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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 17/02/2024

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #132: os 15 melhores álbuns nacionais de 2023

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 17/02/2024

A produção nacional em 2023 foi abundante e variada, apontando em várias direcções ao mesmo tempo, o que é sempre bom sinal. Senão, vejamos (e escutemos)…


[Axes] Hexagon (Carimbo Porta-Jazz)

Da reportagem de Ricardo Vicente Paredes no Festival Porta-Jazz:

Axes em palco, que são formados pelas vozes dos quatro naipes idealizados por Adolphe Saxe, o inventor do instrumento. Tocando sopranino, João Mortágua, alto José Soares, tenor Hugo Ciríaco e barítono Rui Teixeira, juntamente com Filipe Louro no baixo eléctrico e Pedro Vasconcelos na bateria e percussão. Os seis músicos formam um grupo em palco e em disco — e vão dois editados pela Carimbo Porta-Jazz, o debutante e homónimo de 2017 e já no ano passado com Hexagon, os vértices de uma música configurada nos eixos estabelecidos entre si. Razão para a geometria (dos sons) justificar a linguagem ilustrativa em palavras e nas estéticas idealizadas por Maria Mónica nas capas dos discos. O concerto foi inteiramente marcado pela passagem, igual na sucessão, dos temas do disco último. E são mesmo os passos sucessivos para se desenhar um hexágono final, desde a linha, o ângulo, o triangulo, a passagem ao quadrado, pentágono, até à figura de seis lados.”


[Azar Azar] Cosmic Drops (Jazzego)

Da introdução à entrevista em que se discutiu Cosmic Drops:

“Sérgio Alves tem muita sorte. Tem, nomeadamente, a sorte de poder criar o que a sua imaginação dita. Não terá tanta sorte a encontrar lugares de estacionamento, como nos explica quando, no quartel-general da Jazzego, no Porto, começamos por falar sobre o nome artístico que escolheu – Azar Azar. Coube-lhe a ele a honra de inaugurar o catálogo desta jovem editora do Porto, em 2020, com um EP digital em que ousava mexer em Bitches Brew, de Miles Davis, partindo dessa matéria para ensaiar uma primeira viagem ao espaço. Azar Ep e o projecto colaborativo com Maze, MC dos Dealema, Sub-Urbe Volume 1, que saiu com selo da Monster Jinx, foram os capítulos seguintes que nos trouxeram até este Cosmic Drops, trabalho que hoje mesmo aterra nas plataformas digitais, que merece edição em vinil e apresentação ao vivo, no Ferro Bar, no Porto”.

Da reportagem da apresentação de Cosmic Drops:

“Sérgio Alves, aka Azar Azar, apresentou na passada sexta-feira no Porto, no Ferro Bar, o seu álbum de estreia, Cosmic Drops, acabadinho de lançar na Jazzego. Acontecimento importante, pois claro. Antes de mais, porque prova que há vida, vibração e urgência neste jazz que não é bem jazz, mas que é de agora e daqui. Num clube onde não cabia nem mais um par de ténis, as pessoas todas – muito jovens, bem diversas, nativas analógicas na sua maioria – entregaram os seus ouvidos e outras partes dos seus corpos à chuva de gotas cósmicas com que o teclista nos presenteou. Sorte a nossa.

No palco, a alegria era indisfarçável: a história deste disco, como nos revelou Sérgio Alves na entrevista que nos concedeu, já ia longa e estes músicos quiseram ali celebrar o facto de Cosmic Drops estar, finalmente, a ver a luz do dia. A energia da plateia também contribuiu decisivamente para que a banda tenha muito fácil e rapidamente entrado em órbita. Tudo somado, reuniram-se no Ferro as condições ideais para uma noite épica. No grande esquema das coisas, este concerto pode não ter passado do bater de asas de uma borboleta, mas bem sabemos o que nos diz a teoria do caos quando isso acontece…”


[Beatriz Nunes] Livro de Horas (Roda)

Da entrevista ao Rimas e Batidas:

“Não há um único momento em que um sorriso não ilumine o rosto de Beatriz Nunes. Um sorriso ou, pelo menos, a promessa de um sorriso. Porque quando fala de activismo e de se sentir herdeira de figuras transgressivas, quando se põe a pensar no seu lugar, no lugar da música que cria, não é tanto essa expressão facial de felicidade que lhe marca as feições. Será mais o ar de quem confia que caminha no sentido correcto, aquela ideia de quem parte sabendo que o trajecto por diante é longo, mas que nada é impossível.

Livro de Horas é o novo álbum de Beatriz, trabalho em que se faz acompanhar por Mateja Dolsak no saxofone tenor, Luís Barrigas no piano, Mário Franco no contrabaixo, Jorge Moniz na bateria e ainda, cada uma num tema, Edvania Moreno no violino e Femme Falafel também na voz.”


[João Barradas] Solo II (Live At Festival D’aix-En-Provence) (Clean Feed)

Das notas assinadas por Pedro Melo Alves para Solo II:

“Começo pela forma como se apresenta, um recital a solo de música totalmente improvisada: o paradoxal formato musical que se situa algures entre a derradeira demonstração de fragilidade íntima, por um lado, e a experimentação sem limites e efémera, por outro, mas que acaba muitas vezes por ser a afirmação superlativa de um artista. Mas a coisa torna-se ainda mais particular, pois não se tratou apenas de um recital a solo de música totalmente improvisada. É um recital que aconteceu num festival de música clássica de nível mundial, que acolheu pela primeira vez um evento de resultado desconhecido, lado a lado com encomendas de música contemporânea e obras clássicas do início do século XX e da prática comum. Ao ser editado no 75º aniversário do Festival de Aix-en-Provence, este é um feito considerável de João Barradas, que implica que o concerto improvisado receba a mesma consideração distinta que o concerto composto e a ligação reforçada entre os universos da música clássica, popular e jazz, numa perspetiva moderna de linguagens globalizadas do passado e do futuro. Trata-se, de facto, de um trabalho discográfico com muitos temas nucleares, confirmando Barradas como uma figura central e definitiva do acordeão a nível mundial”.


[Lokomotiv] 25 (Ed. de autor)

Da entrevista ao Rimas e Batidas:

“Três experientes feras mais um jovem leão entram num bar. Que acontece a seguir? Partem a casa toda, certamente. (…) Lokomotiv é uma poderosa unidade livre em que além do contrabaixista Carlos Barretto militam ainda os enormes José Salgueiro nas percussões e Mário Delgado nas guitarras e que celebra agora 25 anos de caminho trazendo para a sua beira o saxofonista Ricardo Toscano.”


[Mané Fernandes] matriz_motriz (Carimbo Porta-Jazz)

Da reportagem de Ricardo Vicente Paredes no Festival Porta-Jazz:

“Grande palco, para grandes músicos e um público em grande, em número e na disponibilidade energética, para desfrutar de mais um dia, agora para uma matriz_motriz. O primeiro bloco do dia, o 5º do festival, traz o entusiasmaste Mané Fernandes em guitarra eléctrica e a sua formação, composta pelo trio para vozes de Mariana DionísioSofia Sá e Vera Morais, e pelo piano de João Grilo para fazerem a música que Brittanie Brown dança e coreografa em tempo real. Mané pediu para serem apresentados como ‘uma drum machine do futuro, feita de sonhos’. Sim, mas está para além disso, na expressão do fazer, a drum machine é aqui orgânica, é um mecanismo humano a estabelecer o tempo e o ritmo. Ou então é antes demais uma visão do futuro, em que as máquinas cedem aos humanos, é um futuro risonho, libertador. Mas ainda antes, neste presente, estamos no palco da música de raiz minimalista vinda dum passado estabelecido por John Cage, junto à dança de Merce Cunningham, e é como se estas duas referencias se encontrassem com a magia vocal de uma Meredith Monk neste presente, num sonho ali tornado real. Contudo é a dimensão de Mané a fazer ir além deste espaço, pelo brilhantismo autoral em torno de ciclos repetitivos, fraseados curtos e ciclópicos que a partir das cordas da guitarra e do piano, em tantos momentos preparado, tapeteiam as três vozes encantadoras e inventivas, numa linguagem porvir, inventando uma cultural aural. Brittaine, aliás Bee, encheu o espaço de espectros, em fluxos corpóreos, voos apícolas, proto-estáticos entre cada um dos seis movimentos compostos e apresentados”.


[Margarida Campelo] Supermarket Joy (Discos Submarinos)

De crítica publicada no Expresso:

“O trabalho de Margarida Campelo como teclista e vocalista em múltiplos projectos em que nunca assumiu a dianteira — dos colectivos de geometria diversa liderados por Bruno Pernadas ou Joana Espadinha a grupos como Minta & The Brook Trout ou Cassete Pirata — não preparou realmente ninguém para o que Supermarket Joy tem para oferecer. Aqui, Margarida — Maggie para os amigos — assume a sua plena identidade artística: compõe, canta, arranja, toca uma carrada de instrumentos e ainda desfila as mais fantasiosas roupas do presente pop nacional. Imaginem Whitney Houston ou Stevie Nicks vestidas por uma designer que possa ter frequentado o Studio 54 e tenha peças na colecção do MoMA e não andarão muito longe dos modelos que Margarida apresenta nos bem divertidos e fantasiosos vídeos de ‘Faz Faísca e Chavascal’ ou ‘Mapa Astral’, os dois singles que precederam a edição do seu álbum de estreia em nome próprio.

Com produção de Bruno Pernadas e colaborações — poéticas e musicais — de gente como Beatriz Pessoa, Francisca Cortesão ou ainda António Quintino, João Correia e Tomás Marques, Supermarket Joy é uma exuberante e, como a própria artista tem sublinhado, ‘desavergonhada’ colecção de canções em que cruza a sua paixão pela facção mais acetinada do R&B dos anos 80 e 90 (‘Love Ballad’ é uma versão de um arrebatado slow de 1976 dos L.T.D. que contava com produção dos mestres Larry e Fonce Mizell), pelo yacht-rock da escola Michael McDonald e Kenny Loggins, pela cromada city pop do Japão e pelo jazz-pop de fusão dos Steely Dan. E tudo com um arrojo inexcedível que nasce de uma rigorosa educação musical recolhida no tipo de colecção de discos que arrepiaria os guardiões do ‘bom gosto’ (seja lá isso o que for…), mas que por isso mesmo se alinha com uma certa vanguarda pop que tem entusiasmado neste agitado presente, de Thundercat a Silk Sonic ou de Eddie Chacon a DOMi & JD BECK. Sim, é mesmo assim tão bom.”


[Maria João & Carlos Bica Quartet] Close to You (JACC)

De crítica publicada no Expresso:

“A escuta de música nas plataformas de streaming quase tornou obsoleto o acto de ir acompanhando essa escuta com a leitura das fichas técnicas dos discos. E a verdade é que a informação que se descobre impressa nas edições físicas pode ser tremendamente reveladora. Tome-se o caso do novíssimo Close to You, álbum que volta a cruzar, volvidas três décadas, os caminhos de dois símbolos maiores do jazz nacional — os da cantora Maria João e do contrabaixista Carlos Bica. Pode dessa forma descobrir-se que o material aí reunido se gravou em vários palcos — dos Festivais de Jazz de Sintra, Badajoz, Canárias e Sevilha e ainda no Pátio do Palácio da Galeria, em Tavira. Música registada em palco por pessoas em sintonia absoluta. Música criada em intensa partilha com aplausos a recompensarem a entrega colectiva. Música viva, portanto.

Maria João explica: ‘Este reencontro começou depois do Carlos ir ver um concerto meu no Hot Clube. Numa conversa de amigos, tentámos chegar ao que pensamos ser aquilo que seria a música que faríamos juntos, neste momento’. E como o adágio garante que dar dois passos atrás é sempre boa estratégia para chamar o futuro, a dupla decidiu ir buscar reportório à história. Escutam-se espíritos presentes e ausentes de Joni Mitchell, da dupla Lennon & McCartney, de Burt Bacharach e Hal David, de John Lennon e Yoko Ono, de Louis Armstrong. E ainda peças de Bica e Maria João. Close to You é também feliz encontro de gerações, já que os líderes chamaram para a sua beira o pianista João Farinha e os guitarristas Gonçalo Neto e André Santos. Juntos, os cinco artistas criaram música de delicada sofisticação, de funda força espiritual, capaz de transformar um standard como ‘Norwegian Wood’ em mágica matéria diáfana que nos envolve e faz sonhar com filmes que não existem ainda. E depois reduzir ao essencial a maravilhosa ‘What a Wonderful World’, com as cordas de Bica e Maria João em diálogo tão delicado que comove.”


[Mário Costa] Chromosome (Clean Feed)

Da coluna Notas Azuis:

“Em entrevista ao Rimas e Batidas, o baterista Mário Costa fala longamente sobre o processo que conduziu a Chromosome, o seu mais recente trabalho como líder e para o qual conta com os préstimos de Cuong Vu no trompete, Benoit Delbecq no piano, sintetizadores e samples e Bruno Chevillon no contrabaixo. Explica-nos ele que para escrever para estes músicos usa um ‘método tradicional’: ‘Escrevo as composições em papel, na folha. Tenho um piano e, de forma muito rudimentar, chego lá. Neste disco, grande parte das composições foram feitas ao trompete. Queria que fosse uma coisa natural para o trompetista’, refere Costa que também teve formação nesse instrumento. O resultado, sublinhe-se sem rodeios, é espectacular e deveras excitante.

O que se percebe imediatamente, logo após soarem as primeiras notas, é que este é u projecto muito intencional: Costa escreveu a pensar em cada um destes músicos, nas suas personalidades artísticas, no seu som. E com Cuong Vu bem no centro deste trabalho, a luz não demora a envolver-nos. O trompetista acumula créditos (só para citar os mais recentes) em trabalhos de David Bowie, Myra Melford ou Michael Brecker e possui um currículo extenso que recua à primeira metade dos anos 90. Por outro lado, Bruno Chevillon já provou o que vale em registos liderados por respeitados criadores como Louis Sclavis, Michel Portal ou Daniel Humair, enquanto Benoît Delbecq tem sido capaz de responder a solicitações de outros nomes de referência como Evan Parker, Mark Turner ou Mary Halvorson. Esse imenso saber é aplicado nas angulosas peças que Costa gizou e a audição repetida de Chromosome torna evidente que o encaixe entre os quatro músicos resultou na perfeição: Costa, Delbecq e Chevillon gozam de um entendimento absoluto, com cada um a mostrar de forma eloquente ser capaz de escorrer, como água, para o receptáculo que todos criam, num fluxo constante de formas, pulsares, cores tímbricas. O tema-título é um bom exemplo, com uma tremenda exposição baterística que depois suporta uma abstracta paisagem, onde pontuais bleeps electrónicos e efeitos se colam a uma nota solitária de contrabaixo numa tranquila explosão de exuberância rítmica. E sobre essa sólida estrutura, Vu mostra-se depois em exímia forma, um fraseador de enormes capacidades melódicas que ainda assim soa económico, contido, sem ter necessidade de grandes acrobacias para demonstrar que é capaz de nos prender a respiração.

Enrico Rava não tem dúvidas, quando escreve para as liner notes: ‘Adoro isto. Quanto mais escuto, mais adoro. As composições são muito inspiradoras. Sem notas desnecessárias. Quatro mestres que tocam com uma interacção surpreendente. Cada músico dá o que é necessário e recebe o que precisa, como numa democracia ideal e perfeita. Eu posso sentir o prazer que eles tiveram ao tocar juntos. Magia’. Verdade. Podemos todos.”


[Move] The City (Clean Feed)

Da coluna Notas Azuis:

“Yedo Gibson nos saxofones, Felipe Zenícola no baixo e João Valinho na bateria: um trio aparentemente clássico que, no entanto, pouco ou nada demora a implodir (literalmente) qualquer expectativa quando, logo no primeiro momento, nos leva onde já antes foi a Naked City para uma sessão de porrada aural que só nos faz bem: um bem assente murro no estômago pode servir para abanar a letargia, certo?

Yedo é um monstro capaz de transmutar o saxofone numa máquina de soprar tempestades, dono de um incansável par de pulmões (de facto soa como se tivesse dotado de três ou quatro…), João tem, obviamente, uns 8 ou 12 membros (tenho a certeza de que são múltiplos de 4), um verdadeiro Dr. Octopus com consideráveis super-poderes rítmicos, e Felipe Zenícola é um headbanger que se mostra bem capaz de ensinar uma coisa ou duas ao Robert Trujillo se estiver para isso. Juntos, movem-se como um só, qual avalanche montanha abaixo (não é lava, que essa escorre devagarinho…), submergindo-nos sem apelo nem agravo. O disco foi gravado no Desterro, nesta Lisboa que treme, e, portanto, é precioso documento da intensidade desterrada que se libertou ali está a fazer um ano. Quem não esteve presente e sentiu esta avalanche em directo pode agora captar um pouco dessa gigante descarga de energia. E suar também.”


[Raquel Martins] Empty Flower

Da reportagem de David Pimenta na apresentação de Empty Flower no Festival Novembro Jazz:

“Foi com distinção que Raquel Martins cumpriu a missão de abrir a programação 2023 do festival Novembro Jazz. A sua apresentação na Casa da Criatividade, em São João da Madeira, marcou igualmente a sua estreia em solo nacional à frente de um quarteto, forma mais expansiva de enquadrar a delicada música que conquistou justas atenções internacionais com Empty Flower, segundo EP da sua carreira, lançado já este ano.

Com o muito experiente Iúri Oliveira nas percussões, Hugo Piper no baixo e Tomás Parada na bateria, Raquel explorou toda a complexidade rítmica das suas criações oscilando entre o que ela mesmo descreveu como ‘canções alegres e canções tristes’. Raquel não esconde, muito pelo contrário, que estas canções são auto-retratos, mas de momentos muito específicos da sua vida passada, ainda que, por contar apenas 24 anos, esse passado seja, muito naturalmente, um quase presente. São canções — explicou ela num português que já vai cedendo espaço ao inglês com que convive e cria diariamente em Londres, onde reside já há seis anos — sobre a ideia de “casa” entendida por quem se encontra por vezes perdida entre lugares, ‘entre cá e lá’, como referiu, e também sobre a procura de uma identidade, sobre o amor e as relações. Sobre, enfim, a vida. 

Sempre muito comunicativa, com um fino sentido de humor — ‘Tentei explicar ao Hugo o que são ovos moles… soft eggs não chega bem lá’, disse a dada altura —, Raquel fez com elegância um trabalho difícil: o de conquistar uma plateia que desconhecia por completo a sua obra. Dessa forma, o que tocou as pessoas não foi a familiaridade ou a exploração da ligação emocional que se constrói com uma qualquer canção que possa tocar com insistência na rádio — esse dia ha-de, inevitavelmente, chegar mais tarde ou mais cedo… —, mas o encontro com uma artista genuína, que se apresenta sem truques, sem quaisquer outros argumentos que não sejam a beleza da sua arte e a sua capacidade de a apresentar de forma honesta e ultra-sentida”.


[Rodrigo Amado The Bridge] Beyond the Margins (Live) (Trost)

De crítica publicada no Expresso:

Beyond The Margins é uma intensa peça de 40 minutos em que o saxofonista Rodrigo Amado, o pianista Alexander von Schlippenbach, o contrabaixista Ingebrigt Håker Flaten e o baterista Gerry Hemingway fazem exactamente o que o título sugere: ignoram o mapa e aventuram-se para lá do território cartografado com a absoluta determinação de quem sabe exactamente onde quer chegar, mesmo desconhecendo o terreno e os obstáculos que tem por diante. Neste álbum registado ao vivo em Varsóvia, na Polónia, Amado desbrava o caminho, voltando a ter o sábio e veterano Schlippenbach como harmónico tónico que lhe permite, autenticamente, escalar montanhas, como as que referencia na segunda peça, ‘Personal Mountains’, em que o seu diálogo com o pianista soa inquisitivo e profundo.

O saxofonista português ergueu no último par de décadas uma impecável reputação que lhe permite ter um lugar cativo no panteão internacional de improvisadores, assumindo-se como uma ponte — e lá está a outra parte do título — entre tradições, continentes, eras e práticas: o seu conhecimento profundo dos pilares desta arte, do Sonny Rollins de The Bridge (outra razão para o título) ao conjurador de espíritos Albert Ayler — cujo clássico ‘Ghosts’ é, aliás, aqui brilhantemente revisitado —, sustentam parte importante do seu saxofonismo, mas há na sua música uma outra componente, uma dimensão vibrante e destemida que resulta de uma filosófica abordagem à invenção instantânea e de uma crença absoluta na energia que se liberta deste tipo de encontros com outros criadores que partilham da mesma determinação exploratória. Daí a assinalável quantidade de aventuras em que Amado se envolve com músicos de múltiplas latitudes, tanto geográficas como estéticas. E em todas essas frentes Amado impõe-se com a inabalável autoridade que decorre de quem encontrou uma singular perspectiva para uma arte que permanece em constante estado de revolução. E isso é obra.”


[Rodrigo Brandão] Outros Estado (Comets Coming)

Notas de apresentação no Bandcamp assinadas por Brian Jackson:

“A verdade é difícil de ouvir. Mesmo na música. Mas posso dizer-vos que, quando a ouvimos realmente, é bela, como o som mais doce que alguma vez ouvimos. Esta música é assim. A poesia de Brandão é assim. Baixem as vossas defesas quando ouvirem. E ouçam com a mesma vulnerabilidade crua com que foi criada. É aí que encontrarão a beleza”.


[Susana Santos Silva & Fred Frith] Laying Demons To Rest (Rogue art)

De crítica publicada no Expresso

“Fred Frith é um veterano septuagenário que ainda toca como quem acaba de abrir os olhos e começa a descobrir o mundo. O currículo deste guitarrista britânico é qualquer coisa e, muito resumidamente, inclui trabalho feito em colectivos que se estendem dos Henry Cow aos Naked City de John Zorn, passando pelos Art Bears ou, entre tantos outros, os Material de Bill Laswell. Susana Santos Silva, por outro lado, é uma trompetista portuguesa actualmente baseada em Estocolmo que tem deixado forte marca nos terrenos mais avançados do jazz moderno e da livre improvisação, dirigindo os seus próprios projectos ou colaborando com outros nomes-chave dessas cenas como, por exemplo, Kaja Draksler e Mats Gustafsson. Não é a primeira vez que ambos se cruzam: Road, edição da Intakt de 2021, é um registo creditado ao Fred Frith Trio em que Santos Silva e a saxofonista dinamarquesa Lotte Anker surgiam como convidadas. Mas esta é a sua primeira gravação em duo: Laying Demons to Rest é um improviso de 42 minutos gravado no âmbito do Festival Météo, em Mulhouse, França, para a rádio pública gaulesa.

O diálogo (nunca é um duelo…) é intenso e imaginativo: os dois artistas falam, claramente, a mesma língua, entendendo os seus respectivos instrumentos — e os seus bem distintos percursos — como ferramentas e bagagem que lhes permitem atingir um estado de dissonante abstracção de onde emergem desafiantes quadros sónicos. Esta é música exploratória na mais funda acepção do termo, um trabalho que procura um novo lugar que se faz de drones e faíscas, de tangentes melódicas e de sopros primordiais, de encaixes e desajustes, de fugas e colisões, mas sempre, absolutamente sempre, de genuína curiosidade em relação ao outro. Dessa forma, as confluências e as divergências servem o mesmo propósito, encontrar, como escreve nas notas de capa o co-fundador dos Henry Cow Tim Hodgkinson, uma ‘presença ausente’. Talvez um dos demónios a que alude o título.”


[Tó Trips] Popular Jaguar (Revolve)

De crítica publicada no Expresso

“É um cavalheiro maduro, de fato sobre camisa aberta, cabelo branco farto, mas algo desalinhado, o que se apresenta em monocromática penumbra na capa de Popular Jaguar. Talvez o título deste terceiro disco em nome próprio de Tó Trips referencie o popular modelo de guitarra da Fender, lançado algum tempo antes antes do guitarrista ter nascido no ano que apontava na sua estreia a solo, Guitarra 66 (2009). Ou talvez o membro do Club Makumba, que já antes tinha tocado uma Guitarra Makaka (2015), goste simplesmente de animais exóticos, daqueles que se movem entre densas folhagens em latitudes plenas de mistérios. Porque a sua música também vive desses mistérios. Por exemplo: como podem filmes inteiros desprender-se dos seus dedos? Em ‘O Processo de uma Aparição’ isso é nítido: há uma fonte no meio de uma praça deserta, toda ela erguida sobre pedra gasta pelos séculos, em que um homem aguarda que alguém surja numa varanda onde, no entanto, só é visível um cortinado que esvoaça agitado pela brisa nocturna. A sério que está lá isso tudo. E tanto, mas tanto mais.

Na música que nos entrega em Popular Jaguar, toda ela feita de ecos, há drama e sensualidade, há fado e morna e flamenco, há cinema e aromas de laranjeiras, há cidades velhas e desertos ainda mais antigos, vielas e pouca luz. E há pontuais encontros: com o contrabaixista António Quintino numa casa de fados da velha Alfama, com a acordeonista Sandra Batista numa capela abandonada no meio do Alentejo, com o saxofonista Gonçalo Prazeres num prostíbulo napolitano e com a violoncelista Helena Espvall num qualquer espaço amplo sob uma abóboda, talvez mesmo no meio da foto de Ewing Galloway do grande átrio de Central Station, em Nova Iorque, iluminados por aquela mesma luz sépia que nos captava a imaginação a partir da capa de ‘Glória’, o primeiro single da Sétima Legião que Tó poderá ter segurado nas mãos ainda adolescente. Tantas são as histórias que se podem contar sem o amparo exclusivo das palavras. Uma guitarra pode bastar. Ou então uma câmara fotográfica apontada na direcção certa.

Paralelamente a Popular Jaguar editou-se também Ínfimas Coisas, um ‘Road & Roll Book by Tó Trips’, como refere o subtítulo. Aí, o músico cruza textos breves, com histórias ou poesia electrificada por memórias, e fotos a preto-e-branco de camarins de clubes e de botas de pele de cobra, de camas desfeitas em quartos de hotel e de bombas de gasolina, de cidades de néon e de lugares remotos para onde a música o chamou. E dentro do livro há um single, que transporta quem o escuta para lá de Marraquexe. Há lá melhor maneira de viajar.”

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