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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 22/12/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #110: Especial Jazzego

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 22/12/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Vários Artistas] Granito / Jazzego

[Cat Kin Cool] Simplon / Jazzego

Há um duplo sentido óbvio escondido no título – Granito – da primeira compilação da portuense Jazzego: os lugares — as terras, vilas e cidades — não se fazem das pedras que pavimentam as suas ruas ou que se empilham nas suas torres, muros e muralhas, antes das gentes que por aí se fixam, que nelas circulam, vivem e criam. Que nelas criam – ideia importante. Porque nesses lugares mencionados faz-se muita coisa: vive-se e morre-se, claro, sobrevive-se e luta-se, também, trabalha-se e, há que sublinhar mesmo esta ideia, CRIA-SE. E no Porto tanto de musicalmente relevante se tem desde há muito criado. O retrato que Granito, no entanto, propõe é o de um presente vibrante, feito de gente criativa que se move na sombra gentrificada da cidade, oferecendo-lhe um novo pulsar.

São ao todo nove faixas assinadas por alguns nomes já nossos conhecidos – como AZAR AZAR, Bardino, Minus & MRDolly ou Johnny Virtus e SaiR – e outros que não serão assim tão familiares, pelo menos de repente – os de Pedro Ricardo, Hugo Danin, Geodudes e Klin Klop. Há por aqui, como revela a ficha de créditos do disco, nomes recorrentes que vão dando à Jazzego aquela dimensão de família que tanto contribui para a definição de um som próprio: desde logo o do percussionista Manu Idhra, o do pianista e teclista Sérgio Alves (que quando está na dianteira assina AZAr AZAR), o do baterista Hugo Danin, do produtor e engenheiro Hugo Oliveira (aka Minus & MRDolly ) ou, por exemplo, do saxofonista Fábio Almeida – todos aplicam os seus respectivos talentos em múltiplas sessões em que vão despontando diferentes líderes. Cena boa, claro.

A Jazzego nasceu claramente inspirada nos novos pulsares jazz que os seus homens do leme – o já mencionado Hugo Oliveira e ainda o agitador André Carvalho – captaram vindos das Américas ou do Reino Unido e que atentamente estudaram a partir das cabines de DJ ou em concentradas sessões de sampling. E meros dois anos e meio (houve uma pandemia no meio e tal…) depois de uma estreia que teve sabor de manifesto – afinal de contas, assim só em jeito de entrada a pés juntos, a Jazzego lançou-se com AZAR AZAR a ousar (difícil resistir a esta…) recriar (lá está…) um pedaço de Bitches Brew de um tal de Miles Davis!!… –, eis que o selo termina o ano com as nona e décima entradas no seu catálogo Bandcamp. Assinalável, até porque os dois mais recentes lançamentos ultrapassam a dimensão digital e ampliam o acervo vinílico da etiqueta para o dobro (AZAR Ep e Broken Hearts Make Broken Beatssão os títulos anteriormente disponibilizados em formato físico).

Musicalmente, refira-se desde já, Granito é, simultaneamente, um triunfo e uma absoluta delícia para os ouvidos. Um triunfo porque cumpre com distinção o seu objectivo de documentar uma efervescência muto particular que tem (tranquilamente) agitado a Invicta: este olhar sobre o jazz é bem distinto dessoutro bem mais canónico que marca a nobre actividade da Porta-Jazz, por exemplo. E delícia absoluta porque a música aqui reunida consegue, ao mesmo tempo, inserir-se num continuum de reinvenção do lado do jazz mais comprometido com o groove (há por aqui ecos do jazz de fusão dos 80s, do acid-jazz dos 90s e dos contemporâneos exercícios londrinos ou los-angelinos de ciência rítmica avançada) e demonstrar que há por ali recursos humanos com sérias capacidades técnicas e artísticas.

O arranque faz-se com um hipnótico “Red Cosmos” de AZAR AZAR com Pedro Ferreira no baixo, Ricardo Danin na bateria, Manu Idhra na percussão, Fábio Almeida no saxofone tenor e Sérgio Alves no piano e sintetizadores a entrarem em modo espiritual e espacial que nos coloca imediatamente em órbita (e com grandes solos de tenor e piano). “Do Outro Lado do Mar” de Pedro Ricardo é a primeira bela surpresa do alinhamento: trata-se de um exercício musical em tonalidade Verocai em que a guitarra do líder se junta à bateria, voz (!!!) e percussão de Luís Neto, baixo de Luís Correia e trompete (com direito a belíssimo solo) de João Pedro Dias. A interpretação vocal de Neto (com letra co-assinada com Pedro Ricardo) é bastante interessante, reforce-se.

O alinhamento prossegue com um apropriadamente titulado “Crazy Beat” de Hugo Danin, na bateria (que se passa na família Danin?), que dirige o ensemble The New Vibe Sessions que conta com Sérgio Marques no contrabaixo (em modo de máxima propulsão), João Salcedo no piano, e ainda um expansivo Sérgio Alves a mostrar-se simultaneamente relaxado e poético no piano acústico e diabólico e explosivo no sintetizador. “Only Good Things Stay”, que fecha o lado A, é cartão de apresentação dos Geodudes do teclista Gonçalo Palmas que convoca Fábio Almeida para o saxofone, João Luzia para a guitarra eléctrica, Miguel Pinto para o baixo, Tito Romão para a bateria, Kevin Pires para os sintetizadores e Edu Mundo para o microfone: uma tranquila peça em que o saxofone de Almeida volta a brilhar de forma intensa e as palavras de Edu, poéticas e declamadas com sotaque geograficamente correcto, a pontuarem os momentos finais.

O lado B abre com a síncope que já tem densidade autoral dos Bardino – teclados em derrapagem cósmica de Rui Martins, bateria matematicamente perfeita de Nuno Fulgêncio e baixo sinuosamente subtil (ou subtilmente sinuoso…) de Diogo Silva a repetirem a proeza de fazer sempre pensar que menos é mais e que três é a conta que alguém fez e que dá sempre resultado certo. Depois, Hugo Oliveira leva-nos uma vez mais ao espaço com “Leftwing”, criação assinada como Minus & MRDolly que aqui assume piano e sintetizadores e para que contribuem também Hugo Danin, Manu Idhra e Sérgio Marques: cadência boogiezesca, elegância late-70s e eficácia modernista em combinação perfeitamente equilibrada.

Klin Klop é outra bela surpresa: poderá conhecer-se os atributos da DJ Klin Klop em múltiplas cabines que exploram o lado mais funcional da electrónica, mas a também produtora e violinista recruta para este “Musgo” Gonçalo Palmas e Miguel Pinto de Geodudes e ainda Manu Idhra e João Luzia além do flautista Samuel Silva que dá brilho especial a esta sofisticada incursão pelo lado mais deep e hipnótico do house. Perfeita para dançar em gravidade zero a bordo da estação espacial internacional.

O penúltimo tema pertence a Johnny Virtus, produtor que conhecemos de outras paragens e que em “Magenta RK” extrai do seu sampler a mais tranquila passagem de Granito, um bater de coração feito viagem aural por desertas ruas nocturnas que bem poderia inspirar uns versos a The Weeknd se este fosse um mundo perfeito onde a sorte grande saísse a quem merece. O nosso bem conhecido SaiR assina a derradeira peça desta compilação, “Out of the Gates”, mostrando-se primeiro em piano acústico antes de mergulhar no seu habitual modo de fusão 80s de elegância constante e arranjos de seda sintética cuidadosamente refinados.

Tudo junto, isto dá matéria para listas de final de ano, certamente. E confirma a validade da Jazzego no nosso panorama contemporâneo. Mas há mais: Simplon de Cat Kin Cool. Quem? Pedro Vasconcelos em horas extras gastas em bateria, baixo, sintetizadores, trompete, guitarra, percussão, voz e miudezas electrónicas e ainda Manu Idhra (cuja percussão se escuta em três faixas), Ricardo Martins (baixo em “Butterfly”), Sam Silva (saxofone barítono em “Havana”), Miguel Valente (saxofone alto também em “Havana”) e Dane Glasby (spoken word em “2020 Vision”). 

O resultado da visão de Pedro Vasconcelos cruza downtempo de inclinação dubby, exotismo quarto-mundista com arranjos cinemáticos, alguma pressão rítmica bem fundada (a piscadela de olho à capital de Cuba é caso sintomático nesse plano) e uma amplitude sónica generosa e cuidada que transforma a experiência de audição em auscultadores numa massagem neural de enorme eficácia. Simplon também reforça a ideia de que a Jazzego é muitas coisas e que recusa caminhar por uma rua de sentido único. Mas também é assim que se sentem as cidades: percorrendo as suas avenidas e alamedas, mas também entrando em ruelas e becos, investigando os caminhos menos iluminados e, vá lá, correndo até alguns riscos: por vezes os melhores recantos são os que se escondem e mais distam das zonas de maior pressão turística, certo? No Porto, como de resto em Lisboa, é esse, certamente, o caso.

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