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Fotografia: Manuel Abelho*
Publicado a: 16/12/2020

Agitação e transformação com Azar Azar, Bardino, Don Pie Pie, Fatspoon, GUME, Mazarin, Narciso, Ossos D'Ouvido, SaiR, whosputo, YAKUZA e Yanagui.

JazzNãoJazzPT: há uma nova geração de músicos interessada em levar o jazz para o futuro

Fotografia: Manuel Abelho*
Publicado a: 16/12/2020

Outrora estanques e, portanto, maioritariamente não comunicantes, os géneros musicais são hoje meras tonalidades em paletas usadas com crescente imaginação por novas gerações de criadores e criadoras apostadas em criar novos híbridos a partir de fórmulas historicamente estabelecidas: country e hip hop? Sim, claro. Hip hop e noise? Obviamente. Rock e electrónica? História com décadas. Clássica e electrónica? Nada de novo. E por aí fora… Curiosamente, pode pensar-se no jazz como um caso à parte. A grande invenção cultural da América Negra da primeira metade do século XX nunca foi tímida em relação aos diálogos com outras linguagens: as “fusões” com bossa nova, música clássica, música africana, música cubana, música indiana, etc, etc, expressaram uma funda demanda dos artistas que sempre quiseram alongar-se para lá das margens “naturais” das suas linguagens, procurando nos pontos de intersecção com outras culturas o fogo do desconhecido. Na década de 70, Miles apontou caminho, electrificou-se, e procurou, adoptando ferramentas e ideias do rock e do funk e de outros modos populares, encontrar-se uma vez mais com o futuro. Ou seja, o jazz nunca foi um monólito, pesado e imóvel, antes lava incandescente, descendo inexoravelmente pela encosta do tempo abaixo, sabendo encontrar novos cursos sempre que se deparava com algum obstáculo. Mas a verdade é que até essa dinâmica evolutiva parece a dada altura ter sido codificada. E o jazz institucionalizou-se, de forma natural, tornou-se matéria académica de estudo, passível de ter abordada por novas gerações em qualquer parte do planeta. E o que começou por ser experiência cultural passou a ser património imaterial, transmissível, moldável, mas ainda assim com modelos ampla e transversalmente reconhecidos que funcionam como balizas ou marcas de uma história bem documentada.

Claro que cada cultura tem os seus gatekeepers, os seus dogmas, os seus tesouros e as instituições que transmitindo conhecimento pretendem igualmente clarificar o que é ou o que deixa de ser uma determinada linguagem, arte, escola ou corrente, prática ou, pois claro, género musical. E assim, “jazz” passa a ser o que se ensina em determinadas escolas, o que se pratica em específicos palcos, o que se pensa e reporta em certas publicações, o que se consagra nos cartazes de festivais muito concretos. E para o jazz ser uma coisa quase parece que não pode ser, também, outra. Ou muitas coisas ao mesmo tempo. Ou coisas diferentes em momentos históricos diferentes.

Portugal, 2020, quase 2021.

No nosso país, o jazz tem uma longa história e tradição e no presente a sua vitalidade traduz-se num complexo ecossistema que permite que artistas e públicos se cruzem graças ao trabalho de uma variedade de instituições: da Orquestra de Jazz de Matosinhos ao Hot Clube, de Lisboa, da Associação Porta Jazz, do Porto, ao Jazz ao Centro Clube, de Coimbra, do Festival de Jazz de Guimarães ao Jazz em Agosto da Fundação Calouste Gulbenkian passando pela Festa do Jazz (que já teve lugar em diferentes espaços da capital), das abordagens históricas ao jazz na Licenciatura em Música da Universidade de Aveiro ao programa GeraJazz da Orquestra Geração. Há mais agentes importantes nesse “ecossistema”: publicações como a Jazz.pt, claro, uma incansável plataforma de pensamento, promoção e divulgação; editoras como a Clean Feed, Carimbo Porta Jazz, JACC Records, Cipsela, Nischo que têm traduzido em inúmeros títulos algumas das mais avançadas ideias criativas da nossa música; lojas de discos como a Matéria Prima, Flur ou, mais recentemente, a Jazz Messengers; e, pois claro, diferentes gerações de artistas que têm sabido dialogar entre si criando uma dinâmica e entusiasmante cena. E haverá, certamente, muitos outros agentes, individuais e colectivos, que contribuem igualmente para que o jazz em Portugal seja o que é.

A efervescência que o jazz tem registado globalmente nos últimos anos – com activas cenas que se estendem de Los Angeles e Chicago a Nova Iorque, de Londres a São Paulo e Rio de Janeiro e de Melbourne ou Joanesburgo à Cidade do Cabo – tem, por via da possibilidade de comparação, exposto algumas particularidades da nossa cena que, decerto, merecerão outro espaço e outro fôlego para serem devidamente analisadas e compreendidas, mas que não devem deixar de ser por aqui mencionadas: tomando como amostra de algo maior o livro Improvisando – A Nova Geração do jazz Português que há um ano o jornalista Nuno Catarino e a fotógrafa Márcia Lessa assinaram com a chancela do Hot Clube de Portugal é impossível não dar conta da frágil pluralidade da nossa comunidade jazz – há poucas mulheres instrumentistas e quase nenhuns músicos afro-descendentes activos nesta cena, pelo menos que tenham já obra feita e gravada e carreiras estabelecidas. Estas diferenças, quando debatidas com artistas internacionais como Nubya Garcia ou Emma-Jean Thackray, passam quase sempre pelo tipo de estratégias culturais implementadas em cada país, pelos diversos graus de valorização que se atribuem a determinadas linguagens. E se em Inglaterra a existência de programas de inclusão financiados pelo Estado e voltados para as comunidades como o Tomorrow’s Warriors, de instituições de ensino superior como a Trinity Laban Conservatoire of Music & Dance, de espaços geridos pelo comunidade como o Total Refreshment Centre, etc, têm sido capazes de sustentar a emergência de novas gerações com generosos números de mulheres solistas, muitas oriundas de comunidades de imigrantes, por cá só podemos acreditar que similar trabalho levado a cabo por instituições como a já citada Orquestra Geração ou a Associação Sons da Lusofonia possa vir a resultar numa cena futura mais plural e mais inclusiva, em que o jazz possa igualmente usufruir de ideias, práticas e sonoridades oriundas de diferentes contextos culturais, podendo assim evoluir ainda mais, integrando de forma ainda mais nítida o património musical das diferentes comunidades estabelecidas na nossa sociedade, tal como sucede noutros pontos do globo.

2020 pode, acredita-se por aqui, ter sido um ano chave nessa transformação.

É neste momento inegável a existência de uma nova geração de músicos com óbvio interesse no jazz, mas igualmente claro desinteresse em apoiar a sua abordagem a esse género nalgum tipo de prática instituída no âmbito do tal ecossistema descrito num dos parágrafos anteriores: muitos dos músicos que irão encontrar listados mais abaixo estudaram no Hot Clube e em instituições similares, muitos têm até formação superior em diferentes Conservatórios, mas pode igualmente dizer-se sobre boa parte deles que a música que têm vindo a lançar, sobretudo ao longo destes últimos 12 meses, resulta bem mais de um olhar exterior lançado sobre o jazz do que o seu reverso, ou seja, de uma perspectiva fundada no jazz e lançada sobre outras linguagens. E isso tem consequências claras: na diferente música que todos estes artistas têm lançado, o jazz é apenas uma de entre várias substâncias combinadas em novas fórmulas. O hip hop, as múltiplas cadências electrónicas, o funk, o rock e o r&b funcionam igualmente como condimentos de receitas de sabores diferenciados que têm contribuído para agitar a cena musical portuguesa contemporânea.

É, obviamente, importante realçar que há referências incontornáveis no passado que já apontavam para o despontar desta geração: dos Cool Hipnoise e das múltiplas aventuras criativas dos seus principais músicos – que foram dos Spaceboys aos Cais Sodré Funk Connection passando, obviamente pelos Orelha Negra, outro nome fundamental nesta história – até projectos como Loopless que, baseados na mais vasta família da Nylon Discographics, também procuraram levar alguns pulsares do jazz para as proximidades da pista de dança. O álbum de 2004 da Zany Dislexic Band de PZ e Zé Nando Pimenta (além de vários outros momentos do já muito expandido catálogo da portuense Meifumado), e o trabalho em diferentes andamentos do produtor Rocky Marsiano (principalmente o exposto na trilogia Pyramid), também oferecem válidos argumentos para esta história.



[Azar Azar]

Sérgio Alves, músico do Porto, é Azar Azar, nome que inaugurou o catálogo da novíssima Jazzego com o EP Azar. Sobre ele escreveu-se por aqui, quando se estreou com um EP digital de reinvenções da matéria alheia que Miles expôs em Bitches Brew: “Em quatro breves faixas (que tão bem encaixariam num 12 polegadas… just sayin’…), Azar extrai argumentos de pista da matéria conjurada há meio século e que, muito sinceramente, continua a traduzir futuro. Nas mãos de Sérgio Alves, os pianos eléctricos, os pulsares graves e o expressionismo abstracto de Miles adquirem uma fluidez ainda mais moderna que encaixa em cadências mais hip hop (‘Sanctuary’) ou de feição mais housey (como sucede em ‘Spanish Key’), mas com as suas “apropriações” a nunca resultarem descabidas ou desprovidas de sensibilidade. Muito pelo contrário: é sempre óbvio que se trata de uma sentida vénia a um mestre que Azar terá certamente a sorte de contar entre os faróis que lhe iluminam o caminho. Na verdade, ilumina-nos a todos”. Depois, já em conversa tida a propósito do seu próprio EP, Sérgio explicou como se atirou à sua primeira obra: “Tem uma vibe solarenga, meio afro-cósmica e, à semelhança do EP de reworks do Miles, começou a ganhar forma com loops de bateria, sons MIDI, samples e teclados! As primeiras versões do tema apenas têm como convidado o SAM (saxofone). Em Outubro, quando já tinha todos os temas desenvolvidos, falei com os restantes músicos: Bruno Macedo (baixo), Ricardo Danin (bateria) e Manu Idhra (percussão), e gravámos no meu estúdio. A participação da Helena Neto (voz), surgiu já numa fase avançada da mistura, e é como que a cereja no topo do bolo! A mistura do EP ficou a cargo do New Max, basicamente tudo malta incrível que, além de profissionais super quitados, eu tenho a sorte de ter como amigos!”



 [Bardino]

Em Setembro último, a propósito dos Bardino, escrevia por aqui, em jeito de apresentação, Gonçalo Tavares: “Aos primeiros segundos de ‘Centelha’, faixa que abre o novo e homónimo disco do trio, somos bafejados por uma lufada de ar fresco. Sintetizadores luminosos abrem um álbum que toca a eletrónica, o prog-rock, o jazz, o neo-funk de uma forma coesa e muito ponderada”.

“Os Bardino cabem em muitas gavetas”, argumentava-se ainda. Nuno Fulgêncio (bateria), Diogo Silva (baixo) e Rui Martins (teclados) operam a partir do seu estúdio no STOP, Porto, e, na entrevista que nos concederam revelaram um pouco do seu mapa de inspirações: “Se nos perguntares quais são as referências deste disco, nós dizemos-tas com facilidade. (…) um exemplo que nós ouvimos e discutimos muito são os Floating Points. Eles transportam-te para um sítio que não é nada óbvio, mas quando dás por ela já estás lá. Eles fazem isso muito bem”. A propósito do trabalho de estreia, escreveu-se igualmente por aqui: “Neste Centelha, o grupo acerca-se de uma certa ideia de jazz, evocando por vezes certas marcas do jazz de fusão dos anos 70 (escute-se ‘Clarão’ se provas forem necessárias), o que não espanta tendo em conta os pergaminhos prog do solista do grupo, Rui Martins, que militou numa banda do género de nome O Corvo Mudo. Nesta Centelha o que imediatamente se sente é, bem… muito mais do que uma mera centelha, antes um óbvio e salutarmente descarado prazer que estes três músicos retiram do simples acto de tocarem juntos. Isso parece bastante claro quando se escuta, por exemplo, ‘Zona’, peça em que o entrosamento da secção rítmica é pleno, proporcionando aos dois solistas (como já mencionado, além dos teclados de Rui Martins, nessa peça também se sente a vincada presença da guitarra de Pedro Cardoso) sólida base para se alongarem em solos de natureza puramente lúdica, tal como quando nos colocamos num carro e partimos em viagem retirando todo o prazer da estrada percorrida e não necessariamente da chegada a um qualquer destino”.



[Don Pie Pie]

De uma das edições da coluna Notas Azuis: “Os Don Pie Pie são a nova e inesperada surpresa da Monster Jinx, editora portuguesa que tem operado sobretudo no difuso terreno em que o hip hop encontra o futuro, um pouco como aquele em que a Brainfeeder se move. Inesperada surpresa, escrevia-se, porque tendo construído o catálogo sobretudo em torno do output de produtores, agora é a música de uma banda – formada por Saloio, Miguel e Liquid – que o Monstro Roxo propõe numa limitada edição em cassete (e, como é habitual neste selo, em gratuitas versões digitais disponíveis no seu Bandcamp). Don Pie Pie é um power trio que usa guitarras, bateria e teclados para explorar todas as dinâmicas possíveis de imaginar entre o rock de recorte psicadélico ou progressivo e o novo jazz que se vai inventando entre Los Angeles, Chicago e Londres. E basta escutar a irrequieta ‘BujiGang’ para se encontrar o manifesto Don Pie Pie: em pouco menos de cinco minutos percorre-se o caminho que separa a contemplação da acção, começando o tema com uma exposição melódica simples na guitarra sobre cadência vincada por cowbell e grave extraído de sintetizador, para depois dar espaço a um break que soa a King Crimson a tentarem tocar Rage Against The Machine antes do trio regressar a um plano em que o groove volta a ser dolente e um sintetizador estratosférico nos coloca em órbita cinco milhas acima da Terra para depois tudo se colar numa reviravolta comandada pelo grave arrancado ao Moog que bem poderia dar o seu loop para Denzel Curry cuspir em cima. Ao todo reúnem-se aqui nove malhas que resultam da junção do material de três EPs. O suficiente para confirmarem Don Pie Pie como mais uma ultra-válida peça para o crescentemente complexo puzzle da modernidade tuga. Com estruturas de sofisticação prog (que tanto podem derivar da escola britânica dos já citados Crimson ou Soft Machine como do lado jazz-rock americano que nos anos 70 foi povoado por bandas como Weather Report ou Return to Forever e até Rush ou Steely Dan) a ilustrarem um orgulhoso nervo (os rapazes sabem tocar), há por aqui também uma deliciosa leveza lúdica (e o apropriadamente titulado ‘Ploy Joy’ é um óptimo exemplo) própria de quem está muito naturalmente a retirar um óbvio do prazer do acto de tocar em conjunto, com a ideia de exploração livre, que traduz um saudável ‘anything goes‘, a servir-lhes de ângulo conceptual. Cassete agora, concerto suado tão breve quanto possível (ou numa conta Instagram perto de si, se não houver alternativa), por favor, porque será interessante perceber como funciona esta fórmula sem a rede do estúdio”.



[Fatspoon]

Gonçalo Tavares falou com os Fatspoon em Agosto último, traçando-lhes o necessário retrato: “Apanhámos os Fatspoon no rescaldo de um concerto no Mel :: Piquenique das Artes, em Famalicão, no dia 13 de Agosto. O palco exterior, à imagem de um festival de Verão, com sete músicos a tocar, afirma-o como um evento raro por estes dias. ‘Sentimos que as pessoas tinham saudades de ouvir música ao vivo, bem como nós próprios’, confessam-nos. E se bem que as saudades justificam parte da dança vivida no Parque da Devesa, o resto é mérito da música. A mistura de funk, jazz, rock, hip hop e mais que nos servem foi lançada numa edição de autor, o seu álbum de estreia que, para já, só pode ser ouvido através da encomenda da versão física por mensagem privada. Mushgrooves concentra toda a musicalidade, energia e interesse do seu som com uma produção fantástica, servindo de mote para esta entrevista com a banda do Porto’. Na conversa, o colectivo da Invicta explicou a refeição que nos quer servir: ‘Como entrada para esta refeição musical escolhemos a ‘James Jamon’. O nome deste prato provém do alucinante James Brown, por ser uma malha mais rápida com acentos em contratempos. Os pratos principais são para degustar, devido aos grooves e tempos moderados, variedade de solos e algumas texturas sonoras e elementos que introduzimos em pós-produção, como as palmas e o triângulo na ‘Mushgrooves’ ou a melodia cantada no final da ‘Funky Seaweed’. Quanto às sobremesas, temos várias categorias. A ‘Scone Fields’ traz uma composição mais extensa com várias partes, e o nome vem de uma grande referência para nós, o John Scofield. A ‘Space Bagel’ tem um jeito de mantra, procurando levar o ouvinte a um estado de transe com o seu padrão de 14 tempos. A ‘Biscuits’ é um doce dançável inspirado na música electrónica, com uma intro que lembra o rock progressivo britânico dos anos 70, e a ‘Disco Sheet’ é uma mistura de música disco, funk e hip hop”.  



[GUME]

Estrearam-se em 2017 com o álbum Pedra Papel. Os GUME são uma banda de jazz fusão liderada pelo trompetista suazi Yaw Tembe, que reside há vários anos em Lisboa, e pretendem desconstruir barreiras ao incluir na sua música elementos de uma diáspora já deveras dispersa, que vão do afrobeat nigeriano à rumba cubana. No passado Verão, o grupo passou por Serralves, oportunidade que aproveitou para testar ao vivo algum do material inédito que tem estado a desenvolver em estúdio e que deverá em breve ver a luz do dia num novo álbum. Em palco, Francisco Menezes (saxofones, flauta), André David (guitarra), Pedro Monteiro (contrabaixo), Sebastião Bergmann (bateria), David Menezes (percussão), Raquel Lima (voz), Leonor Arnaut (voz), Maria do Mar (violino), Gil Dionísio (violino), Joana Guerra (violoncelo) e André Murraças (saxofone tenor) integram o ambicioso elenco que acompanha Tembe.



[Mazarin]

Depois de terem dado nas vistas com um homónimo EP que lançaram digitalmente no Bandcamp, os Mazarin estrearam-se recentemente no catálogo da Monster Jinx, posicionando-se assim ao lado dos Don Pie Pie, com um single que recebeu o título Interlúdio e que terá edição em vinil. Vicente Booth (guitarra), João Spencer (baixo), Léo Vrillaud (teclas) e João Romão (bateria) não escondem de onde vêm e para onde querem ir: “Andamos a caminhar para uma sonoridade esteticamente mais assente no groove e na repetição, algo influenciado não só pelo novo jazz britânico tão em voga, como também pela música que influencia xs artistxs deste movimento, linguagens electrónicas e africanas, acima de tudo. Isto pode não ser uma consequência da nossa junção à Jinx, mas é um caminho que entra certamente na mesma linha de coerência com aquilo que a label representa”. No passado, e em diferentes concertos, os Mazarin exploraram as suas raízes assinando apresentações de homenagem a gente tão distinta quanto J Dilla ou vários dos estetas que definiram os contornos da canção de protesto portuguesa, no âmbito do 45º aniversário da Revolução dos Cravos. Agora preparam trabalho de maior fôlego para 2021 e mais apresentações de novo material em palco.



[Narciso]

Foi com a discreta edição de Anticorpo, EP de quatro temas lançado no Bandcamp, que Narciso se apresentou, no passado mês de Outubro. Esclarece-nos a editora responsável pela edição: “Anticorpo é o primeiro lançamento de Narciso, músico e compositor nascido e sediado em Lisboa. Um EP de quatro faixas instrumentais influenciadas pelo Jazz, Pop e Indie Rock e de onde se destaca o single ‘Leve’, tema ilustrativo do conceito deste trabalho: a ultrapassagem de barreiras e a simultânea busca pela tranquilidade. Vasco Narciso é formado em guitarra Jazz pelo Hot Club de Portugal, em Lisboa, e pelo Conservatório de Amsterdão. Nos últimos três anos criou projetos como a banda Hammond Crash ou a dupla de música improvisada – Vasco Duo. Trabalhou também em bandas sonoras para filmes e instalações. Recentemente juntou mais três elementos ao seu projecto Narciso com o rumo ao palco em vista”. Aguardam-se, por isso mesmo, cenas dos próximos capítulos desta história ainda no começo.



[Ossos D’Ouvido]

Escrevemos sobre os Ossos D’Ouvido e o seu Asa Nisa Masa no Notas Azuis: Os Ossos D’Ouvido são Diogo Lourenço (guitarra, theremin), João Massano (baixo, gutural) e Pedro Almeida (bateria, percussões). E são eles que se explicam e apresentam, nas notas que acompanham este primeiro trabalho de maior fôlego: “Asa Nisi Masa é um álbum instrumental composto por 8 faixas (6 temas longos, uma Introdução e um interlúdio) que constroem aquilo que consideramos ser a nossa esfera sonora envolta por todas as tangentes da ecléctica influência que fomos assimilando do Rock, do Jazz, da música improvisada e das sonoridades de vários cantos do mundo. São 8 temas originais, compostos pelos 3 membros da banda e conta com um convidado especial no trompete, Francisco Matos. A conceptualização estética da obra foi igualmente importante no processo criativo, e o design gráfico do álbum é de João Massano, baixista, que cria uma correspondência visual paralela às diversas dinâmicas sonoras”.

Feitas as apresentações, a primeira ideia que se impõe quando deixamos que os nossos ouvidos se percam no labirinto de ideias de que se faz o som do trio é a do óbvio prazer que estes músicos retiram da interacção, da comunhão de um mesmo espaço criativo e da exploração em conjunto das possibilidades que o desconhecido promete. É o que se escuta, por exemplo, em “Os Lobos Também Dançam”, fantasia com ecos das estepes mongóis pressentidos no gutural grave de João Massano, que oferece à guitarra de Diogo Lourenço a possibilidade de se espraiar de forma dolente por caminhos de óbvia inclinação psicadélica antes da entrada em cena de um melancólico solo de trompete processado com reverberação de catedral digital para que a sensação de atmosférica deslocação de tempo e espaço seja ainda mais pronunciada.

O tema-chave do álbum, no entanto, poderá muito bem ser “Dom Mántis”, uma espécie de manifesto identitário, que combina elementos estéticos diversos: as guitarras em reverse do início estão lá para nos dizerem de onde vem o espírito do trio, que se preocupa em carregar para dentro do seu som várias das marcas de estilo que associamos ao rock psicadélico, mas o baixo de João “Miroslav Pastorius” Massano depressa inscreve o tema nos terrenos do fusionismo jazzístico que nos anos 70 tão perto andou do lado mais progressivo do rock, com a figura circular da guitarra a ganhar a aposta hipnótica antes de explodir numa miríade de pontos de luz de que se faz o expansivo solo que parece destilar o som de mil heróis da guitarra.

O álbum fecha com outra tour de force, “Zinco”, a mais longa das derivas instrumentais aqui presentes, mais uma oportunidade para o trompete se espraiar em frases longas, atmosféricas e aveludadas. O tema arranca com uma toada algo cinemática, feita de uma cuidada gestão de tensão rítmica que não tarda a assumir um claro sotaque kraut. E o que volta a resultar claro é que o trio, expandido com a colaboração do trompetista Francisco Matos, conseguiu desenvolver uma orgânica química que se traduz no encaixe perfeito de cada um dos instrumentos num quadro maior. Percebe-se que os Ossos D’Ouvido traçam com regra e esquadro as molduras estruturantes dos temas, mas também não se esconde, nos solos e em passagens pontuais mais livres, que a invenção livre que deriva do improviso é mais do que bem vinda numa equação ampla e ambiciosa. Para ver em clube, ao vivo, com projecção de slides de óleo, se faz favor.



[SaiR]

SaiR é o alter-ego de Ruben Allen, teclista e produtor do Porto que tem merecido atenção do Rimas e Batidas desde que se estreou na Omega Supreme Records em 2016. Este ano, SaiR lançou dois trabalhos distintos, Fractions e o mais recente Light Headed, que motivou uma pequena conversa: “O Fractions veio fechar um ciclo e uma estética que explorei durante muito tempo. Os sons de sintetizador em primeiro plano, diversas camadas de adereços sonoros e uma forte tendência para incluir ingredientes que obrigassem a música a ser categorizada num estilo específico. Estilo esse comummente designado como funk moderno. O Light Headed trouxe-me uma liberdade que ainda não tinha experienciado. É música que respira mais livremente (por ter menos camadas) e em que me concentro na exploração do som do piano, seja clássico ou elétrico”, explicou. Allen parece, no entanto, muito pouco interessado em fazer aquilo que é quase uma lei imutável do jazz: apresentar a sua música ao vivo. Justifica-se: “Nos primeiros anos em que me dediquei à música, sentia uma grande necessidade de tocar ao vivo. Mas, com o tempo, deixei de dar importância a esse lado e percebi que, o que realmente me motiva e o que me faz fervilhar é a parte teórica, a necessidade de aumentar o meu conhecimento musical e a experimentação dentro de portas. Sou conhecido por ser “aquele tipo” que não sai de casa e que nutre pouco encanto por estar no centro das atenções”. Espere-se, ainda assim, mais música deste irrequieto criativo para os próximos tempos.



[whosputo]

Gonçalo Tavares, uma vez mais, traça o retrato dos whosputo numa entrevista disponível no Rimas e Batidas: “A assinatura ‘música para o corpo e para a cabeça’ tornou-se com o tempo um cliché, mas encaixa-se perfeitamente na identidade de algumas bandas. Os whosputo são uma delas. O projeto nasceu em 2018 e publicou o primeiro álbum, Art of Decay, em Abril deste ano. Aproveitando a quarentena, cruzaram malhas antigas com material novo e materializaram Buffer Sketches, o pretexto desta entrevista. À boleia da soul, r&b e electrónica, os whosputo escrevem, gravam e misturam em espírito DIY. Com esta liberdade criativa, o grupo aborda temas como a ansiedade e a depressão em texturas sensuais, ondulando por entre a melodia e o groove mas nunca se impondo e retirando o ouvinte da ambiência para onde o transporta. Buffer Sketches assume-se primeiramente como um estado de espírito. É uma experiência leve, hipnótica e aflita, tudo ao mesmo tempo”.

E são os próprios que se apresentam: “Nós conhecemos-nos num contexto académico, na Escola Superior de Música, onde estudámos jazz, cada um especificamente no seu instrumento. Eu estudei guitarra, o Miguel Fernández bateria, o Tiago Martins baixo e Tom Maciel estudou piano e teclados. Temos todos backgrounds distintos. O Tom é de São Paulo, eu sou do Porto e toquei em bandas de rock e grunge, o Miguel é galego e toca jazz há muito mais tempo, para além de em muitos grupos de rock, pop e electrónica, e o Tiago é o que tem mais escola da cena musical portuguesa, toca com a Sequin e em outros projectos relacionados”.



[YAKUZA]

O trio YAKUZA estreou-se muito recentemente com Aileron, trabalho que recebeu atenção crítica por aqui: “E eis que chegamos aos YAKUZA e a AILERON, projecto acabado de auto-editar, agora mesmo, há apenas cinco minutos. É música que nasce não de uma prática comunitária – André Santos (baixo), Afonso Serro (teclas) e Alexandre Moniz (bateria) não são o resultado de uma vivência intensa num ecossistema de pequenos clubes –, mas antes de uma abordagem intelectual a um género, de uma ideia, de uma intenção, de uma dieta rica em audições. Na primeira entrevista que deram ao Rimas e Batidas, os membros de YAKUZA falaram de referências tão variadas quanto Harvey Sutherland, Robert Glasper, Kamaal Williams, Flying Lotus, Ezra Collective, Thundercat, Alfa Mist, Yussef Dayes ou ainda Aphex Twin, Squarepusher, Tigran, Evan Marien ou Hermeto Pascoal. Habituem-se: há uma nova geração cuja biblioteca é o Spotify, cujo clube é o YouTube. O que essa geração tem para nos dizer é importante e, quer se aceite ou não, quer se compreenda ou não, está a escrever o próximo capítulo desse “swing continuum”. Na entrevista que nos concederam, os músicos dos YAKUZA também deixaram esclareceimentos importantes: “[Afonso] A linguagem era jazz, mas o género era outra coisa, as pessoas confundem muito isso. Um puto que sai do Hot Clube ou que sai de uma outra escola de jazz, é essa a linguagem musical que tem, não é clássica, não é rock, nem é metal. Não quer dizer que faça obrigatoriamente jazz, é a música dele, o que ele faz é que é jazz, ele pensa em acordes, numa progressão de acordes, em modelação, em que notas pode tocar, que truques tem na manga. Isso torna a música jazz, o género musical não é apenas o lado audível. Se tirarmos a ‘PICHELEIRA’, que é uma malha de swing, o nosso disco fica jazz? Não, não vai soar a jazz, mas fica: a concepção das músicas é feita da mesma maneira que o Dizzy Gillespie teria feito uma música qualquer quando era vivo.

[Alexandre] Mas com umas influências mais actuais. Eu acredito que é uma evolução muito natural. É a malta ouvir outras coisas. Antigamente a malta que saía do Hot Clube só ouvia jazz, agora ouvem outras coisas, a malta é open mind. Acho que é um bocado uma abertura da sociedade e não tanto pegar em algo de uma pessoa porque pareceu fixe”. 

Voltando à crítica, conclui-se: “O disco vive, portanto, de uma sólida fundação rítmica, erguida por uma bateria que não se incomoda com a repetição, mas que é igualmente capaz de subtis floreados, com um baixo ondulante que percebe que tem um importante papel a desempenhar no espectro mais grave das frequências, apresentando-se sempre irrequieto, fluído e até capaz de complementar harmonicamente o discurso do principal instrumento solista, a cargo de Afonso Serro. E o teclista é um fantasista com recursos consideráveis: em primeiro lugar entende muito bem que tipo de ‘cores’ usar, recorrendo a uma ampla paleta que extrai dos seus sintetizadores e demais teclados, soando como Herbie no seu período mais cósmico, psicadélico e ainda assim funky como Bernie Worrell, percebendo-se claramente que estudou os mestres contemporâneos, como Kamaal Williams ou Robert Glasper (e que deixa claro, em ‘Picheleira’, por exemplo, que é também capaz de se expressar com plena energia num piano acústico). Juntos, estes três conseguem assim a proeza de nos apresentarem um som que, muito claramente, parece conter dentro muito mais do que a simples soma das partes poderia indicar (e, na verdade, uma ficha técnica detalhada seria útil para um melhor entendimento do que se escuta: há por aqui sopros e guitarras que seria interessante perceber de onde chegam, por exemplo). Seja como for, o seu groove é amplo, cinemático, capaz de fazer ondular cabeças, corpos e mentes que não temam fechar os olhos para verem os filmes que nos propõem: de cidades modernas que se cruzam dentro de carros rápidos, de néons que contrastam com os tons nocturnos, de aventuras que nos carreguem direitinhos até ao futuro, de pistas de dança em penthouses rodeadas de vidro que permitem ver a agitação urbana lá do alto, de piscinas infinitas e de auto-estradas que nos conduzem até à liberdade, com a propulsão certa e a velocidade de cruzeiro que ainda assim nos deixa ver tudo.

Não, este jazz não é ‘novo’. Mas é de agora, sem dúvida”.



[Yanagui]

Também ouvimos o Underground Nature EP com toda a atenção: “Quando lhe é pedido que aponte no ‘mapa musical’ a localização do material incluído em Underground Nature EP, YANAGUI (aka Gui Salgueiro, “arma secreta” usada em palco por muitos artistas, de Moullinex a Nenny ou Agir) começa por se confessar perdido, mas depois lá oferece algumas preciosas pistas para nos guiarem a audição: ‘Hum… não sei, acho que é urbana, essencialmente. Claro que ’tá sempre ligada ao hip hop instrumental, mas também não é uma típica beat tape em que ’tou só a mostrar os beats, aqui é como se fosse uma canção mas instrumental, e como também venho do background mais do jazz, da música improvisada e instrumental, consegui conciliar ambos, entre os beats de hip hop e a música instrumental, e fazer toda uma linha, como se fosse para alguém cantar. Por isso diria que tem uma sonoridade urbana, dentro do hip hop, do soul, r&b, mas não me considero um artista hip hop, ou um artista soul, ou r&b… Por acaso não sei bem como é que hei-de rotular isso, sou uma mistura’.

Uma mistura, sem dúvida, mas o que no momento de verbalizar a identidade musical na entrevista que concedeu a Vera Brito (aqui mesmo no ReB) pode parecer hesitação, quando se carrega no play deste seu trabalho de estreia a solo soa, ao invés, a absoluta certeza. Esta ‘mistura’ com que Gui Salgueiro se descreve resulta, de facto, do cruzamento das coordenadas apontadas: do rigor rítmico do hip hop, em primeiro lugar, e do poder inventivo do jazz, em termos de discurso melódico e harmónico, logo depois. Mas essa tal mistura também revela, na forma como estão estruturadas cada uma das cinco peças do EP, conhecimento íntimo das dinâmicas clássicas da canção, tal como refinadas ao longo das décadas de história do r&b, de Aretha a D’Angelo.

Habituado a tocar em diferentes tipos de ensemble, Gui assume por aqui, no entanto, um registo mais solitário, sublinhando o lado de produtor, tal como entendido no contexto hip hop. E isso significa que assume a quase totalidade das despesas de execução musical no EP, embora tenha libertado espaço para o sax de SAM em ‘Take Your Time’, para o baixo de Gabriel Salles Silva e para a bateria de Ariel Rosa em ‘Underground Nature’ e ainda para a voz de Raissa em ‘Keep On’. E é sobre cadências programadas com o swing próprio de quem aprendeu com Dilla, mas que também gosta de sentir atrás de si o pulso de um baterista real, que YANAGUI desfia o seu novelo de teclados, entrelaçando o cristal de Fender Rhodes com o néon de uma imaginária Keytar, como a que poderia usar em ‘Take Your Time’, lânguida canção para se escutar no deck de um igualmente imaginário iate enquanto o sol se põe nas curvas de alguém.

Sim, YANAGUI escutou o que importava escutar, de Thundercat a Dâm-Funk e do universo da Soulection ao que de novo gente como Kamaal Williams ou Yussef Dayes tem andado a criar, como aliás assumido na já mencionada entrevista, mas também se sente por aqui um nervo melódico muito próprio, quase sempre condizente com essa dolente ideia de sol e praia, de areias brancas e águas límpidas. Esse lado tropical carrega a bela ‘Underground Nature’, por exemplo, enquanto ‘Keep On’ deixa entrever as maravilhas que poderá criar quando for chamado a embrulhar a alma de quem possa ter palavras reais para cantar – Raissa é mais um fantástico instrumento neste tema e não traz um poema na voz, mas percebe-se claramente para onde aponta YANAGUI. A despedida faz-se ao piano, com ‘Fly’ a convidar a que se carregue de novo no play, mal o seu funk de cetim se esgota em menos de quatro minutos de puro luxo com sentido orquestral de enorme elegância. Mais, por favor”.

*Para além da foto de capa com Afonso Serro dos YAKUZA, há ainda imagens de jubile street (Bardino), Margarida Ribeiro (Fatspoon), Vera Marmelo (GUME), NUWANDA (Mazarin), Pedro Mkk (Don Pie Pie), Joana Peralta (whosputo) e Rui Tavares (Azar Azar) na galeria.

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