já não há rendas controladas e portanto é uma cidade mais difícil hoje. Penso que se passa o mesmo em Lisboa, não?

Sim, há um grande debate agora em torno dos efeitos da gentrificação e do turismo que tornaram quase impossível habitar o centro da cidade.

Pois, por vezes isso é difícil de parar, mas em Nova Iorque pelo menos a dada altura as leis de estabilização das rendas impediram as pessoas de serem expulsas das suas casas. Isso foi bom porque permitiu erguer comunidades reais perto do centro da cidade enquanto em muitas outras cidades sem esse tipo de protecção passou a existir uma espécie de Disneylândia só com casas para os ricos.

Bem, se isso significa algo a Madonna tem estado a viver em Lisboa no último par de anos. Se calhar para ela somos uma espécie de Disneylândia…

Bem, sabes, o facto da Madonna viver aí não significa que todos os seus vizinhos sejam ricos [risos].

Exacto. Pelo menos não como ela… Bem, expressaste ambivalência em relação a este tipo de projectos, de música com carácter político vincado, mas fizeste-o de qualquer maneira, pesando pós e contras e tomando a decisão de avançar fosse como fosse…

Sabes, essa ambivalência não se manifestou apenas em relação à dimensão política da música, mas também em relação a aspectos formais e artísticos, como o cantar. Não sou o melhor cantor do mundo e foi por isso que procurei ter outras pessoas a cantarem neste disco. A minha voz é tipo um queijo muito forte, sabes? Algumas pessoas gostam e outras nem por isso [risos]. E como um queijo muito forte, o seu carácter está a ficar ainda mais intenso com a idade [risos]. Não consegui aprender a torná-la mais agradável.

É preciso aprender a gostar de ti, portanto.

Bem, eu digo às pessoas que só canto em emergências. E eu penso que vivemos uma emergência. Penso que todos precisamos de… quando enfrentamos uma ameaça de real fascismo, todas as pessoas que se opõem a isso precisam de juntar esforços e desde o início que deixei muito claro que lá por ser artista não me iria colocar de lado. A razão que me leva a hesitar e a ser ambivalente é porque penso que há muitas formas de se ser político na música e dizer coisas abertamente políticas é apenas uma delas. Eu respeito os meus amigos… talvez lutar contra a regra dos compassos no sistema tonal também seja parte da resistência, não sei, mas senti necessidade de falar muito directamente sobre o que se passa e também não escondo que ficarei muito feliz quando tudo isto terminar e eu possa voltar à música instrumental, tal como muitas outras pessoas.

Algumas das pessoas com quem trabalhaste representam uma extraordinária conquista. Conseguiste, por exemplo, que o Tom Waits fizesse a sua primeira gravação num par de anos. Como é que o convenceste?

Sabes uma coisa? Não foi nada difícil. Eu e o Tom trocamos e-mails…

A vossa relação é antiga.

Sim, somos amigos. Ele agora passa muito tempo a trabalhar no seu jardim e na horta e todos os anos ele e a Kathleen (Brennan, mulher de Tom Waits) mandam-me um frasco de tomates. Por isso não foi preciso estar a convencê-lo nem nada. Liguei-lhe, disse-lhe o que íamos fazer, disse-lhe: “há um par de músicas em que penso que poderias soar bem”. Mandei-lhe as músicas e ele respondeu a dizer que gostava da “Bella Ciao”. Por isso fui até lá, sabes que ele vive perto de São Francisco, lá no meio do campo, conduzi até lá e gravámos numa tarde, só nós os dois. Eu toquei a maior parte dos instrumentos e ele cantou. A Kathleen estava lá. Foi um dia muito tocante porque o disco já estava quase todo terminado, para aí há um ano, e demorou tudo muito tempo por causa da parte de negócio, de coisas que eu não controlo. Mas gravámos em Setembro de 2017 e no caminho para lá, na noite antes de chegar, fiquei num lugar perdido no campo e não havia sinal de Internet por lá. Por isso quando me levantei no dia seguinte para me por a caminho de casa do Tom não ouvi as notícias: foi o pior dia dos fogos florestais na Califórnia e a cidade logo depois do sítio onde o estúdio se localizava ardeu quase toda na noite anterior. Quando estávamos a gravar havia ainda muito fumo no ar, o céu estava negro, a autoestrada estava cortada, sabes, foi uma loucura. Gravámos durante toda a tarde, mas também estávamos a ouvir as notícias porque era bem possível que a qualquer momento fosse dada ordem de evacuação. Foi bom estarmos a gravar, mas tive sempre presente a ideia de perigo. Estes fogos foram em parte causados pelo aquecimento global e isto não é uma piada. Isto está a matar pessoas.

Desculpa mudar o tom, mas estou muito curioso. Quando recebes os tomates da horta do Tom e da Kathleen, para que é que os usas?

Normalmente faço pasta. A minha namorada é italiana e ela ensinou-me como é que se faz boa pasta. Começa-se com um pouco de azeite, alguns alhos, anchovas, alguma pimenta e depois acrescentas os tomates. Quando o molho fica pronto adicionas a massa…

Não vais acreditar, mas esse foi exactamente o meu almoço hoje…

Incrível [risos].

Também gostei muito da canção com a Me’Shell NdegéOcello, há anos que ela é uma das minhas cantoras favoritas…

Eu e a Me’Shell conhecemo-nos há muitos anos. Conhecemo-nos quando ambos tocámos num disco do Joe Henry e percebemos que tínhamos um amigo em comum, o cantautor Marc Anthony Thompson que também é conhecido como Chocolate Genius. A Me’Shell é uma grande artista e uma óptima pessoa, mas nós não estivemos realmente juntos… estou a revelar os segredos do disco: ela estava na Costa Oeste a trabalhar noutros projectos na altura, mas como eu queria mesmo muito que ela fizesse isto, ela foi muito simpática, arranjou tempo, marcou ela mesmo o estúdio e por isso é uma sorte ter conseguido tê-la no álbum. E ela sabe que eu sinto isso. Toda a gente que tocou neste disco foi incrível. Todas as pessoas perceberam a necessidade de fazer estas canções e todos fizeram um grande trabalho.

A Syd Straw é outro belíssimo exemplo. Trabalhaste no primeiro disco dela, há 30 anos.

Ah, tu és uma pessoa com uma grande memória.

Lembro-me de ter recebido o disco dela em 1989. Sabes porquê? Foi o ano em que comecei a minha carreira jornalística e a crítica ao Surprise foi uma das primeiras que escrevi.

Bem, espero que tenhas gostado dele [risos]. Eu e a Syd também somos amigos há muito tempo… Outra situação: ela vive em Vermont. Parece que estávamos ambos no mesmo estúdio, é assim que soa, mas na verdade ela estava em Vermont e eu gravei o tema sozinho e não tinha a certeza se o haveria de incluir no disco e perguntei à Syd se ela poderia dar uma ajuda. Ela gravou a voz e por isso eu não tive que aparecer…

Última pergunta: não estás em Nova Iorque, andas em digressão com os Ceramic Dog? Ou o que é que andas a fazer?

Essa é uma boa pergunta [risos]. Neste momento, estou a descansar com a minha namorada em Itália, mas fiz alguns concertos com uma banda sérvia chamada Fish & Oil. Fiz um programa de TV em Roma chamado Propaganda. Vou estar envolvido aqui num projecto com o compositor Danielle Del Monaco. E é isso. Mantenho-me ocupado…


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