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Fotografia: jubilee street
Publicado a: 22/09/2020

O sucessor do EP homónimo saiu no final de Agosto.

Bardino: “O objectivo é chegarmos ao ponto de alguém dizer que certa música soa muito a Bardino”

Fotografia: jubilee street
Publicado a: 22/09/2020

Aos primeiros segundos de “Centelha”, faixa que abre o novo e homónimo disco do trio, somos bafejados por uma lufada de ar fresco. Sintetizadores luminosos abrem um álbum que toca a eletrónica, o prog-rock, o jazz, o neo-funk de uma forma coesa e muito ponderada.

Os Bardino cabem em muitas gavetas e fomos perceber o porquê desta versatilidade. Encontrámo-nos com Nuno Fulgêncio (bateria), Diogo Silva (baixo) e Rui Martins (teclados) no seu estúdio no STOP (Porto) e explorámos este álbum, produzido na quarentena. Dissecámos a sua vontade de comunicar algo usando a música instrumental e de paralelamente o ocultar dos ouvintes, assim como a sua estética e trabalho com sintetizadores.

Centelha foi editado no passado dia 25 de Agosto pela Saliva Diva, com artwork certeiro da jubilee street. Tal como a capa, Centelha é um vislumbre colorido, permitindo ao ouvinte imaginar o destino enquanto é transportado numa vívida viagem musical. No dia 14 de Novembro podem conferir ao vivo esta estreia de Bardino num concerto no GrETUA, em Aveiro.



A tracklist de Centelha contém títulos de músicas como “Casulo”, “Fumo”, “Volição”. Aparentemente são referências vagas, vislumbres, como a capa do álbum. A vossa música é isso mesmo, vislumbres de algo da vossa imaginação ou idealização?

[Nuno Fulgêncio] Um dos pontos de partida para essa sensação pode ser a questão da música não ter voz, que inevitavelmente abre um leque de interpretações. A música é muito mais imaginativa quando não há palavra.

[Diogo Silva] Isso também se relaciona com o conceito do disco. As bases foram pensar no álbum como um todo e num conceito que nos orientasse ao nível da composição. Desse conceito surgiram o título do disco e das músicas. Temos alguma dificuldade em dar nomes às músicas por não termos letras, então apoiámo-nos no conceito, que para fora é um bocado abstracto mas que para nós é mais concreto.

[NF] Foi desde sempre assumido que não queríamos que o conceito passasse para fora. Daí esses vislumbres que referes.

[DS] Basicamente, o Centelha foi pensado como um álbum conceptual sem ter um conceito explícito. E os nomes das músicas reflectem um bocado isso. São algo vagos, mas é perceptível de que há um contexto e uma intenção.

Esse tipo de postura é rara, e coloca o ouvinte numa posição interessante, porque percebemos que há algo mas não sabemos o quê. É misterioso sem ser forçado.

[NF] No fundo era a nossa intenção. Não queríamos rotular o disco. Enquanto espectadores, não queremos que nos guiem ou conduzam quando em contacto com uma expressão artística. Queremos fazer as nossas análises.

[Rui Martins] Nós vimos de um EP editado em 2017 e em que ainda estávamos a tentar perceber o que queríamos fazer enquanto banda. Foi um capítulo necessário, mas rapidamente esgotámos essa forma de fazer as coisas. Fechámos o EP, seguimos em frente e, quando começámos a compor músicas novas, demos por nós muito agarrados a esta ideia, um conceito que transmitisse um estado mental ou emocional a quem está a ouvir.

[NF] Foi uma mudança profunda na nossa forma de compor. Nós funcionávamos como “banda de sala de ensaio”, que compunha em jam, e vimo-nos com a necessidade de pensar faixa a faixa e a relação entre elas.

Como referiram, a vossa música consegue ser intensamente visual. No press release falam em “planícies alentejanas tórridas”. Quais são as vossas inspirações visuais para Centelha, se as tiverem?

[NF] É inevitável haver imagens, mas esse processo foi inconsciente.

[DS] Pensamos de forma consciente e quisemos transmitir estados emocionais, como tristeza ou alegria. Mas surgem imagens associadas a esses estados de espírito, isso é natural.

Gravaram Centelha em Chaves e o vosso EP “em plena Serra das Meadas”. Quiseram gravar o álbum num clima de isolamento?

[NF] Fomos para Chaves porque somos amigos do Bruno Barroso da Ruby Discos, e porque surgiu a possibilidade de irmos para lá e de gravar em estúdio vários dias. Fomos para lá quatro dias seguidos e isso foi interessante, ainda que o reflexo no disco não seja muito palpável.

[DS] E escolhemos Chaves também para estarmos juntos o tempo todo, durante e fora das gravações, permanentemente a discutir ideias. Levámos o nosso técnico de som, que captou, misturou e ajudou na produção, que já estava a trabalhar connosco e continuou o processo. Duas semanas depois da gravação começou o confinamento, o que nos obrigou a terminar o álbum separados. Gravámos pistas em casa e avançámos para a mistura de forma remota. Fizemos muitas reuniões, íamos constantemente opinando e as coisas foram-se construindo assim, em modo quarentena.

[RM] Na verdade a produção do disco tem dois momentos mais importantes do que a gravação. A pré-produção, que fizemos aqui no estúdio, e a pós-captação, em pleno estado de emergência, onde se fechou a estética do disco. A mistura foi feita nessa altura, os teclados foram gravados nessa altura, alguns baixos e guitarras também. A captação foi importante para alguns aspectos estruturais, mas foi fugaz no decorrer de todo a produção.

Esse isolamento aparenta ser uma tarefa difícil para quem está habituado ao método de trabalho e à proximidade do estúdio.

[DS] É pior para umas coisas mas agiliza outras. Trabalhámos todos de forma autónoma e independente quando tínhamos tempo, e não precisávamos de estar juntos para trabalhar.

“Centelha”, a faixa que abre o álbum homónimo, traz novidades para quem vos conhece do EP. Ouvimos somente pistas de teclado, arpegiators e sintetizadores, com uma carga emocional e esperançosa. É uma centelha para a música que gostariam de fazer de agora em diante, com um carácter mais meditativo? Se bem que, pelo que me explicaram, vocês vão querer sempre experimentar coisas novas.

[RM] Acho que há um limite para a experimentação. Nós ouvimos muita música contemporânea e procuramos com isso estar na fronteira de fazer algo novo, mas também queremos encontrar a identidade da nossa expressão. É natural que o próximo disco seja mais próximo deste disco do que do EP. Aquilo que procurámos para o Centelha é o que queremos procurar daqui para a frente.

[NF] Tu vais-te transformando ao longo do caminho e isso reflecte-se em tudo o que fazes, e em expressões artísticas ainda é mais óbvio. É o que todos os músicos querem, acho eu, soarem a si mesmos.

[RM] Estávamos a falar disso no outro dia. O Diogo mandou-nos um artista e um de nós comentou que soava muito a Kamaal Williams. O objectivo é chegarmos ao ponto de alguém dizer que certa música soa muito a Bardino.

[DS] Em relação ao carácter meditativo do álbum, nós estamos a apostar mais na música electrónica e na repetição que vem agarrada a ela. No EP não ouvias isso, porque as músicas eram demasiado progressivas para se conseguir entrar num estado de transe. O facto de termos apostado na electrónica leva precisamente a estados mais meditativos, porque a própria música é mais repetitiva e permite a meditação.

A atenção do ouvinte funciona de forma diferente com esse tipo de electrónica, não está tão activa.

[DS] Nós sentimos isso quando estamos a tocar. Quando a música é muito progressiva, tens que estar mais atento aos contratempos, às mudanças. Estás concentrado mas não de maneira imersiva.

[RM] Nós tínhamos um registo muito seccionado e explicitamente complexo. Ainda agora na viagem estávamos a ouvir o To Pimp a Butterfly e há lá um tema que é um 3/5 mas que não soa a um tempo composto. Isso é difícil de se conseguir. Nós tentámos caminhar um bocadinho para aí, para compor música que não fosse explicitamente desconfortável, que fosse interessante de forma subtil.

[DS] E queríamos estar mais descomprometidos a curtir o que estávamos a tocar. É importante transmitir isso em concerto. E fugimos a essa complexidade para também nos libertarmos um bocadinho.

[NF] Fazemos a experimentação em cima disso. Quando tens várias ideias musicais e com alguma complexidade, a repetição promove o balanço, não a taquicardia.

Vocês são muito conscientes em relação ao processo criativo e à música que estão a fazer. Muitas bandas têm uma tendência mais ou menos consciente de repetir receitas, e no vosso caso isso é pouco óbvio.

[RM] Acaba por ser fácil caíres aí se tiveres referências muito fortes.

[NF] E nós também o fazemos. Se nos perguntares quais são as referências deste disco, nós dizemos-tas com facilidade. Por exemplo, a propósito da música introspectiva de que falávamos, um exemplo que nós ouvimos e discutimos muito são os Floating Points. Eles transportam-te para um sítio que não é nada óbvio, mas quando dás por ela já estás lá. Eles fazem isso muito bem.

[DS] Sem querer soar arrogante, nós temos alguns momentos semelhantes aos dos álbuns deles, onde tu ficas quase distraído com o que ouves, em transe, entre músicas completamente diferentes. Elas fluem de uma forma sublime.

[NF] Isto para dizer que há inevitavelmente referências pelas quais nos seguimos um bocadinho. Contudo, eu gosto de pensar que há uma tentativa activa de sermos disruptivos. E acho que, por exemplo, o gajo do rock’n’roll quer fazer rock’n’roll, mas vai-se esforçar para fazer uma cena diferente, ainda que siga premissas mais imediatas.

[DS] E em projectos com voz, ou que confiram muito ênfase à forma de passar uma mensagem literal, se calhar a novidade relaciona-se na expressão dos sentimentos ou da mensagem e a música passa a ser algo secundário ou de suporte, de modo que o som que surge daí não é tão novo. Por outro lado, uma banda como a nossa está obrigada a explorar mais a parte instrumental.

Mas há clichés… o post-rock está cheio deles.

[DS] Isso é uma gaveta, há bandas que se põem nas gavetas mas também há labels que põem as bandas nas gavetas. E há muitos projectos que não estão numa só gaveta. Nós tentamos fugir de muitas delas porque é inevitável tentarem-te pôr numa.

[RM] Nós temos uma piada interna sobre isso. Eu tive uma banda de prog [Corvo Mudo], e quando saí disse a mim mesmo que o meu próximo projecto não seria de prog. Quando lançámos o EP, puseram-nos logo na gaveta do prog [risos].

[NF] Pela forma que compomos e experimentamos, acabamos por estar em muitas gavetas ao mesmo tempo.

Centelha é acompanhado por diversos sintetizadores adicionados em pós-produção, que desnorteiam o ouvinte, criando uma parede de fumo sonoro entre ele e as composições. Foi propositado?

[RM] A pós-produção teve também um carácter de experimentação grande. Para além disso, os Floating Points foram também uma enorme influência e há algumas abordagens que vêm daí, como a utilização subtil de alguns sintetizadores. Mas não vai de encontro ao que ouviste.

O álbum é variado, têm vários estilos de sintetizadores. Esta sensação desnorteada é mais evidente, por exemplo, na “Zona”.

[RM] Sim, na “Zona” há um sintetizador meio arpegiado que está completamente desfasado do resto da música.

[NF] E, no geral, há muito trabalho de texturas em cima de texturas.

[DS] O facto de não haver guitarra também levou um bocadinho a essa abordagem de composição. Tentámos, se calhar por receio das músicas ficarem despidas, completá- las com sintetizadores.

[NF] Para além disso, havia uma intenção clara de tornar o som do disco mais electrónico, e aí os sintetizadores aparecem de forma destacada. Queríamos assumidamente que eles soassem sintéticos. A nossa estética tinha que ser um bocadinho sintética. Não queríamos soar a uma banda de garagem, por muito bem que fosse gravada.

[DS] Temos músicas em que o baixo é tocado no sintetizador, onde a bateria está com distorção ou outro processamento. O timbre e a mistura da bateria muda de música para música, assim como no baixo, e isso traz alguma dinâmica ao disco. Não queríamos uma mistura geral. Explorámos muito esses aspectos da mistura e da pós-produção, o que nunca tínhamos feito antes.

Em Centelha não soam a um trio, e acho que isso advém dessa abordagem à composição.

[DS] Há músicas que não têm todos os instrumentos, outras músicas que soam a três instrumentos e ainda outras que soam a muito mais do que três instrumentos. Ao vivo, queremos ter uma dimensão diferente, separada do disco. Queremos que seja uma experiência complementar, onde não nos limitemos à produção e às sonoridades que exploramos no estúdio.


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