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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/03/2023

O Porto a explorar os novos domínios do jazz.

Jazzego: “A Jazzego começa por nós gostarmos deste movimento do jazz UK”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/03/2023

A Jazzego estreou-se com o que se poderia classificar como um exercício de estilo com algo de provocador: Azar Reworks propunha uma intervenção de Azar Azar, projecto de Sérgio Alves, sobre um momento específico da obra do gigante Miles Davis, Bitches Brew. Uma espécie de entrada a pés juntos nestas coisas da edição discográfica. Esse primeiro lançamento, em Abril de 2020, foi apenas digital, mas alguns meses depois a edição em vinil de AZAR EP veio reforçar a declaração inicial: aqui estava um novo selo com vontade de pegar numa ideia muito específica de jazz e plantá-la algures no futuro.

Oito lançamentos mais tarde, e em vésperas da apresentação do álbum de estreia de Azar Azar, Cosmic Dropsque amanhã, 10 de Março merece lançamento no portuense Ferro Bar (e mais sobre isso em conversa com Sérgio Alves a publicar também amanhã) – sentámo-nos no quartel general da Jazzego para uma conversa com os seus dois timoneiros, André Carvalho e Hugo Oliveira, aka Minus & MRDolly.

A história de origem do selo, as suas ideias sobre o que tem o jazz a ver com o que fazem e a revelação de planos imediatos para 2023 passam pelas linhas que se seguem.



A Jazzego faz três anos em 2023, não é?

[Hugo Oliveira] Mas começou a ser pensada antes. Eu e o André já andávamos a namorar a coisa.

Começo por vos desafiar a fazerem um balanço desta primeira etapa da vossa vida editorial.

[Hugo] Acho que começámos a label de forma descomprometida e, no fundo, como já está sabido há muito tempo, foi para editar este disco do Azar Azar que aí vem. Por isso, só agora é que estamos a ver o presente [risos].

Então estes primeiros três anos foram um preâmbulo?

[André Carvalho] De certa forma.

[Hugo] Mas tem sido muito bom, porque deu para perceber que havia — e há — imensa malta igual a nós e igual ao Sérgio [Azar Azar]. Nós não vimos isso à partida, aqui na cidade. Nesse sentido, está a ser surpreendente.

[André] Noutro dia estava a pensar sobre isso. Sinto que, de certa forma, a Jazzego começa por nós gostarmos deste movimento do jazz UK. Fui ver para trás, nas nossas conversas, e há um disco específico, que é o Juan Pablo: The Philosopher, dos Ezra Collective. Na altura ainda estávamos na ressaca do teu disco de beats.

[Hugo] O Man With a Plan.

[André] Tu tinhas uma editora com o Spot, que era a Kids Alone. Eu tinha a Circus, que já estava a fazer a cena para O Revólver Entre As Flores do Keso, em 2019, e que também fez coisas com a Kids Alone. Andávamos naquela, “como é que é? Isto vai ter continuidade? Como é que vamos fazer isto?” Nós já tínhamos um grupo, mesmo com o Pedro, em que andávamos sempre a trocar cromos — “Já ouviste isto? Já ouviste aquilo?”

Estás a falar do Pedro…

[André] O Pedro Ricardo! Ele já tinha a password do meu Bandcamp e… Tu também tinhas?

[Hugo] Não tinha, mas soube disso [risos].

[André] Basicamente, nós usávamos o mesmo Bandcamp, porque assim tínhamos acesso às compras um do outro [risos]. Começa por ser uma troca de cromos, mas depois chega a conversa de, “se calhar, isto era fixe fazermos uma cena nossa.” Tu dizes: “O Sérgio tem um álbum pronto e aquilo é incrível.”

[Hugo] Ya. Era uma demo. Ainda nem tinha sido gravado quando o Sérgio mo mostrou. Nós estávamos a ensaiar para as apresentações ao vivo do meu álbum de beats, o Man With a Plan. O Sérgio estava a acompanhar-me ao vivo. Num dos formatos era só eu e ele. Foi aí que ouvi. Ele mostrou-me umas demos durante um ensaio, no estúdio dele, que era onde ensaiávamos. Fiquei mesmo, “fogo!” Aquilo era o que nós falávamos, nas nossas conversas boémias de café.

Duas das editoras mais interessantes do presente, que são bem diferentes e dariam bons case studies, são a Jazz Is Dead e a International Anthem. Ambas têm uma característica curiosa: no caso da International Anthem, os tipos que criam a editora vêm do punk e do hardcore; no caso da Jazz Is Dead, vêm do hip hop e do funk, vá lá. Isso acontece com vocês, também. Este olhar exterior é o que permite, no fundo, renovar a atitude perante um género. É isso que vocês pretendem, reinventar ou, pelo menos, apresentar ao mundo a vossa ideia de jazz?

[Hugo] Nós já éramos consumidores [de jazz].

[André] Eles também o eram.

[Hugo] Provavelmente [risos].

[André] Basta escutares a discografia de trás e vês que eles eram claramente consumidores [risos].

[Hugo] É isso. Nesse sentido, é igual a nós. Se calhar, aquilo que praticávamos é um bocadinho diferente — eu sou mais ligado ao hip hop e o André mais à música de dança e electrónica. Ao mesmo tempo, encontrávamos sempre relações com o jazz. No fundo, acho que é isso: o jazz está sempre no centro a ligar os pontinhos todos, quer a gente queira, quer não. Às vezes mostrávamos coisas um ao outro e, “como é que tu defines isto? Isto tem uma batida de hip hop, mas vai a outro lado. Isto tem uma batida house, mas vai a outro lado.”

[André] Havia uma música que dizia que “as modas passam, mas o jazz fica” [risos]. É um bocado isso. Nós vamos mudando as nossas músicas mas existiu sempre essa ligação.

Eu, que sempre consumi a Clean Feed, por exemplo, desde o seu nascimento, a dada altura dei por mim a pensar: “Este tipo de abordagem ao jazz, mais, vá lá, groove based, não encontra espaço nas editoras tradicionais porque não há músicos cá a fazerem isto.” E vai-se a ver…

[Hugo] Há uma porrada deles [risos].

E o que o trabalho de editoras como a Jazzego vem mostrar é que há gente com estas ideias transformativas sobre o jazz a criar música em Portugal. Porque raio é que essas editoras tradicionais não davam espaço a estas abordagens?

[Hugo] Há muitos músicos com quem só me estou a cruzar agora. As jams do Uptown e de outros sítios eram feitas com esses músicos. Isto para aí em 2000. A verdade é que agora é que começo a ter contacto com esses músicos, a conhecê-los pessoalmente. Mas, quando era miúdo, via-os tocar nessas… Fui mais a jams dessas — do Uptown, por exemplo, que me lembro de terem sido das últimas a acabar — do que às jams da ESMAE, que só conheci quando frequentei a ESMAE.

[André] Perguntas porque é que as outras editoras não têm espaço para estas novas linguagens e eu vejo isso através da perspectiva com que o meu pai vê o jazz. O meu pai sempre foi um gajo que ouviu muito jazz, mas as coisas que eu lhe mostro — incluindo as da minha editora — ele odeia tudo. Quando penso nessas editoras e nesses festivais de jazz que existem espalhados por Portugal todo, diria que elas pensam da mesma maneira que o meu pai pensa. Para ele, o jazz é só aquela fase do bebop e pouco mais que isso.

Há um estudioso do jazz em Portugal, que se chama João Moreira dos Santos, que a dada altura escreve um artigo no Blitz sobre as três vezes que o Miles Davis veio a Portugal — a primeira foi no Cascais Jazz em ’71 e depois veio mais duas vezes, ao Coliseu. E ele diz: “O Miles Davis veio três vezes a Portugal, mas em nenhuma delas veio tocar jazz.” Os próprios gatekeepers decidem o que é que é e não é jazz. Que um homem branco, português, se atreva a dizer o que é que o Miles estava a tocar em determinada altura da sua carreira… Enfim, acho uma coisa extraordinária. Mas vai ao encontro do que tu dizes, de que há pessoas que têm uma ideia tão dogmática, tão fechada, do jazz que, para eles… Até acredito que, às vezes, o primeiro sinal de repulsa — e é por isso que eu acho que DOMi & JD BECK fazem o que fazem — é visual. “Se não te vestes de uma determinada maneira, não podes tocar jazz.”

[André] É mais ou menos. Eu fui com o meu pai ver Kamasi Washington à Casa da Música e há ali uma boa parte daquela sala que não gosta daquele concerto. Há pessoas que não vêem jazz naquilo! [Risos]

[Hugo] E na ESMAE?! Pode ter sido devido à altura em lá estudei e acompanhei mais os músicos de lá. Mas o álbum do Kendrick Lamar [To Pimp a Butterfly] veio revolucionar muito. Comecei a ver muito mais malta com esse feeling a tocar, quando, até lá, se calhar, só o Mané Fernandes é que andava por ali [risos]. Acho que foi um álbum importante e uma altura interessante. Falaste no Kamasi e eu lembro-me de ser uma das primeiras referências desta cena jazz.

[André] Em Portugal, sinto que há um outro álbum que também teve uma expressão muito forte para mudar isso, o de Yussef Kamaal [Black Focus]. Aquilo também marca uma certa mudança.

[Hugo] Esse é de 2016. Também sinto que houve esse…

[André] 20 mil represses depois, esse disco continua a ser dos discos de jazz que mais me pedem na loja.

Faz sentido. Já mencionámos aqui algumas referências internacionais. Se tivéssemos que tomar 2020 para a frente como o presente desta nova onda e tivéssemos de lhe encontrar antepassados em Portugal, que nomes é que vocês refeririam?

[Hugo] Smoog, do Miguel Graça Moura. O João Gomes.

[Andre] Os Cool Hipnoise, pá! Spaceboys e até mesmo Blackout. Mas isto para mim, que venho… Eu conheço os Cool Hipnoise através de um disco de remisturas da Kami’kazz, porque a minha cena era a música electrónica. Os Cool Hipnoise fazem-me essa ponte. Ao mesmo tempo, penso: a primeira vez que perguntei o que era um Fender Rhodes, foi porque o ouvi num álbum de Clã. Por isso…

Quando mencionas João Gomes estás a falar…

[Andre] Dos cinco mil projectos que ele tem.

Incluindo Orelha Negra, que é um nome importante para isto, também.

[André] Sim.

Lançar um disco de instrumentais de hip hop, que se cria dentro de uma MPC e, no máximo, precisa de uma mãozinha para ser misturado, implica um determinado tipo de investimento, mas pegar numa banda com instrumentos acústicos, que precisam de salas e de bons microfones para serem captados, já é algo completamente diferente. O que é que vos passou pela cabeça para criarem uma editora de jazz, numa altura em que há tipos a dizer que têm sucessos a gravar com um telemóvel?

[André] Isso é o álbum do Sérgio [risos]. Não deixa de ser engraçado que tenha demorado três ano a sair uma coisa que, quando ouvimos a primeira demo, achávamos que… “Isto está pronto! Está feito!” [Risos]

[Hugo] É verdade. Com baterias programadas [risos].

É muito mais complexo, não é?

[André] É. Eu já lancei música electrónica e [este processo] é obviamente mais complexo. E o mais complexo de tudo é tu dares o primeiro passo, assumires esse compromisso. Isso é super-complexo. Tudo o resto, se fizeres por gosto e queres mesmo fazer, tu descobres como o fazer. É mais caro, mais complexo e pode demorar três anos [risos]. Mas tu descobres como fazer.

Essa é a arte portuguesa. Finding a way, não é?

[André] Sim. Eu assumi aquele compromisso e, na altura, não conhecia o Sérgio sequer. Nós conhecemo-nos por causa disto. O Minus apresentou-me, eu ouvi a demo e tomámos a decisão de fazer isto. Aliás, a editora aparece ainda sem ter nome.

[Hugo] Pois foi. O nome até surgiu numa brincadeira durante um jantar.

[André] Esta editora aparece para editar o disco do Sérgio e só depois é que surge com um projecto editorial [risos].

[Hugo] No meu caso, enquanto produtor, sempre gostei de fusões. E gosto muito do lado acústico, um bocado mais humano, da coisa, não só de samplar discos. Eu adoro samplar discos, mas também gosto muito de…

E gostas de samples discos acústicos.

[Hugo] Sim! De certa forma, sempre me interessou perceber o que é produzir um disco com banda. Também estou a produzir as pessoas e a criatividade dessas pessoas, não só a minha cena, o que eu fui buscar àquele registo, não é?

[André] O teu sonho é produzir uma cena tipo The Gap Band.

[Hugo] Uma cena disco, sim [risos].

Se tivéssemos de fazer uma espécie de mapa de jazznãojazzpt — à falta de melhor termo, usamos este — quem é que vocês juntariam à conversa? Que outros nomes, bandas ou selos acham que deve de fazer parte desse mapa?

[André] Há bocado falámos no Mané e, para mim, ele faz parte desse mapa. Eu gosto muito da visão que ele tem não só do jazz, mas da música. A maneira como ele vê as coisas… Para além de todas as bandas que, ao longo destes três anos, foram associadas a nós — Azar Azar, Minus & MRDolly, Bardino, Hugo Danin, Pedro Ricardo, Geodudes… Vejo Mazarin, também. Os Mazarin também estão nesta fase inicial, que eu lembro-me daquele concerto do Dilla.

[Hugo] Também foi dos primeiros mambos que houve aqui, em Portugal.

[André] Mais quem?

[Hugo] Não sei. Acho que vai aparecer.

[André] Também há a Raquel [Martins]. Às vezes é complicado inclui-la, porque já a vemos quase como vemos qualquer projecto inglês, mas na realidade ela continua a ser de cá. Há uma série de projectos que vão aparecer, sem dúvida. Assim, de repente, não me vem à cabeça mais nenhum.

E aquela malta à volta do YANAGUI? Vejo projectos como Pimenta Caseira como estando a navegar nesta direcção, também. No outro dia, fui ouvir o disco do xtinto e, no meio de uma série de faixas de trap, o gajo tem lá uma faixa com free jazz. Aquilo funciona e está muito bem feito.

[Hugo] Por acaso, o free jazz é uma coisa que foi pouco explorada no hip hop em Portugal.

Há uns tempos, lembro-me de ter lido um artigo que dava conta de toda uma onda de hip hop no Japão em que só se sampla free jazz. Uma cena muito marada.

[Hugo] Uau.

Antes de terminar, gostava de vos dar os parabéns pela compilação Granito, que acho que fecha ali um ciclo e que prepara o arranque de um novo ciclo, que começa com o disco do Sérgio. O que é que vem mais aí em 2023?

[André] A meu ver, o novo ciclo começa com o último disco de Cat Kin Cool [Simplon]. É de 2022, mas, ao mesmo tempo, está neste roadmap da Jazzego para o futuro. Vamos continuar a ser uma editora que aposta em projectos do Porto para criar quase que uma plataforma. O primeiro de 2023 será o álbum do Sérgio, que será lançado dia 10 de Março. Vem aí um álbum de Minus & MRDolly. Depois será Nelembe. A seguir, será Bardino. Temos ainda a reedição do Raku, do Hugo Danin.

[Hugo] Fez dez anos no ano passado. Esse disco vai ter remisturas. Voltámos ao que estávamos a fazer ao início, porque sempre foi uma coisa que gostámos.

O que é que se vai passar no teu disco? Vais ter músicos?

[Hugo] Basicamente, usei a técnica do Makaya McCraven [risos]. Proporcionei umas jams com músicos — o Sérgio também entra — e depois trouxe horas e horas de material para casa. Chanfrei aquilo tudo, regravei algumas coisas.

E Nelembe? Falem-me sobre isso.

[André] Acho que o Sérgio consegue explicar-te melhor, até porque faz parte do projecto. Mas, basicamente, aquilo é uma super-banda…

[Hugo] De dirty afrobeat! Tem um bom andamento, o disco. Está super-Verão [risos]. Esperemos que seja nessa altura que sai. Tem bom groove, bom feeling. Eles tiveram uma residência no CCOP e depois regravaram algumas partes, agora mais recentemente. Mas foi tudo preparado nessa altura. Foi no final do ano passado, acho eu. O Jorge Queijo fez essa residência e convidou alguns músicos para gravar o disco. Agora estão a fecha-lo.

[André] Temos mais algumas coisas mas que ainda não estão certas, como o segundo álbum de Cat Kin Cool, que já está em fase de produção. Temos a reedição do álbum [Going Somewhere] do Pedro Ricardo como HAI. É um disco que saiu há cinco anos.

[Hugo] Basicamente, é um disco que saiu pela 1980. Só que agora está tocado ao vivo, acústico. Tem lá o João Mortágua no saxofone e vai ter remisturas, também.

[André] Isto são coisas que saem em formato físico. Também vamos ter coisas que saem no formato digital apenas, como é o caso do Gazpa, que faz parte dos GAZTWEEN.

Têm sentido que há mercado? E esse mercado é sobretudo português, ou também estão a vender para fora?

[André] Temos a sorte de trabalhar com uma distribuidora de que gostamos muito, que é a Pusher, de França. Eles garantem-nos que os nossos discos estão à venda no mercado para o mundo todo. Se as pessoas pesquisarem no Google, os discos estão quer nos Estados Unidos, quer no Japão e pela Europa toda. Há relativamente pouco tempo estive em Londres, na Sounds of the Universe, e o disco dele estava lá nos destaques. Já quando estive na Phonica, tinha o disco do Sérgio em destaque. Temos essa sorte de trabalhar com uma distribuidora que faz grande parte do trabalho pesado, que é fazer com que os discos estejam disponíveis no máximo de lojas possível. E o grosso das vendas — diria que 60/70% — é para o estrangeiro.


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