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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/03/2023

A verter música cósmica, gota a gota.

Azar Azar: “Não sei se o que faço é jazz, mas também não sei bem o que é que hoje em dia é o jazz”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/03/2023

Sérgio Alves tem muita sorte. Tem, nomeadamente, a sorte de poder criar o que a sua imaginação dita. Não terá tanta sorte a encontrar lugares de estacionamento, como nos explica quando, no quartel-general da Jazzego, no Porto, começamos por falar sobre o nome artístico que escolheu – Azar Azar. Coube-lhe a ele a honra de inaugurar o catálogo desta jovem editora do Porto, em 2020, com um EP digital em que ousava mexer em Bitches Brew, de Miles Davis, partindo dessa matéria para ensaiar uma primeira viagem ao espaço. Azar Ep e o projecto colaborativo com Maze, MC dos Dealema, Sub-Urbe Volume 1, que saiu com selo da Monster Jinx, foram os capítulos seguintes que nos trouxeram até este Cosmic Drops, trabalho que hoje mesmo aterra nas plataformas digitais, que merece edição em vinil e apresentação ao vivo, no Ferro Bar, no Porto. Sérgio já sabe também que vai levar o seu quinteto até à programação do Novembro Jazz, que no próximo Outono ocupará vários fins-de-semana da Casa da Criatividade, em São João da Madeira.

Na conversa que se segue conta-nos como o disco surgiu, como chegou à música e o que planeia daqui em diante. A sorte não é para aqui chamada. Já o azar tem eco e diz-se duas vezes.



Há uma compilação dos Pink Floyd que se chama Why Pink Floyd?, isto porque, quando os Pink Floyd apareceram, o jornalismo musical ainda estava na infância e uma pergunta que lhes colocavam sempre era “why Pink Floyd?” — “porque é que vocês se chamam Pink Floyd?” Eu tenho de te fazer a mesma pergunta: Why Azar Azar?

Se estivesses muito comigo já tinhas percebido. Para vir para aqui, por exemplo, eu dei duas voltas ao quarteirão para tentar arranjar lugar aqui à porta. Entretanto fui estacionar no Palácio e quando cheguei aqui, a pé, tinha um lugar à porta.

É literal, portanto.

É [risos].

E não bastava ser Azar. Tem de ser Azar duas vezes.

Eu tentei usar duas vezes para ver se anulo o primeiro, mas não está a funcionar [risos].

Fala-me um bocadinho sobre o teu percurso até chegares aqui. Que tipo de formação tiveste e por que tipo de bandas é que andaste antes deste teu projecto se ter cristalizado?

Eu estudei música. Estudei piano clássico, piano jazz.

Estudaste onde? Na ESMAE?

Na ESMAE estudei produção musical e também fiz a parte de composição jazz. Estudei piano jazz em aulas particulares com o Paulo Gomes, que é um pianista de jazz aqui do Porto. Estudei na Escola de Jazz do Porto e, antes, tinha estudado piano clássico na Oscar da Silva. Tive aulas de composição particulares, mesmo à antiga, num café. Tive aulas de orquestração. Tive aulas de uma data de coisas. O meu percurso começa aí, em miúdo, e aprendi muita coisa. Os meus pais tinham um bar e eu comecei a trabalhar nesse bar com 11 anos, numa noite de passagem de ano. Lembro-me do DJ da casa me perguntar se eu queria fazer um mix. Eu disse, “quero”. A partir daí, a minha vida destruiu-se para sempre [risos]. O bar dos meus pais também tinha música ao vivo.

Como se chamava o bar?

O bar era o Túnel! Porque aquilo tinha um túnel, era assim uma cena [risos]. A partir daí a minha vida acabou. Comecei a derreter o dinheiro todo em discos. Mas o bar também tinha bandas ao vivo, eu tocava e fazia o som às bandas. Quando os músicos saiam, eu aproveitava para ir para os synths, antes de os ter. Foi um bocado isto o que aconteceu. Entretanto, tudo isto da música era muito importante, mas o que eu queria mesmo era ser pintor [risos]. Pintor ou jogador de basquete, que também era outra das minhas paranóias. Eu e o Mané [Fernandes] até já falámos sobre isso: para tu seres um bom músico de música negra, tens de gostar de basquete. Eu jogava basquete, mas os horários… Eu jogava no Porto e aquilo era muito tarde. Era uma cena muito competitiva, muito profissionalizante, e os treinos acabavam quase à meia noite. Eu tive de desistir. A minha mãe, por outro lado, também me ajudou a desistir da ideia de ir para artes. Eu queria ir para a Soares dos Reis e, depois, para Belas-Artes, mas ela não era muito adepta dessa possibilidade, tinha medo que eu me perdesse enquanto artista para o submundo [risos]. Acabei por ir para ciências e aí a música começa a assumir um papel mais importante. Naquela altura, anos 90 e início dos 2000, a música electrónica era uma cena muito estimulante.

És um rapaz de que colheita?

De ’81. Comecei a passar música cedo e, então, a música clássica era muito… Digamos que o ensino clássico está muito estagnado e a música electrónica era super-vibrante. Havia a cena underground dos anos 90. Eu comecei a passar discos, apareci como “New DJ” na Dance Club, na altura. Passei música no Rocks, naquelas festas todas. Lembro-me de um episódio engraçado: quando saí na Dance Club como “New DJ”, ligaram-me do Frágil, porque tinham visto a playlist e tinham achado super-fixe. Perguntaram-me se podia ir lá fazer um DJ set, mas eu tinha 15 anos e vivia aqui, no Porto. Perguntaram se podia ir numa quarta-feira, acho, e eu disse: “Sim. Adorava. Tenho só de ver com os meus pais, por causa da escola.” E eles, “como assim, por causa da escola?! Como assim tens de ver com os teus pais?! Que idade é que tu tens?” Disse que tinha 15. E eles, “falamos quando fores mais crescido.” Eu fiquei super-deprimido. Fogo, era incrível. E nunca lá fui passar música. Entretanto entrei em Psicologia. Quando estava no 12º ano, não sabia bem para onde ir. Fui para Psicologia por causa do meu professor de Psicologia do 12º, que também tinha uma banda e eu levei a banda dele a tocar ao bar dos meus pais. Dava-me super-bem com ele. E ele, “porque não Psicologia?” Pensei, “porque não? Vou para Psicologia.” Fiz Psicologia, achei um curso interessante, mas não era a minha cena. Aí a música parou um bocadinho. Deixei-me levar pelo espírito académico, digamos. Basicamente, deixei de encontrar piada na música de dança. Nessa altura eu já ouvia jazz, funk, essa música mais negra. Já ouvia tudo. Mas tocar… A minha cena era mais produzir para música electrónica, mas deixei de achar tanta graça. Houve ali aquele momento nos 2000’s, do brokenbeat, da editora Kami’kazz, da qual tenho uns vinis. Havia cenas das quais eu gostava, mas não sei, comecei a deixar de sentir a magia. Quando estava para acabar Psicologia, meti-me a estudar mais a sério o jazz. Eu sabia umas coisas mas nunca tinha aprofundado e, então, fui para Escola de Jazz, nos meus 20 e poucos. Eu acho que isso ainda foi durante a licenciatura. Aquilo não era bem o meu caminho. Tenho vários amigos assim, por acaso.

Havia alguma coisa que se passava na música portuguesa da altura que mais te tenha captado a atenção e puxado para este lado? Os Cool Hipnoise lançam o primeiro disco em ’95...

Sim. Os Cool Hipnoise são uma das minhas referências. Aliás, já disse isso ao João Gomes. Lembro-me do Viagens, do Abrunhosa. Havia outras coisas das quais gostava. Mais até do jazz. Em casa tinha vinis do Pinho Vargas, do Mário Barreiros, do Mário Laginha. Eram coisas que já existiam. Eu ouvia, mas a minha cena era mais “fora”.

Dirias que encontraste uma forma de equilibrar essas duas dimensões?

Sim.

Embora tenha sido o teu álbum de estreia a dar vontade ao André e ao Hugo de criarem esta editora, o teu primeiro lançamento pela Jazzego é aquela reivenção de um dos discos mais fracturantes do Miles Davis. Porquê aquele e não outro? Qual foi a razão para te atirares ao Bitches Brew?

Para já, porque o Miles é o meu guru, a par do Herbie. São os músicos que mais venero. Há imensos que eu adoro, mas o Miles e o Herbie são aqueles… Tenho de ter tudo, os discos todos, mesmo que já tenha ouvido aquilo um milhão de vezes. Posso ter o CD, mas se vir o vinil, compro. Tenho mais que uma versão. Do Bitches Brew tenho duas ou três versões — tenho a versão do 40º aniversário, tenho o álbum e o CD. O Bitches Brew é um dos discos de que eu mais gosto.

Mas é uma fritaria.

É. Mas eu ouvia-o quando era miúdo. Lembro-me de ouvir quando tinha 16 ou 17 anos e aquilo era uma freakalhice. Eu adorei por causa disso. Eu comecei a ouvir disco, porque o DJ do bar dos meus pais adorava disco e introduziu-me ao disco. Do disco passei para o funk e fui dar aos Headhunters e não sei quê. A dada altura, estava a ouvir a fritaria do Miles e, “Uau! Isto é super-cósmico!”

E para responder às pessoas que dizem que aquilo não é jazz: aquilo é ou não é jazz?

Aquilo é liberdade, portanto é jazz. Acho que sim.

Grande resposta. Na altura em que apresentas a tua abordagem a esse trabalho do Miles, o teu álbum já estava a ganhar forma, é isso?

O Cosmic Drops já estava feito.

Composto?

Sim.

Mas não gravado, ainda?

Gravado ainda não estava. Estava tudo mais ou menos pensado, em MIDIs. Eu tinha o sax, por acaso, porque os saxes de MIDI são horríveis, então já tinha pedido ao Sam para gravar. Mas depois tinha aquilo tudo assim… Ainda não estava gravado nem pronto. Isso não.

Tu tens várias dimensões neste disco. És compositor, és músico e és arranjador. Fala-me da primeira dimensão, da composição. Isto é música que nasceu toda num determinado período da tua vida ou corresponde a um período mais alargado?

Foi tudo no mesmo período. Isto começou… O primeiro tema que eu fiz foi o “Space Coconut Conspiracy”. Fiz os temas todos mais ou menos seguidos. O primeiro ficheiro que tenho do “Space Coconut Conspiracy” é capaz de ser de Março ou Abril de 2019. O último ficheiro que eu tenho das maquetes será de Setembro.

Como é que é o teu processo de composição? Usas piano acústico? Fazes tudo em MIDI?

Eu tenho várias… Eu até posso ir no carro e ponho em risco a segurança rodoviária [risos]. Lembro-me de uma melodia, pego no telemóvel e gravo.

A cantarolar, é isso?

Sim. Depois, eventualmente, posso pegar naquilo ou não. Posso sentar-me ao piano e escrevo, mesmo à antiga.

Tens um piano acústico, branco como o do Liberace, ali no meio da sala?

Branco não [risos]. É pena. Adorava que fosse branco. Tenho de o pintar. Mas pode ser no piano, como pode ser à beatmaker style, em que começo com um sample, um beat… Com uma linha de baixo é raro. Acho que nunca comecei nenhum tema pela linha de baixo.

Então as composições para este álbum são datadas de 2019/2020. É por aí?

Sim. Há uma que é mais recente. Agora lembrei-me. É a “Miles Backyard”, que é de 2021. Eu fiz esse beat para uma outra coisa. Aquilo era um beat de hip hop, em que tinha um sample do Miles choppado para fazer a melodia. Depois, o que eu fiz foi desenvolver essa melodia e pedi ao Gileno para gravarmos. Gravámos, ele fez um solo e usei também no disco. Essa é a faixa mais recente.



Em termos emocionais, qual é a paleta de cores do disco? É um disco introspectivo, triste, alegre, revoltado? Como é que tu o vês?

As coisas que eu faço têm sempre uma vibe meio nostálgica, melancólica. É a minha onda dos anos 90 [risos]. Eu fui adolescente nos anos 90 e, embora não tenha sido do grunge, isso está dentro de nós. Mas acho que não tem nem uma cor muito depressiva nem é um disco muito eufórico. Acho que é uma coisa meio easy listening [risos]. Mesmo num tema ou outro que seja mais afro ou mais latino, que tenha essa vibe, também nunca são super-expansivos. É muito Europa do Norte, sempre muito contido.

Eu ouvi o disco, mas penso que não vi a ficha técnica. Quem é que está no disco a tocar? Há um grupo base?

Há. Na base estão, no baixo, o Bruno Macedo — excepto na “Miles Backyard”, que é o Pedro Ferreira —, o baterista é sempre o Ricardo Danin, os saxofones e a flauta são do Samuel Silva (dos Two-Time Winners). Nos temas que têm naipe de sopros, está o Seco no trombone e o João Sousa no trompete. Nas percussões está o Manu Idhra. Tenho a Beth Hirsch como convidada na “Dreaming Waves”. Tenho o Cardinho no vibrafone e tenho o Gileno. Acho que não me estou a esquecer de ninguém.

Como é que foi o processo de gravação? Foi mais tradicional, com a banda toda na sala?

Aquilo teve vários momentos. Por exemplo, o tema em que entra o Cardinho estava gravado, eu falei com ele e gravou-se em overdub. O Gileno também. Mas houve de tudo. Houve esse processo de ter toda a gente a gravar ao mesmo tempo, houve outras coisas que foi… Há sempre partes que foram gravadas com todas as pessoas ao mesmo tempo. Depois, houve coisas que foram acrescentadas ou retiradas. Mas como eu já tinha os beats, as maquetes, feitas de raiz, gravámos em banda com uma espécie de backing track. Também tenho samples em alguns temas.

Então houve muito Teo Macero em cima do disco? Houve muita edição, trabalho de corte e costura dessas sessões gravadas?

Isso não. O que foi gravado, ficou tudo mais ou menos como estava.

Sentes que tens influencias específicas nesse lado da orquestração e do arranjo?

Não sei. Acho que não. Gosto de um determinado tipo de arranjadores. Gosto daqueles clássicos do jazz que toda a gente gosta — Duke Ellington e coisas assim.

Dos Quincy Jones da vida?

Quincy Jones também, claro. Mas também gosto de Mahler. Adoro Mahler e, como estudei orquestração clássica, também… Mas eu não consigo perceber se coloco isso em prática, a menos que faça um arranjo de cordas.

Esta pergunta tinha uma razão de ser, que é: não sentes que o teu lado de DJ influencia os teus arranjos?

É possível. É muito possível.

É que eu acho que as tuas peças são muito DJ friendly nesse sentido. Parece que tem ali partes mesmo boas para misturar e passar para a seguinte. Eu vejo isso nomeadamente quando estou a montar o Notas Azuis — vejo as waves no programa de edição e percebe-se que quem montou aquelas estruturas ouviu maxis de dança, de certeza absoluta.

Isso ouvi. Ouvi muitos maxis. De facto, pode ser isso.

E como é que Azar Azar vai funcionar ao vivo? Temos falado sobre isso por causa de São João da Madeira e tu falaste-me num formato de quinteto e disseste que tens outro de trio ou de quarteto. Vais ter uma equipa fixa? A ideia de teres um grupo agrada-te ou vai ser o mercado e a agenda a ditarem isso?

Pois. A ideia de ter um grupo e de tocar com as mesmas pessoas agrada-me. Acho que, a dada altura, nós estabelecemos ligações, não é? Não é por acaso que escolhi aquelas pessoas para gravar o disco. Elas não foram escolhidas por serem as que estavam disponíveis. As datas é que foram marcadas de forma a coincidir com a disponibilidade deles.

Então, no disco, estão as pessoas que tu querias e não as que estavam disponíveis para aquele dia.

Sim. Depois, obviamente, a partir do momento em que o disco sai e é suposto tocá-lo ao vivo… Eu adoro o trabalho de estúdio, adoro compor, mas, ao mesmo tempo, também adoro tocar. Quando ando a tocar durante muito tempo digo, “já tenho saudades de fazer música e estar quieto no estúdio a compor.” Quando estou a compor durante muito tempo, tenho saudades da estrada e de tocar ao vivo. Sou como todos os outros músicos [risos].

O eterno insatisfeito [risos].

Sim. Mas, como é óbvio, quero tocar ao vivo. No entanto, os músicos que participaram no disco é malta que… Pronto, que trabalha. Muito.

Têm a sua vida.

Têm a sua vida e, felizmente, têm bastante trabalho. Como tal, poderei, eventualmente, ter de arranjar, em alguma circunstância, [outros] músicos.

E o ecossistema do Porto dá-te essa segurança? “Se não posso contar com este, tenho o número de um outro a quem posso ligar.” Hoje em dia, sentes que vives numa cidade com bastantes recursos humanos, nesse sentido?

Vai havendo. Do Porto… Mais do Grande Porto. O baterista é de São João da Madeira, por exemplo. O Fábio, o saxofonista que está a tocar comigo, está na Holanda e é de Vila Real [risos]. Mas sim, à partida sim.

Na entrevista com o André Carvalho e o Hugo Oliveira falou-se de partilhares um projecto com o João Mortágua. Ele é um músico que eu vejo como sendo desse tal universo, embora eu saiba que ele é um tipo de orelhas abertíssimas. Como é que a malta do jazz tem reagido quando lhes mostras a tua música?

Quando sou eu a mostrar, nunca reagem mal [risos].

Já te disseram do disco aquilo que há bocado mencionei que disseram sobre o Miles? “Isto aqui não é jazz.”

Não. Não disseram. Mas, se calhar, dizem quando eu saio, não é? [Risos] Não sei. Quando estão comigo, não me dizem isso.

E tu, como é que sentes a música?

Eu não sou muito de dar nomes às coisas. Mesmo aos temas, tenho dificuldade. Eu não sei se aquilo é jazz, mas também não sei bem o que é que hoje em dia é o jazz. Eu sinto que aquilo é uma música que eu fiz num período, para um período mais lato, porque quero tocar ao vivo. E sinto que fiz aquilo de forma meio espontânea. Tudo aquilo foi feito de forma espontânea. E, como tal, tem uma certa componente jazzística. Mais até do que, “ah, porque tem partes abertas para solos.” Não é por aí. É mesmo porque aquilo foi feito de forma espontânea. Eu dei liberdade aos músicos. Houve liberdade em todos os momentos. A partir daí, acho que aquilo bebe um pouco do jazz. E depois, todos os músicos que participaram no disco tocam ou tocaram jazz. Portanto, o jazz acaba por estar sempre presente. Agora, também está quando eu vou tocar com a Capicua. Eu posso estar a tocar num concerto de hip hop e estar super-livre. Eu estou sempre a desbundar [risos]. Para mim, aquilo também é jazz. Ou quando tocava com a Marta Ren, numa tour que nós fizemos. Aquilo era funk, mas também era jazz. Tinha as estruturas… O jazz também tem estruturas.

Claro.

Não é aquela loucura que… Também tem estruturas, tem temas, tem cabeças, harmonias…

Muito bem. Olha, como é que a Beth Hirsch aparece no disco?

Eu trabalhei na Radio Nova, como produtor, durante um período. Ela foi à Rádio Nova e… Essa música com a Beth Hirsch já é uma coisa antiga. Não o tema, o instrumental. Eu conheci-a na Rádio Nova já há uns largos anos. Ela viveu cá no Porto, para aí em 2016. Eu nunca percebi muito bem. Não sei se ela viveu cá durante um tempo e depois desistiu, ou se vive aqui por temporadas, no Porto. Foi assim que surgiu. Na altura conhecemo-nos. Da mesma forma que também houve outras possibilidades para colaborações, que não aconteceram, e surgiram do acaso. A Jaimie Branch, por exemplo. Era suposto haver uma colaboração, mas não foi possível. E também foi por acaso.

Mas vocês chegaram a gravar qualquer coisa, não foi?

Sim.

Mas não vai sair?

Não. Em princípio, nós íamos fazer qualquer coisa com aquilo, de facto.

Como é que foi essa sessão com a Jaimie?

Foi incrível. Essa foi mesmo jazz. Foi tudo de improviso. Basicamente, ela veio aqui à loja, falou com o André, estava tudo fechado… Ela perguntou-me, “queres fazer uma jam?” [Risos] Eu sou do Porto. A Capicua diz que os portuenses resmungam até ao cemitério e eu sou esse tipo [risos]. “Jammar, não. Não me apetece fazer jams.” Eu não dei logo o sim. Mas depois, pensei, “também não vai ficar com má ideia dos tugas. ‘Tá bem.” Combinei com ela pelo Instagram. Fui buscá-la. Falei com amigos meus, que também participam no disco, o Ricardo Danin e o Pedro Ferreira. “Vocês querem?” Estava tudo fechado, nós não tocávamos. “Ok. Então ‘bora lá.” Montei tudo no meu estúdio, pus os microfones para gravar e, basicamente, estivemos a beber minis… Ela vinha do Leste e trouxe uns Schnapps. Era uma cena… Ela abria uma garrafa e um gajo ficava zonzo com aquilo. E estivemos a tocar. Tocávamos, falávamos durante uns 20 minutos, sobre cenas… Nós não nos conhecíamos. Depois, sei lá… Eu começava a tocar qualquer coisa e tudo surgia. Aconteceu. E ficou tudo gravado.

Que lindo. Para terminar: sentes que o que estás a fazer, neste momento, faz parte de algum movimento? Sentes que existe alguma vaga, por pequena que seja? Sentes que existe algo a mexer na mesma direcção que tu?

Sim, sinto. Mais até do que quando eu me lembrei de começar a fazer os temas, em 2019. Agora sinto mais. Não sei, mas sinto que está a começar a borbulhar. Não muito. Não acho que seja uma cena gigante. Mas sinto que está a começar a acontecer qualquer coisa.

E sentes que o teu disco tem melhores hipóteses de ser bem recebido fora do nosso país, ou sentes que o vão compreender cá dentro, também?

Acho que vão compreender. Mas o mercado português é pequenino. Acho que tem a ver com isso.

Quando digo “compreender”, não estou a falar das pessoas que vão ouvir o disco no carro ou na aparelhagem — o que seja — e percebem, “esta música é assim e assim e eu curto isto.” Falo de “compreender”, nomeadamente o darem-te uma hipótese de tu, de repente, construires uma carreira a partir daqui.

Não sei. O mercado em Portugal, para já, é um mercado um bocadinho fechado. Como é muito pequeno, é um mercado mais fechado. Depois, todos os géneros que são assim, mais desviantes, têm maior dificuldade em poderem subsistir.

Onde é que a tua música cabe? Só nos festivais de jazz ou…

Acho que a minha música poderia caber em clubes, por exemplo. No entanto, a malta… Fala-se do público do jazz e das pessoas do jazz serem um pouco fechadas a este tipo de música, mas não nos podemos esquecer que as pessoas da área da electrónica também são um bocadinho fechadas [risos]. Ou seja, eu e as pessoas que andam a fazer isto, andamos aqui, tipo, “não és de um lado nem és do outro.”

Mas achas que podias dar por ti no mesmo tipo de cartazes por onde andam os Sensible Soccers, o Bruno Pernadas? Outro tipo de projectos que também não são exactamente uma coisa ou outra e que, de repente… O Pernadas já tocou no Primavera Sound, por exemplo.

Eu acho que sim. Não sei é até que ponto será possível.


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