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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/09/2023

25 anos de música livre.

Carlos Barretto Lokomotiv: “Convidámos o Toscano porque ele é… camaleónico”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/09/2023

Três experientes feras mais um jovem leão entram num bar. Que acontece a seguir? Partem a casa toda, certamente. Amanhã, 1 de Outubro, o Spacy Club, nas Caldas da Raínha, resistirá bravamente — não temos dúvida — à primeira apresentação do novo trabalho do Lokomotiv, poderosa unidade livre em que além do contrabaixista militam ainda os enormes José Salgueiro nas percussões e Mário Delgado nas guitarras e que celebra agora 25 anos de caminho trazendo para a sua beira o saxofonista Ricardo Toscano.

Em dia agitado, o Rimas e Batidas sentou-se à mesa com Carlos Barretto, ali pela zona do Beato, em Lisboa, para passar em revista esses 25 anos de barulho bom, o novo registo em que a locomotiva ganha mais tracção com a conquista de um motor adicional e o futuro possível. Além do concerto deste domingo, 1 de Outubro, os Lokomotiv têm igualmente agendada apresentação para o próximo dia 18 de Outubro, pelas 19 horas, no Liceu Camões, em Lisboa.



Vamos começar pelo princípio: como é que esta Locomotiva começou a andar? Ainda te lembras?

Lembro-me, lembro-me. Já lá vão 25 anos, não é?

Ou seja, foi anteontem [risos].

Foi [risos]. Nessa altura andava a fazer um jazz mais mainstream e estava um bocadinho cansado, apetecia-me abrir para coisas novas, outro tipo de sonoridades. Pensei no Mário Delgado e no José Salgueiro e convidei-os para fazermos algo em conjunto, porque eu sabia que ambos eram músicos bastante ecléticos. O Mário, por exemplo, tanto tocava rock, como pop, como depois ia para um jazz, usava pedais com aquelas sonoridades diferentes… Isso era uma coisa que me interessava. O Salgueiro também era um músico que, naquela altura, para além do jazz, entrava na música contemporânea, na música popular portuguesa e essas coisas. Eu estava, de alguma forma, interessado em incorporar esse tipo de elementos na nossa futura música. Eu pus-me a compor coisas já a pensar neles. Foi assim que a coisa começou. Depois foi evoluindo, fomo-nos transformando mais em direcção à coisa do jazz europeu, misturávamos coisas do rock com música contemporânea e world music… Um bocado de tudo. A evolução foi sempre no sentido de termos cada vez mais improvisação, servirmo-nos dos elementos que existem em termos de ritmos — grooves desde o rock ao swing. Por vezes, quebrando a questão das harmonias, coisas com muitos acordes. Foi assim que as coisas evoluíram.

Como é que os gatekeeprs do jazz da altura entenderam o projecto?

Pois, na altura foi um bocado difícil, visto que eu estava um pouco conotado com o jazz mais clássico, mais mainstream, e de repente ponho-me a fazer outras coisas… Foi um bocadinho estranho ao princípio, mas depois… Como dizia o Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” [Risos] A coisa foi andando. O facto é que nós dávamos concertos e tínhamos uma boa adesão do público, então fomos andando por aí até chegar ao que somos hoje. Temos sempre bastante público nos nossos concertos, as pessoas gostam e é isso que me interessa. Os críticos? Estou-me a borrifar para isso [risos]. Se houver más críticas, pois que haja. Isso não me interessa.

Mas também não se podem queixar nesse departamento, porque as coisas foram-se encaixando a partir de dada altura, ou não? O reconhecimento da validade da vossa visão surgiu, certo?

Sim, sim. Fomos caminhando para um tipo de jazz, se calhar, mais europeu, que é sempre mais aberto, se alimenta de regionalismos até, de coisas diferentes. Ao passo que o jazz americano não, ficou sempre naquela estaca do swing. Penso que quem escreve percebeu isso.

Essa preocupação idiomática — e já lá vamos ao swing — era importante na vossa arquitectura sonora? Vocês sentiam algo do género: “O que nós estamos a fazer diverge da raiz do que as pessoas entendem como jazz”?

Eu não diria que nós divergimos, foi mais um incorporar de diversas influências musicais de outras geografias. Isso correspondeu a uma necessidade interior que nós tínhamos de, no fundo, abrir a coisa. Nós fomos ao encontro das nossas vontades.

Ainda hoje se discute no jazz o que é que é esta coisa do swing, não é? Eu entendo a ideia do swing como uma noção cultural de sintonia. São músicos diferentes a entrarem no mesmo comprimento de onda para poderem comunicar.

Sim.

Só que se pensou muito no swing como sendo uma coisa muito rígida, que tinha a ver com algum tempo rítmico, com uma estrutura de cadência muito definida. Eu vejo a coisa de uma maneira muito diferente: certamente que alguém com raízes em África tem um entendimento diferente do swing e outra pessoa no norte da Europa terá um outro entendimento diferente. Vocês começaram a assumir, até mesmo pela ligação do José Salgueiro às músicas populares, que o swing poderia ter outros balanços, não é?

Sim. Vamos lá ver: quando nós dizemos a palavra “swing”, em termos jazzisticos isso tem uma rítmica própria [imita um ritmo com a boca]. É uma coisa que é própria do jazz. Mas qualquer outro tipo de balanço rítmico nos pode levar a dizer: “Olha, isto está a swingar!” O que interessa é que existem alturas em que gostamos de usar um groove que tanto faz ser de rock, de jazz ou o que for. Até mesmo tipos de compassos mais compostos. O importante é que a coisa groova. Mas também tempos com partes mais livres, digamos assim, em que criamos ambientes sonoros que não têm ritmo. Outras vezes criamos ambientes onde não há harmonia. São contrastes que gostamos de fazer. Há partes mais free, outras que vêm de coisas escritas, depois podemos partir novamente para uma improvisação colectiva, enfim. Nós gostamos de mostrar tudo e é isso que o público gosta, porque fica surpreendido. Se forem a um concerto a pensar que vão ouvir o mesmo groove do princípio ao fim… Não é! Temos sempre surpresas dentro de cada tema. O publico fica surpreendido e gosta por isso mesmo.

Entretanto passaram 25 anos. A própria cena do jazz transformou-se muito nesse período, não foi? Como é que vocês vêem isso, enquanto participantes activos mas também enquanto observadores?

Na altura, quando começámos, nos anos 90, penso que foi quando se deu o boom do jazz em Portugal. Apareceram muitos músicos, festivais, lojas como a FNAC, as escolas de jazz… Houve toda essa evolução e isso favoreceu-nos, porque aparecem muitos concertos e festivais, com as Câmaras Municipais a organizarem coisas também. Nós explorámos isso um pouco.

Portugal podia ser um case study. Para uma música supostamente marginal, não dependente das dinâmicas comerciais — de tocar nas rádios, etc. — estabeleceu-se aqui um ecossistema que permite a um músico de jazz sobreviver a tocar uma música mais livre, não é? Através de uma série de festivais e assim. Isso é impressionante, porque permitiu o florescer da vossa geração e das novas gerações, não é?

Sim, sim. Pessoalmente, eu sobrevivo e vivo de tocar música improvisada. Simplesmente tenho que colaborar com variados projectos. Não me vou cingir só ao meu grupo. Sou convidado para entrar noutros projectos que eu aceito e gosto de fazer, até porque eu gosto de toda a música. Mas também existe a necessidade de ir sempre tendo concertos.

Essa é uma característica que, aliás, é comum aos teus outros colegas de projecto, não é?

Exactamente.

Tanto o Mário como o Zé são músicos com cabeça muito aberta e uma agenda diversa.

E isso são coisas que só enriquecem o universo sonoro deles. No fundo, o contributo deles é um bocado um apanhado de todas as coisas que eles fazem, que eu gosto e eu próprio também o faço. É assim que nós nos vamos mantendo. Vamos criando a nossa música, todos nós compomos e temos a necessidade de, de vez em quando, fixar os repertórios em gravação, para fazer um bocado de barulho à volta.

E antes de falarmos deste registo discográfico, que balanço é que fazes destes 25 anos?

Nem tudo são rosas, não é? Em 25 anos temos tido muitos altos e baixos, mas de uma forma geral temos mantido a nossa actividade bastante bem. Às vezes com mais concertos, outras vezes com menos. Mas penso que agora, com o lançamento deste disco, vamos reiniciar um bocadinho aquela fase de ter bastantes concertos ao vivo.. Também quero falar da inclusão do Ricardo Toscano.

Por favor! Eu ia fazer-te essa pergunta, mas podes falar já sobre o assunto [risos]. Porquê o Toscano?

Porque é alguém que eu vi, que eu topei, e que… Ele é camaleónico. Ele tem uma facilidade enorme em se adaptar a qualquer tipo de situação. Sendo um músico de jazz, ele gosta muito de Coltrane e essas coisas. Eu disse-lhe: “Aqui não é Coltrane [risos]. Vais ter de pensar que não és tu, ou que és tu mas que vais tentar tocar aquilo que ouves e vais reagindo. Isto não é aquela coisa do ‘agora sola o sax e depois sola a guitarra’. É uma coisa colectiva e tu vais reagindo consoante o que vais ouvindo.”

Foi esse o briefing que lhe deste?

Foi, um bocadinho [risos].

E o que está neste disco foi gravado num dia?

Em dois dias.

Houve ensaios prévios?

Sim. A única maneira que nós conseguimos foi irmo-nos encontrando uma vez por semana. Eu fui trazendo temas, depois o Mário trouxe um ou dois, o Salgueiro também. Fomos trabalhando o material nesses ensaios, visto que ainda não tínhamos concertos previstos.

E gravaram onde?

Gravámos no Canoas Estúdio, em Torres Vedras. É um bom estúdio. Gravámos lá por questões de agenda, foi ali que conseguimos realizar a coisa. Dois dias foi um bocadinho curto, visto que o material não estava rodado em termos de concertos. Eu gosto sempre de rodar a banda ao vivo antes de ir para estúdio. Neste caso não foi possível, mas fizemos aí uns 10 ensaios, mais ou menos, para montar este repertório todo. Chegámos ao estúdio e em em dois dias gravámos.

Foi meter a gravar e “‘bora lá”.

Sim. Um ou dois takes de cada tema.

O primeiro concerto vai ser a 1 de Outubro nas Caldas da Raínha, é isso?

Sim. No Spacy Club, que é um espaço onde se fazem muitos concertos e onde cabem 200 e tal pessoas. Eles têm produção própria e convidaram-nos para ir lá. Esse vai ser o primeiro concerto.

Existe algum ritual antes de um concerto de Carlos Barretto Lokomotiv?

Um ritual? [Risos] O ritual é jantar bem e fazer a festa.

Não há propriamente uma planificação? Quão livre é o momento em que vocês entram num palco?

Nós criamos um alinhamento. Normalmente, quando estamos a jantar no restaurante, tiramos uma folha de papel, escrevemos lá um alinhamento e tentamos segui-lo. Há temas mais vivos, outros com mais espaço, e nós tentamos criar contraste. É este o único ritual que fazemos. Depois, as coisas ao vivo podem variar um bocadinho consoante o que está a acontecer, consoante a reacção do público.

A cena jazz, tanto em Portugal como no mundo, é muito diferente em 2023 do que era em 1998, não é? Sentes que há novos públicos no jazz em Portugal?

Penso que sim. O público para jazz e músicas criativas está a evoluir e há muita malta jovem receptiva. Aparecem muitos jovens nos nossos concertos. As pessoas mais da minha idade não aparecem tanto [risos]. Se calhar ficam um bocadinho assustadas com as sonoridades que nós temos. Mas as coisas correm bem e acho que cada vez há mais público, sim. E mais músicos. Há mais de tudo.

Há perspectivas internacionais para este registo e para esta formação?

Assim em concreto, ainda não há nada, porque isto está mesmo a nascer agora. Mas temos alguns contactos internacionais, na Bélgia, Suiça… Vamos ver. Andamos a tratar disso.

Eu tenho passado algum tempo com o Ricardo e uma coisa que tem sido recorrente nas nossas conversas tem sido isso. Tendo em conta o talento e o nível do jazz em Portugal, às vezes fico um bocado intrigado ou estupefacto. Porque é que a nossa cena não tem maior projecção internacional, como as cenas nórdicas, por exemplo, entendes?

Entendo, sim. Cada país da Europa tem os seus músicos e são muito poucos os que furam pela cena internacional. Nós olhamos aqui para o lado, em Espanha, e não vemos muitos grupos espanhóis a virem tocar a Portugal, tal como não há grupos portugueses a ir tocar a Espanha…

Achas que isso é resultado de uma falta de estratégia a nível cultural nacional?

Pode ser, mas não só nacional. A nível europeu, deveria haver mais intercâmbio. Existem uns poucos festivais que são apoiados pela União Europeia e que tentam fazer mostras do melhor que se faz em cada país. Faz-se um festival com músicos que vêm de França, Inglaterra, vários países europeus. E isso serve mesmo para comunicar o que é que se faz nos outros países europeus. Acho que faz falta, por exemplo, um canal televisivo, como o Mezzo, que fizesse mostras de grupos de toda a Europa. Talvez isso ajudasse a divulgar um bocadinho, porque nós não conhecemos praticamente os músicos que vêm de França, tal como França não conhece os músicos portugueses. São muito poucos os que furam e conseguem entrar num nível mais internacional. Depois, nós também não temos propriamente uma agência, não temos bons contactos a nível de rosters internacionais que programem…

No vosso caso, a coisa continua a funcionar de forma muito orgânica? És tu que programas os concertos?

Eu conheço várias agências em Portugal que trabalham com o jazz. Mas nós não estamos “casados” com ninguém, porque isso não é muito benéfico para um artista, em termos de jazz e músicas criativas, porque ficas ali agarrado a uma agência com um contrato de exclusividade e é difícil quando eles não te arranjam concertos, porque tu também não podes ir arranjar por outros lados. O que nós fazemos é convidar as agências todas e: “Olhem, temos aqui o nosso novo projecto. Se quiserem, estão à vontade para arranjar concertos.” E é assim. De vez em quando recebo telefonemas: “Olha, arranjámos aqui um concerto.”

O que é que sentiste quando ouviste o master disto?

Eu estava um bocadinho apreensivo, mas depois das misturas feitas fiquei agradavelmente surpreendido.

Então, porque é que estavas apreensivo?

A minha relação com o estúdio é sempre muito complicada, fico muito ansioso e stressado.

Depois destes anos todos ainda é assim?

Exactamente [risos]. Ouço o resultado e a coisa não me parece estar assim tão bem… Depois a mistura afina e arredonda as coisas. “Epá, afinal está a soar melhor do que aquilo que eu pensei.” É assim.


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