pub

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/03/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #88: Binker & Moses

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/03/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Binker & Moses] Feeding The Machine / Gearbox

Não façam confusões: Binker Golding e Moses Boyd são dois pesos pesados: o saxofonista tem um currículo amplo, tendo tocado com Zara McFarlane, Ashley Henry, Greg Foat ou Sarah Tandy – nomes recorrentes quando se consulta o departamento de recursos humanos da “nova” cena jazz britânica -, mas também com o veterano trompetista americano que fundou a Strata East, Charles Tolliver (participa no seu mais recente álbum de originais, Connect) – e para lá de tudo isso ainda dirige o seu próprio quarteto; por seu lado, o baterista que nos visitou recentemente (integrou o cartaz do festival ID_NOLIMITS) já inscreveu o seu nome em fichas de créditos de trabalhos de gente tão distinta quanto Little Simz, Sons of Kemet, Soweto Kinch, Theon Cross, Floating Points ou Four Tet – além disso, Boyd grava também em nome próprio, tendo aliás conseguido que o seu álbum Dark Matter fosse nomeado para um Mercury Prize.

Feeding The Machine, o novo trabalho da dupla, sucede a Escape The Flames de 2020 e é já o quarto registo de originais na sua discografia, sendo que editaram ainda Alive in the East?, álbum que documenta uma passagem pelo Total Refreshment Centre de Londres em 2017. Binker integrou ainda o colectivo Exodus conduzido por Moses Boyd, entidade que além de um par de EPs também lançou o fantástico Displaced Diaspora em 2018. O duo chega, portanto, a 2022 com uma larga experiência de trabalho em conjunto, facto que se reconhece logo que Boyd se junta ao saxofone de Golding e ao diáfano manto de electrónicas desfiado por Max Luthert em “Asynchronous Intervals”, a faixa de abertura do novo álbum: espalhando raios de luz a partir dos címbalos e gerando pequenos tremores de terra com os timbalões, o baterista impulsiona o saxofonista até às estrelas, impondo de imediato o tom exploratório do álbum.

Ao contrário do que sucedia em Dem Ones (o primeiro álbum da dupla, que já data de 2015) e Escape The Flames (2020) – e, ao invés, tal como aconteceu em Journey to The Mountain of Forever, disco de 2017 em que participavam músicos como Evan Parker, Yussef Dayes, Sarathy Korwar, Byron Wallen ou Tori Handsley –, em Feeding The Machine há lugar para a interferência na fórmula original de dois elementos com a adição de Max Luthert, um contrabaixista que normalmente acompanha Moses Boyd ao vivo (esteve ao seu lado na apresentação no Centro de Congressos do Estoril), mas que aqui utiliza sintetizadores modulares como quem se diverte a atirar grãos de areia para dentro de uma engrenagem bem oleada.

O papel de Luthert é determinante neste disco e oferece uma nova nuance aos recentes cruzamentos de jazz e electrónica – e casos notórios e notáveis nesse domónio serão os álbuns de Pharoah Sanders com Floating Points, Promises, e de Nala Sinephro, Space 1.8: a granular massa electrónica que Luthert conjura não pretende ser “moldura” ou mero “cenário” para a orgânica e feérica interacção de Boyd e Golding, antes um elemento disruptivo, servindo muitas vezes para deslocar o centro de gravidade da música e interferindo directamente nos instrumentos acústicos ao vergar o seu o som com mutações texturais por via da sua circulação pelos diferentes circuitos dos módulos que utiliza, como tão bem fica explicito em “Active-Multiple-Fetish-Overlord”: “Resumidamente”, contou Golding recentemente à Uncut, “queríamos que ele distorcesse completamente o som nalgumas partes e que criasse uma paisagem noutras”. Max Luthert, é importante sublinhar, seguiu à risca as instruções recebidas.

Este álbum foi gravado numa intensa sessão nos Real World Studios de Peter Gabriel por Hugh Padgham, um mestre dos estúdios que garante à dupla de instrumentistas acústicos um som amplo, quase soando a espaços como se tivesse sido captado numa catedral, mas simultaneamente temerário ao nunca procurar conter a fragmentação desse carácter quando a electrónica de Luthert faz desmoronar a monumentalidade sónica.

O álbum arranca com a mais longa peça do alinhamento, a já mencionada “Asynchronous Intervals” que se estende para lá dos 11 minutos e que se começa a desenrolar em terreno quase ambiental e vai gradualmente assumindo uma inquietação que agita quem a escuta, com o saxofone de Binker Golding a comandar autoritariamente uma expedição às mais remotas estrelas, com um som que chega a ser estridente. A superior classe de Moses Boyd é exposta em “Feed Infinite”, um tema que soa ao que poderia ter acontecido se John Coltrane, Tony Allen e Suzanne Ciani alguma vez tivessem “jammado” juntos: propulsão feita em igual medida de precisão milimétrica e de inventiva liberdade, saxofonismo de plena assertividade e bleeps e bloops que preenchem os espaços como se fossem pontos de luz na escuridão. No final da viagem, com o tema “Becaeuse Because” a ecoar através do sopro de Golding orientalismos do tempo em que o jazz buscava novas paragens espirituais, fica-se com a sensação de que acabámos de emergir de um profundo oceano de águas revoltas, pleno de vida, mas não daquela que nos habituámos a ver nos mágicos documentários sobre vida marinha, antes formas orgânicas nunca antes vislumbradas ou documentadas, como se esse oceano banhasse outro planeta. A música tem esse poder de abrir portais para dimensões ou mundos paralelos. E esta é, certamente, muito poderosa.

pub

Últimos da categoria: Notas Azuis

RBTV

Últimos artigos