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Fotografia: Davide Monteleone
Publicado a: 12/09/2022

Compreender a tradição e servir um propósito.

Tigran Hamasyan: “Sinto que estou quase sempre fora da caixa do mundo do jazz”

Fotografia: Davide Monteleone
Publicado a: 12/09/2022

Tigran Hamasyan está sentado numa sala espaçosa do que parece ser uma casa antiga. O tecto mostra as pesadas vigas de madeira que sustentam o piso superior e há um par de quadros emoldurados pendurados na parede atrás de si. Parece um espaço de trabalho, mas, de repente, a nossa chamada de Zoom é interrompida quando uma criança pequena entra na sala. O pianista arménio ri-se, pede desculpa e explica que o seu filho só queria que ele soubesse que ele já estava acordado. Essa harmonia doméstica com que atravessou o período pandémico serviu bem Tigran porque lhe proporcionou o cenário perfeito para o seu mergulho no cânone americano, uma oportunidade que ele saudou e que aproveitou para abordar as suas canções favoritas de grandes nomes americanos como Richard Rodgers, Charlie Parker, Jerome Kern, David Raksin e vários outros sem nunca, ainda assim, permitir que o compositor que existe em si desaparecesse completamente. Ele confessa ter saudades de uma era que, por ser demasiado novo, nunca viveu – Tigran nasceu em Gyumri, Arménia, em 1987. StandArt é o seu primeiro álbum de música americana e sucede a uma série de títulos com as suas próprias composições e abordagens à música popular arménia, incluindo o bem recebido The Call Within de 2020. Aqui, o pianista presta homenagem à música que conquistou o seu coração pela primeira vez quando ele próprio era apenas um miúdo a correr para o escritório do seu pai para o avisar que já estava levantado e, quem sabe?…, pedir permissão para se sentar ao piano e mostrar alguma nova melodia que poderia ter acabado de aprender e que falava de uma terra distante.

StandArt foi lançado há alguns meses pela Nonesuch e apresenta Justin Brown na bateria e Matt Brewer no baixo com os convidados Ambrose Akinmusire, Mark Turner e Joshua Redman a marcarem presença em quatro das nove faixas do álbum.

Entretanto, Tigran Hamasyan tem dois concertos agendados para Portugal: a 5 e 6 de Dezembro próximo, o pianista levará The Call Within até, respectivamente, Casa da Música e Centro Cultural de Belém fazendo-se acompanhar por Arthur Hnatek e Evan Marien.



Então, poderia começar por me contar o seu primeiro encontro com o conceito do standard? Estudou jazz desde muito jovem, por isso deduzo que foi nessa altura que descobriu pela primeira vez esse cânone…

Apesar do meu pai me ter influenciado muito com música rock clássica, comecei com o jazz, de facto. A minha primeira educação musical propriamente dita foi dentro do jazz. Estudei com um grande pianista e compositor chamado Vahagn Hayrapetyan, que é o maior pianista da Arménia. Ele estudou em Nova Iorque com Barry Harris, e realmente trouxe esse estilo para a Arménia onde começou a ensinar, fazendo masterclasses, aulas particulares. O meu tio, que foi quem basicamente se certificou que eu tivesse uma educação musical adequada, ouviu falar de Vahagn e levou-me até ele. Isto aconteceu quando eu tinha 11 ou 12 anos: estudei com ele durante 1999 e 2000. Nessa altura, eu gostava muito de bebop, e escrevia peças “ao estilo de”, digamos, Elmo Hope e Monk e todos estes grandes músicos. Eu também estava exposto a todos estes grandes standards americanos. E estes agarraram-me imediatamente: melodias absolutamente únicas. Por exemplo, “I Should Care” e “Laura” têm melodias tão bonitas que me senti encantado por elas desde o início. E elas ficaram comigo, eu continuei a explorá-las porque sabia que um dia faria algo com essas melodias. E, sabe, ao lidar com o confinamento do COVID, senti a necessidade de abordar este repertório, de praticar novamente e de me desafiar, tentando novas harmonias, improvisando sobre elas. E lentamente comecei a construir estes arranjos densos e depois de ter refeito cinco ou seis canções, a ideia de as tornar num disco tornou-se clara.

Eu penso no standard como uma espécie de esperanto musical, uma língua franca, uma língua que todos os músicos partilhavam e que facilitava a comunicação: se você fosse um solista itinerante, seria fácil improvisar um espectáculo com qualquer banda residente com que se cruzasse quando era contratado para diferentes clubes. Mas eu penso que essa ideia foi alterada ao longo dos anos. O standard tornou-se o trabalho resguardado dentro da redoma no museu do jazz…

Bem, eu já tinha a experiência de retrabalhar a música popular arménia, que é ainda mais um artefacto de museu, certamente um artefacto “mais antigo”: se você se aproximar de algo assim, você deve, realmente… mostrar respeito. E especialmente com música religiosa — estará em apuros se tocar nessa música. Deve compreender a tradição e as regras que a acompanham, mas depois deve quebrá-las, caso contrário não faz sentido, especialmente com a música popular arménia — ou qualquer outra música popular, já agora — porque é música monódica sem harmonia e, se acrescentar harmonia, isso deve servir um propósito, deve servir a própria canção. Muitas bandas hoje em dia na Arménia estão apenas a “usar” estas raízes folclóricas para obter popularidade. Para mim, isso sempre significou que eu tinha que realmente entrar fundo na música. E isso vale para o folclore ou qualquer outra música. Sinto sempre que tenho de inventar estruturas harmónicas e rítmicas que vêm do meu mundo interior e não necessariamente do que quer que seja que possa estar na moda. Por isso, basicamente submeti estes standards ao meu próprio olhar que foi moldado pelas minhas experiências e pelas ideias que tenho vindo a desenvolver ao longo dos anos com as minhas próprias composições ou arranjos de música popular arménia.

Fale-me de The Call Within: o disco chamou a atenção da imprensa de jazz, mas também de publicações prog rock e afins… Isso surpreendeu-o?

Honestamente, desde que Mockroot saiu em 2015, as pessoas começaram a dizer-me que muitas bandas de rock progressivo estavam a mencionar a minha música nas suas entrevistas. Bandas como Animals as Leaders, Periphery. E ainda que o rock não me fosse completamente estranho, a verdade é que nunca tinha escutado estas bandas até descobrir que elas estavam a ouvir a minha música. Mas isso deixa-me contente, por ter a atenção dessa cena, porque muitas vezes sinto que há mais apreço pela minha música vinda do mundo não-jazz do que o contrário — eu nunca sou falado na Downbeat ou o que quer que seja. Sinto que estou quase sempre fora da caixa do mundo do jazz.

Mudou de músicos para o novo álbum. Arthur Hnatek e Evan Marien deram lugar a Matt Brewer e Justin Brown. Porquê a mudança e o que o levou a chamar a estes dois senhores em particular?

Eu queria mesmo ter uma banda acústica, mas isso é apenas uma das razões. Justin e Matt são simplesmente incríveis, e eu já queria fazer algo com eles há muito tempo. Conheço o Justin desde que andava na faculdade, há 12 ou 13 anos. Tenho acompanhado a sua carreira e penso que ele é um baterista único e incrível: os seus ouvidos são inacreditáveis e ele tem um grande sentido de fluidez quando toca. Eu não tinha experimentado algo assim antes. Essa singularidade do seu tocar funcionou realmente para esta música porque é ritmicamente desafiante. É como esta coisa de fornecer informação constantemente, mas esta informação está sempre a servir o que estamos a fazer juntos, e nunca se atravessa no caminho. E ambos podem ouvir-se um ao outro a um nível muito profundo. Começámos a tocar, no primeiro ensaio — bem, na realidade tivemos apenas dois ensaios –, e de imediato senti que estava tudo a fluir incrivelmente, porque o Matt também tem um grande domínio sobre a forma como toca, nunca se atravessa à frente de ninguém apesar de estar constantemente a fornecer informação: pode ser muito agitado ou muito forte, mas nunca me fez pensar “oh, vamos apenas acalmar agora”. Assim, ao ouvir o som da banda eu percebi que iria funcionar mesmo que nunca tivesse tocado com esta configuração antes.

Receberam de antemão as suas partituras?

Sim, forneci-lhes partituras e — isso tornou-se uma tradição para mim –- também lhes enviei algumas maquetes básicas que fiz no meu teclado, com bateria e baixo apenas para lhes dar uma ideia, porque estava à procura de alguns padrões de bateria muito específicos. E porque eles já conheciam a minha música, eles sabiam exactamente o que eu estava à procura. Quando liguei ao Justin, ele disse-me: “man, eu estava a ouvir o The Call Within e a pensar em você há apenas uma semana”. Portanto, há esta ligação. Eu acho que os músicos se reúnem por algum tipo de força.

O universo sabe exactamente o que fazer, com certeza. Pode falar-me sobre as sessões do álbum? Foi você mesmo que conduziu a produção durante três dias em Abril do ano passado, em Los Angeles, certo?

As sessões decorreram muito bem, mesmo estando nós imersos naqueles tempos de COVID, a usar máscaras, tendo sempre muito cuidado. Mas foi óptimo de qualquer maneira, muito divertido. Foi uma experiência mágica, improvisar com um trio, um quarteto às vezes, comigo a acompanhar Joshua Redman, Mark Turner ou Ambrose Akinmusire. Foi muito exigente, mas também um enorme prazer tocar com aqueles rapazes.



Porque é que escolheu Joshua Redman, Mark Turner e Ambrose Akinmusire? Bem, obviamente porque eles são incríveis, mas acho que haverá algo mais a justificar a opção…

Há muito tempo que ouço a música do Joshua e do Mark. E como o Joshua está na mesma editora que eu, pensei que isso me daria um bom ângulo para finalmente o ter num dos meus discos e este projecto provou ser a oportunidade perfeita para isso. Então, liguei-lhe, ele disse que estava disponível e como vive na área da baía de São Francisco isso facilitou a organização da sessão. Ensaiámos no dia anterior e foi só isso. Quer dizer, eu tinha tocado uma vez com o Joshua quando tinha 16 anos, numa sessão de improviso em França num festival qualquer, e mantivemo-nos em contacto. Com Ambrose foi um pouco diferente: eu tinha-o conhecido uma vez quando estava na faculdade em Los Angeles. Fizemos três concertos juntos, com um quarteto em que trocámos os membros da banda. Tocámos com o Sam Minaie da minha banda e o Justin da banda dele no Festival de Jazz de Montreal, uma experiência realmente fantástica. Depois, há cerca de três anos, convidei-o para fazer dois espectáculos em duo que correram muito bem. Então, tinha em mente gravar algo com ele o mais rápido possível. Quando este projecto surgiu, liguei-lhe e foi um pouco difícil com a programação, mas finalmente conseguimos que acontecesse. Para o Mark, foi apenas uma semana antes da gravação que Justin ou Mark Guiliana me disseram que o Mark se tinha mudado para Los Angeles. Peguei nos contactos dele e escrevi-lhe, disse-lhe que ia entrar no estúdio dentro de uma semana e perguntei-lhe se gostaria de se juntar a mim para uma ou duas canções. Ele concordou e foi só isso. Estou muito feliz por termos conseguido fazer “All the Things You Are” juntos, porque foi um momento muito especial.

O quadros no encarte do álbum são incríveis: fale-me sobre o artista.

Estou tão contente por me ter perguntado. É a primeira vez que alguém me pergunta numa entrevista sobre a arte da capa e essa é uma parte tão importante do disco. Ele é uma influência tão grande em mim como ser humano. Chama-se Gaguik Martirosyan e é um artista incrível que eu conheço desde 2006 ou 2007. Era amigo do meu tio e da minha família que vivia em Paris. E ele é um daqueles tipos que se fecha no seu estúdio muito simpático e apenas pinta. Vivi em Paris durante pouco tempo e cada vez que passava pelo seu estúdio ele tinha toneladas de novas criações, estava sempre a desenvolver novas ideias e era muito prolífico: tem uma maneira de contar histórias com uma abordagem mínima e cria todo um mundo com sinais e linhas simples. É realmente fascinante ouvi-lo falar sobre as suas pinturas também. E ele é um daqueles tipos que diz que não se importa de pintar para turistas ou o que quer que seja, mas não vai vender o seu trabalho sério.

Ok, um dos problemas que você deve ter enfrentado foi escolher o repertório. Algumas destas canções devem estar ligadas a algumas histórias curiosas da sua vida: quando as ouviu ou tocou pela primeira vez, por exemplo…

Bem, deve haver 30 ou 40 standards que são mais especiais para mim do que todos os outros. Estas são canções muito pessoais para mim. Sou muito nostálgico com a era do bebop e o início do século XX, aquela época em que o jazz estava a nascer e a música clássica estava a evoluir para novas formas. Compositores como Shostakovitch, Ravel, Debussy e Prokofiev são também grandes influências para mim. Esse período entre os anos 20 e 50 é muito importante para mim. Prokofiev estava na sala a ouvir Bud Powell ou Stravinsky estava a ouvir Bird… Isso faz-me sonhar em voltar a esse tempo e experimentar toda aquela música em primeira mão. Portanto, acho que as minhas escolhas para este disco estão muito ligadas a esse sentimento de nostalgia. Por exemplo, “I Should Care”, “Laura”, “Softly, as in a Morning Sunrise” recordam emoções muito específicas. Estas são todas verdadeiramente especiais e muito pessoais. Não tenho a certeza se consigo explicar melhor.

Na capa interior do álbum incluiu uma lista de grandes nomes do cânone do jazz, uma lista muito específica de génios incontestados. Por exemplo, John Coltrane…

John Coltrane e Thelonious Monk são provavelmente as minhas duas maiores influências no jazz. E talvez também Miles Davis. O que Coltrane fez no espaço de… digamos, oito anos, até onde chegou e quantas invenções criou durante esse período, é simplesmente espantoso. Mas, ao mesmo tempo, a sua música é sempre tão comovente. Este é um tipo que simplesmente atirou todas as regras fora e foi para outra direcção, nunca se preocupando com o que as pessoas pensavam — quer dizer, ele até foi vaiado. Mas ele era um verdadeiro artista e a sua arte foi, de certa forma, uma dádiva divina. Há um boxset das suas digressões europeias durante ’62 e ’63 e para mim durante esse período a sua música era simplesmente magnífica. Passei muito tempo a transcrever os seus solos, ele é esse tipo de influência. Mesmo quando ele está a tocar de forma muito livre, as transcrições mostram que ainda que tudo aquilo faz todo o sentido, musicalmente.

Chick Corea, que recentemente deixou esta dimensão, também é mencionado.

Outra influência chave. Ele também foi um grande compositor, aquelas peças para piano solo, e a forma como as executou, tiveram um grande impacto em mim, especialmente no meu lado composicional. Na minha opinião, ele destaca-se como um compositor no mundo do jazz. E ele tem um sentido de ritmo e fluidez que é tão único. Comprei o seu último álbum de trio quando estava em Los Angeles a arranjar os standards para este disco, o duplo com Christian McBride e Brian Blade que ele fez quando tinha talvez 73 ou 75 anos de idade e parecia ter 20 anos, com som e precisão e ritmo inacreditáveis. Não há uma única parte que me tenha feito pensar: “sim, é bom, mas Chick está a ficar velho”. Pelo contrário, comecei a perguntar-me a mim mesmo: “como é isto sequer possível?” Não faço ideia de como ele conseguiu ter esse tipo de controlo e a sua abordagem harmónica é simplesmente linda.

A lista apresenta muitos outros pianistas que você mantém perto do seu coração: McCoy Tyner, Thelonious Monk, Keith Jarrett…

Sim, Keith é outro artista muito querido para mim, transcrevi tantos dos seus longos solos – como fiz com Coltrane, e Chick Corea, Herbie também… E não é que eu não goste do seu trabalho a solo, é genial, claro, mas sou um grande fã dos seus quartetos europeus e do seu trio desde os anos 80 até meados dos anos 90. A forma como eles tratam os standards sempre foi uma inspiração, não seria justo não mencionar o seu nome, de facto. Transcrevi todos aqueles standards que ele tocou, estudei-os de perto. Quando comecei a explorar a música popular pós-bop e a música arménia, percebi que tinha de começar do zero. Quer dizer, o bebop ensinou-me a improvisar, mas quanto ao conhecimento harmónico e rítmico, tive de voltar ao início e comecei a estudar os pianistas pós-bop que tinham outras abordagens, mais modais, artistas que utilizavam harmonias de blocos ou de clusters e Keith foi uma parte importante disso.


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