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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/03/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #90: Cécile McLorin Salvant

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/03/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Cécile McLorin Salvant] Ghost Song / Nonesuch

Tudo em Cécile McLorin Salvant parece sustentar-se numa ideia de duplicidade e a artista tem falado abundantemente sobre isso a propósito da edição recente de Ghost Song, o seu sexto trabalho em nome próprio que é igualmente a estreia na prestigiada Nonesuch Recordings: a cantora nascida em Miami de mãe francesa e pai haitiano frequentou a New School em Manhattan, Nova Iorque, antes de se inscrever no Conservatório Darius Mihaud em Aix-em-Provence, França, para estudar canto barroco, completando graus académicos avançados antes de mudar de perspectiva: “Afastei-me da ideia de querer ser impressionante e aproximei-me da ideia do que posso eu aprender com uma voz não educada formalmente, de alguém que possa não se considerar cantor ou cantora. Muitos dos meus cantores favoritos actualmente”, explica ela à Jazzwise de Fevereiro último, “são pessoas que não se veem enquanto tal, pessoas que são talvez instrumentistas que por vezes também cantam. Portanto trata-se de aprender de outras fontes e isso também se estende a aprender expressão com coreógrafos e artistas visuais e na literatura, com actores e com fotógrafos e realmente tentar olhar para isto através de uma perspectiva mais ampla e ir alargando cada vez mais esse olhar de forma a dissipar as linhas, as categorias. E isso também tem a ver com géneros de música”. O programa artístico de Cécile McLorin Salvant parece claro no seu discurso e surge bem exposto em Ghost Song.

O novo álbum da aplaudida vocalista nasce do que ela mesmo descreve como uma observação da sua própria vida, mas também, confidencia ela a Kevin Le Gendre da já mencionada revista britânica de jazz, “séculos de perda, de histórias de amor de perda de que ouvi falar ou sobre as quais li, da observação de histórias de amor de outras pessoas e da forma como lidam com a perda… e viver com essa perda, quase como se fosse um amigo imaginário”. Uma das histórias que Salvant leu foi, como se percebe rapidamente ouvindo o arranque de Ghost Song, a que unia (ou separava…) Heathcliff e Catherine n’O Monte dos Vendavais de Emily Bronté, obra-prima de romantismo gótico que, como bem sabemos, inspirou um dos melhores momentos da obra de Kate Bush. E, claro, Cécile embarca nessa artística demanda, procurando esbater géneros, percorrendo distâncias que espelham a sua própria experiência multicultural entre a folk mais despojada e uma Broadway reimaginada, entre os blues mais distantes e o jazz mais avançado, entre o que é popular e o que é erudito, entre o cabaré e o salão formal de concertos. Entre, enfim, o que ela aprendeu e o que já procura esquecer, abraçando outras possibilidades.

Acompanhada, em diferentes combinações, por Paul Sikivie em baixo eléctrico e acústico e ainda sintetizador, Sullivan Fortner em piano acústico e Fender Rhodes e ainda segundas vozes, Alexa Tarantino em flauta, Aaron Diehl também em piano e órgão de fole, Marvin Sewell na guitarra, James Chirillo no banjo, Daniel Swenberg no alaúde, Burniss Travis no baixo, Kyle Poole na bateria e Keita Ogawa na percussão, McLorin Salvant tem à sua disposição um vasto leque de possibilidades de coloração tímbrica para os seus próprios arranjos que servem 7 composições próprias e cinco tangentes a temas já conhecidos. E ela usa esses recursos com variedade: tanto se apresenta em modo solitário, como amparada em quarteto mais coro (o Brooklyn Youth Chorus surge no tema-título), como se entrega ao microfone secundada apenas pelo órgão de foles e piano (“I Lost My Mind”), explorando diferentes cenários para exibir os seus vocais enredos.



O álbum, pensado como um ciclo, abre e fecha com um sean-nós(um modo tradicional irlandês de canto não acompanhado), uma eficaz forma de Cécile nos relembrar que a voz é elemento central e dominante neste trabalho. E depois de breve entoação de um tradicional inglês vem aquela que é, provavelmente, a mais conhecida das canções sobre fantasmas que a pop nos deu. Cécile explica tudo nas notas de lançamento do seu novo álbum: “É a mais clássica história de fantasmas. Eu decidi que queria fazer um álbum chamado Ghost Song, e sabia que ‘Wuthering Heights’ tinha que estar nele. Depois tive a ideia de o misturar com o sean-nós ‘Cúirt Bhaile Nua’, que o liga ao tradicional ‘Unquiet Grave’, a última faixa do álbum. O fantasma não me está a assombrar; agora estou a assombrar o fantasma. Eles fazem um paralelo tão bem um com o outro e são períodos de tempo tão diferentes. Eu queria que o álbum fosse um ciclo, com a referência dos sean-nós no início e no fim. Então é a primeira faixa, mas é também a última faixa e é também a faixa do meio, que é como eu ouço música, ando pelo meu bairro, num avião, viajo para algum lugar, ponho coisas a repetir”.

A estas bases conceptuais, Cécile acrescenta palavras da sua própria lavra. Fala de mágoa e traição – “I tried to keep our love going long/ but no matter how much I lied/ The truth was too strong” (“Ghost Song”); responde a perguntas directas – “What happens when the foundation/ Of a relationship is guilt, not love?” (“Obligation”); pede ajuda – “Who can help me find my mind?” (“I Lost My Mind”); expressa desejo – “Let me love you like I love the moon”; e ainda aponta soluções poéticas para a vida: “Sometimes you have to gaze into/ a well to see the sky”. Tudo isso é cantado com dicção claríssima, como é compreensível para quem educou a voz no rigor da academia, mas também com dramático arrebatamento, como se Cécile tivesse igualmente aprendido tanto nos clássicos clubes de St. Louis como nos fumarentos cabarés que Lotte Lenya há-de ter frequentado. E se na sua voz se pressentem outros fantasmas – de Billie Holiday ou Sarah Vaughan, por exemplo – também há relevantes marcas de espectros do futuro que a sua própria arte há-de um dia assombrar. É que ela não teme explorar novas nuances para esta arte tão ancestral, procurando afirmar o seu próprio lugar através do risco. Ouça-se “Obligation” como uma tentativa de condensar rap e blues, teatro musical e algo mais que não se consegue exactamente identificar mas que se pressente nas subtilezas da sua respiração, mas micro pausas com que rodeia as sílabas. Este é um disco que definitivamente recompensa escuta atenta.

E a embrulhar tudo isto, está a arte pictórica e intuitiva de Salvant, multicoloridas visões que exploram um mundo de memórias e sonhos povoado com figuras de recorte humano, mas que não sabemos quem são . A cantora que diz ainda temer ir contra as regras, “da harmonia ou de qualquer outra coisa”, quando canta e faz música, sente-se livre quando se expressa visualmente: “Com a pintura não me preocupei se tinha educação formal ou se o que eu fazia quebrava regras. Quero abordar a música como abordo o desenho, como uma criança. As crianças são artistas… até que lhes tiram isso de dentro”. E é isso no fundo que define a beleza de Ghost Song: é um trabalho que busca a inocência.

Ghost Song de Cécile McLorin Salvant está disponível na Jazz Messengers.

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