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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 19/03/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #133: Bardino / Otis Sandsjö

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 19/03/2024

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Bardino] Memória da Pedra Mãe (Jazzego)

Editado no arranque do presente mês de Março, Memória da Pedra Mãe é o trabalho com que os Bardino sucedem ao promissor Centelha, lançado já nos idos pandémicos de 2020. Nestes quatro anos entretanto volvidos, o trio de Rui Martins (teclados), Diogo Silva (baixo) e Nuno Fulgêncio (bateria) refinou-se, expandiu as coordenadas e apresentou serviço em palco e em pontuais registos (como a compilação Granito em que surgiram ao lado de gente como Azar Azar, Pedro Ricardo ou SaiR), dando positivas indicações de que algo se encontrava a ser cozinhado com a lentidão que melhor serve os propósitos do espírito de aventura.

Memória da Pedra Mãe mantém os Bardino de ouvidos colados ao intemporal tremor da terra que prossegue viva longe das grandes cidades e aponta às memórias colectivas que fazem de nós aquilo que julgamos ser. E essa ideia de partilha num fundo lago de emoções, com fios identitários e práticas culturais comuns, é acentuada com a abertura do trio a colaborações externas. Desde logo com Leonardo Outeiro, guitarrista que começou a acompanhar o trio ao vivo nos concertos pós-Centelha (ele escuta-se em “Punctum No 2”). Mas a família Jazzego, selo do Porto que os Bardino agora integram, surge em peso no alinhamento do novo trabalho: Sérgio Alves, aka Azar Azar, adorna a peça de abertura “Tília”, com piano acústico e sintetizador; Hugo Oliveira, aka Minus & MRDolly, puxa pela sua veia rimática em “Pedra Mãe”; e Brian Blaker sopra em alto e tenor nas peças “Memória” e “Black Mica”.

Curiosamente, é num dos temas em que o trio se basta a si mesmo, “O Semeador”, que se aponta a um caminho altamente personalizado, com Rui Martins a somar a sua voz ao seu arsenal de teclados num tema que consegue encontrar um espaço algures entre o Arthur Verocai de “Na Boca do Sol” e ecos da nossa própria memória dos 70s (José Afonso, Fausto, José Mário Branco…). Nunca dispensando uma elegância extrema nos arranjos — que sem quaisquer assomos de convulsão mais experimental preferem seguir por territórios harmónicos mais convencionais, explorando um melodismo altamente distinto —, os Bardino partem de uma música instrumental de recorte clássico para se acercarem de um jazz de fusão luminoso, como na abertura com Sérgio Alves, “Tília”, que lembra um António Pinho Vargas de corte mais angular e moderno.

Noutros momentos, como “Pedra Mãe”, que beneficia da alma de Blaker e do flow de Minus, a toada é algo baleárica, e, logo adiante, em “Memória”, o saxofonista aposta em equilibrar groove de sinuosidade geométrica com liberdade discursiva que chega a acercar-se de fraseados mais free, e em “Punctum Nº2” é à oceânica guitarra de Leonardo Outeiro que o rio Bardino vai desaguar, numa peça que não chega aos 5 minutos, mas que bem poderia prolongar-se indefinidamente sobre as cordas sintéticas que Martins arranja a partir dos seus dedos. E mesmo em “Giesta” e “Ressonância”, dois temas em que não se listam convidados, Fulgêncio, Silva e Martins exibem suficiente desenvoltura orquestral para nos manterem a imaginação presa, enquanto de olhos fechados procuramos o filme que estas abstractas histórias nos querem contar.

Primeiro grande lançamento jazznãojazzpt do ano e confirmação de que Bardino é mais uma bela adição a um conjunto de instrumentais aventureiros que a música portuguesa tem produzido na última década e meia. Arrumar Memória da Pedra Mãe ao lado de trabalhos de Orelha Negra ou Sensible Soccers, por favor.


[Otis Sandsjö] Y-OTIS TRE (We jazz Records)

É bem provável que a mais importante pergunta de sempre não seja “como começou o universo?”, nem sequer “Deus existe?” ou mesmo “há vida depois da morte?”, mas, wait for it…, “o que é o jazz?”. Às três primeiras perguntas é relativamente fácil responder: “Com um tambor em Congo Square”, “claro que sim, chama-se John Coltrane” e, por fim, “obviamente, e a prova está na forma como J Dilla continua a controlar o tempo”. Quanto à tão debatida “o que é o jazz?”, o que acontece é que o júri ainda está reunido e não há qualquer indicação de que uma deliberação final e conclusiva esteja para breve.

A verdade é que a palavra “jazz” carregou diferentes significados em diferentes momentos da história: foi epíteto pejorativo, nome de uma bem sincopada e ruidosa era e profunda marca de identidade reclamada, rejeitada, libertada e até expandida com outras palavras — “classical”, “modern”, “hot”, “cool”, “free”, “spiritual”, “soul”, “fusion”, “anti”, “post”, “acid”, “electronic”, “nu” e até “future”… É natural, assim sendo, que as dúvidas subsistam. Neste múltiplo, estranho, maravilhoso e agitado presente, “jazz” é tudo e nada. É, vá lá, uma excitante secção numa loja de discos onde Sven Wunder está ao lado de Sun Ra, Theo Parrish pode seguir-se a Thelonious Monk e Madlib se encontra facilmente na prateleira da Blue Note. A secção, enfim, onde a música de Otis Sandsjö melhor se enquadra.

O saxofonista sueco que tem em Berlim a sua base de trabalho apresenta agora a terceira parte de uma série iniciada em 2018 com a edição de Y-OTIS. O conterrâneo Peter Eldh, igualmente expatriado na vibrante capital cultural alemã, tem sido parceiro constante nestes trabalhos de Sandsjö, assegurando o pulso grave destes registos de tom profundamente exploratório. No primeiro destes álbuns, o já mencionado Y-OTIS, além do contrabaixista que também assegurou a produção, escutavam-se ainda vigorosas prestações de Elias Stemeseder (sintetizadores) e do alemão Tilo Weber (bateria). Y-OTIS 2 foi editado em 2020 e mostrava Otis Sandsjö a colaborar com Peter Eldh, que voltava a assegurar a produção, e ainda Tilo Weber, Dan Nichols (sintetizadores) e, num par de faixas, Ruhi-Deniz Erdogan (trompete), Jonas Kullhammar e Per “Texas” Johansson (ambos em flauta) e ainda Lucy Railton (violoncelo). Fazendo jus ao título, o novíssimo Y-OTIS TRE (“tre” é a palavra sueca para “três”) tem boa parte da matéria musical assegurada pelo trio formado por Sandsjö, Eldh (que dividem os créditos de produção) e, uma vez mais, Dan Nichols, com espaço ainda para participações adicionais de Tilo Weber, Lukas König e Jamie Peet (todos em bateria) e Henrik Munkeby Nørstebø (trombone).

Num artigo de 2022 para a The New Yorker, JD Beck, jovem baterista americano que criou uma muito debatida dupla com a teclista francesa DOMi — responsável pelo divisivo álbum Not Tight, lançado na Blue Note —, explicava a Andrew Marantz que a maior influência nos seus obtusos e ultra-complexos padrões rítmicos era “o algoritmo do YouTube” que o levou a desenvolver a sua particular abordagem ao instrumento ao confrontá-lo com clássicos de jazz, música de jogos de vídeo e batidas convulsas de J Dilla (mais uma prova da sua existência post-mortem). Algo de similar é possível dizer-se de Otis Sandsjö, que em entrevistas já admitiu recolher influências que se estendem da música mais livre de Hermeto Pascoal ao hip hop e daí à folk sueca que escutou desde criança. Em estúdio, isso traduz-se numa criativa ética de trabalho que cruza sampling, minúcia laboratorial na transformação de material pré-gravado, jams colectivas sem limitações formais e um delicado trabalho de corte e costura na fase de edição que se revela, afinal de contas, tão importante quanto a de gravação. Não é tanto acerca das tradicionais noções de invenção espontânea, mas muito mais de uma frutuosa fidelidade ao experimental processo de tentativa e erro que se impõe quando, diante de um monitor de computador, se coloca outra importante pergunta: “e se colasses esta parte ali e repetisses tudo durante 16 compassos?”.

Com um som ultra-processado, o saxofone de Sandsjö navega por águas tão turvas quanto aquelas em que, por vezes, vemos o saxofonista norte-americano Sam Gendel mergulhar, com frases que denotam uma constante e oblíqua demanda, puxando pelo carácter digital de um instrumento que é, na verdade, profundamente analógico. Como se através da manipulação do som que resulta do ar que circula pelo seu instrumento, Otis procurasse não apresentar respostas, mas, bem mais importante, formular novas perguntas. Sobre padrões convulsos, Peter Eldh e Otis Sandsjö dispõem música cromada, resplandecente de brilho de intensidade néon, traduzindo o som de mil supernovas em explosão sucessiva. Não é música do futuro, é mesmo de agora, do momento presente, aquele em que “jazz” significa tudo o que se quiser ou nada do que se espera. Vai dar ao mesmo.

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